A Inocência do Mau escrita por Xyah


Capítulo 4
De Volta ao Passado


Notas iniciais do capítulo

O passado nunca esteve tão presente assim...



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De Volta ao Passado

“Ahhhhhhhh! Que soninho gostoso! Ué... cadê a bíblia?” Foi a primeira coisa que sussurrei sozinha assim que despertei no dia seguinte. “Oh está aqui, atrás da cama. Nossa! Já são 9:00 horas?! Dormi demais, Simon. Simon, acorda, preguiçoso. Vamos descer para tomarmos café.”

Enquanto descíamos as escadas senti falta de alguma coisa, mas não sabia o que era. Fui até a cozinha e lá estavam Laura e Mamãe tomando café. A mamãe estava linda. Parecia uma artista de cinema. Nunca a tinha visto assim desde a morte do papai.

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Meu pai faleceu aos 30 anos. Eu era bem novinha. A única coisa que mamãe dizia sobre ele era que havia morrido por ser uma pessoa importante. Mas afinal, desde quando ser importante pode matar alguém? Por isso eu decidi desde novinha que não queria ser nada, nada importante.

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Enquanto esses pensamentos rondavam minha mente, Laura estava explicando a minha mãe que precisava fazer algumas compras antes do retorno á Tóquio, e que naquele dia ela precisava de folga. Como mamãe também tinha tirado o dia para descansar, ela resolveu atender o pedido da babá, liberou Laura.

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Tomei meu café ao lado da mamãe e da babá, Simon ao lado da minha cadeira também saboreava sua ração. Depois fui tomar um banho e perguntei a mamãe se eu poderia ficar na porta de casa conversando e brincando com as outras meninas da vizinhança. Ela deixou, mas apenas me recomendou que não deveria me afastar de casa por hipóteses alguma. Acenei concordando com a cabeça e sai. Deixei Simon com mamãe porque ele poderia me atrapalhar no que eu  precisava fazer.

Na verdade fiquei por algum tempo sentada sozinha no passeio em frente à portaria do prédio. Quando o porteiro distraiu, aproveitei e me esquivei sorrateiramente. Consegui escapar e poderia enfim ir até o lugar que não saia da minha cabeça desde a tarde do dia anterior.

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Fui ao cemitério. Havia muitas perguntas que queria e precisava fazer àquele senhor. E ainda precisava perguntá-lo quem era aquela pessoa que pulou o muro ontem a noite. Adentrei aos portões estavam tudo muito calmo, parecia que tudo estava ao seu lugar. Mas... Onde estava ele?

Caminhei em direção a capela, e enfim o encontrei, olhando por uma das janelas no alto da torre rústica. Ele já estava há algum tempo observando os derredores enquanto eu caminhava e me aproximava do lado de fora. Eu não o havia notado antes e me parecia que também ele não havia me notado. Estava com um olhar tão distante, distraído, e tão absorto em seus pensamentos insuspeitáveis, que não o quis assustar.

Subi as escadas sem fazer barulho, como se caminhasse sobre taças de cristal fino.

Aproximei-me bem devagar foi quando ele disse:

-Sayaka!

-Oi! Como o senhor sabe que sou eu? Nem fiz nenhum barulho!

-Estava te esperando, querida. Sabia que você já estava a caminho.

-O que o senhor faz ai parado diante dessa janela, na torre dessa capela?

-Essa capela, Sayaka... É uma capela muito especial! Sabia disso?

-Especial porque?

Não via diferença entre essa capela e as outras, mas sentia que ele estava muito emocionado.

-Venha, menina. Vamos nos sentar ali fora. Precisamos conversar sobre muitas coisas.

-Ahn! Então... Tudo bem!

Fomos até o portão dos fundos do cemitério, não era o principal, pois este dava acesso diretamente para as janelas do apartamento em que eu e mamãe estávamos. Ela poderia me ver pela janela da sala ou do meu quarto. Sentei-me em uma cadeira macia de madeira com uma almofada vermelha e ele em outra igual. Naquele momento até achei natural que aquelas poltronas estivessem ali, mas hoje, quando me lembro, percebo como elas discrepavam do ambiente. Os portões dos fundos de um cemitério! Como poderia ter aquelas cadeiras?! Ele me perguntou sobre o Simon, eu expliquei que o deixara com a mamãe, para ocupar sua atenção, que precisei distraí-la, porque ela não podia saber que eu havia saído, e que estava ali, em um cemitério. ““Ah! Senhor, eu não posso demorar.”

-Claro! Vou te contar um pouco da minha história, meu nome é Miran Tamamura, sou filho de um Japonês com uma mulher indiana.

Ah! Estava explicado porque ele tinha olho puxado e era moreno.

-Mudei bem novinho para Portugal. A vida no Japão estava difícil para nós. Meu pai era agricultor e minha mãe dona de casa. Vivi toda minha infância neste país. Quando completei meus 20 anos retornei ao Japão e lá conheci uma linda moça e com ela me casei e tive uma filha.

-Nossa, legal! Mas... onde está sua família, Sr Tamamura? Sempre o vejo tão só neste cemitério! Acho que o Senhor deveria ficar mais com elas: Sua filha e sua esposa.

-Elas estão sempre comigo, minha flor. Elas estão enterradas aqui!

-Ahhh! Ai... Perdoe-me, eu não quis...

-Não há problemas, minha querida. Elas me fazem companhia todos os dias. Sabe aquela capela na qual você ficou presa aquele dia? Aquela em que nos encontramos hoje?

-Sim, me lembro.

_Minha princesinha e minha amada esposa descansam ali.

Pude perceber um olhar de saudade e amor que saia daqueles olhos negros. Neste momento ele segurava uma flor bem pequenina em suas mãos e olhava para o horizonte, como se estivesse as vendo de alguma forma.

-Sabe, Sayaka... Minha filha era assim, linda como você. Corajosa, nome era Halice Tamamura. Sua mãe tinha paixão por filmes e colocou o nome igual ao nome de sua atriz predileta.

-E sua filha morreu de que Sr?

_Bem... Vou te contar como foi, apesar de você ser muito nova pra esse tipo de história. Mas você precisa saber. Afinal.... Ah... Não vamos adiar mais as coisas. Minha filha foi vista pelo imperador quando completou dez anos. Este se encantou com sua beleza, e por isso, ela foi escolhida por ele para se tornar sua esposa, tão logo completasse dezesseis anos. Mas o destino havia traçado para ela um fim muito cruel.

Pude perceber que a expressão de saudade e carinho tomava agora uma outra forma, transformando em um semblante carregado. Repleto de vingança e ódio. “Mas cruel porque? O que ela havia feito de errado?” Pensei, não sei explicar porque, comigo mesma.

-Um mercador de flores daqui, desta terra, estava a passeio no Japão, mais ou menos quando ela completou quinze anos. Ao menos foi assim que ele se apresentara a minha filhinha. E sempre deixava flores sobre a janela do quarto de Halice. Mesmo depois de ela ter lhe contado que era a esposa prometida do Grande Imperador. Mas o rapaz era belo, esguio e muito galante, e Halice se apaixonou pelo mercador de flores e decidiu fugir com ele. Mas como todo o seu casamento já estava arranjado entre o Imperador e eu, e como já faltava apenas um ano para que a união se concretizasse, nem eu nem ela poderíamos voltar atrás. O rapaz se apresentou a mim e minha esposa, declarou boas intenções e queria noivar e se casar com minha menina. Mas, apesar de ter me simpatizado com aquele jovem simpático, sereno e forte, não havia o que fazer, tive que rejeitá-lo.

Nossa! Tinha tantas perguntas pra fazer ao velho, tantas dúvidas, e sentia no meu íntimo que ele teria todas as respostas. Mas não queria interrompê-lo. Nem ao menos conseguia piscar. Estava totalmente envolvida pela sua história.

-Então, minha querida, um dia, enquanto eu minha esposa fomos ao palácio, atendendo ao chamado do imperador para acertarmos mais alguns detalhes da cerimônia, o maldito mercador adentrou minha casa e se deitou com minha filha.

-Como assim?

-Mas claro, você só tem sete anos, não vai entender. Enfim... o que você precisa saber é que naquele momento, ele e minha filha haviam concretizado uma união ilegítima, e que isso poderia gerar muitos problemas para ela, e também para mim e para minha esposa.

-Ahh!!!!!!!

Não pude evitar meu espanto, quando entendi que a filha do velhinho e o mercador tinham começado a namorar, mesmo sendo proibido. Na época, essa foi minha compreensão, mas hoje entendo mais claramente, porque sei o que significa “se deitou com ela”. Afinal, eles estavam doidos. O imperador poderia matá-los se soubesse da traição dela, e ainda matar seus pais.

Quando eu retornei do palácio, havia um bilhete sobre a mesa deixado por Halice, se despedindo, dizendo que foi embora com seu grande amor, e que não iria voltar, que pretendia sumir para que o Imperador nunca pudesse encontrá-la. Fiquei desesperado. Como minha filhinha podia ter feito isso comigo e com sua mãe? Seríamos capturados como prisioneiros culpados de alta traição, e executados perante todo o povo. Eu saí imediatamente atrás dela. Corri o máximo que pude e a procurei desesperadamente. Por vários dias repeti meus atos, indo cada vez em uma direção, e cada vez mais distante, no intento de encontrá-la.Em uma das noites, quando retornei já depois que anoiteceu para casa, sem ter obtido sucesso algum, encontrei um bilhete sobre a mesa. Minha esposa havia sido levada pelo imperador, para cumprir a promessa quebrada pela minha filha. Ele pretendia se casar com minha esposa no lugar da minha filha. Fui mais rápido que pude até o Palácio, e quando lá cheguei fui barrado ainda nos portóes de ferro, que protegiam a entrada principal do castelo. Fiquei horas ali, e não sairia dali sem minha esposa.

-E então? Conseguiu entrar, senhor Tamamura? E sua esposa estava bem?

-Sim, minha flor. Entrei graças a um soldado que se compadeceu da minha história e, colocando sua própria vida em risco, resolveu me eprestar a sua farda. Entrei e avancei pelos corredores reais. Ela se encontrava na câmara real sendo aprontada a força para ser levada à presença do imperador, e para a realização de uma cerimônia matrimonial improvisada às pressas.

Eu a chamei pelo nome, fingi estar cumprindo ordens do próprio imperador, e disse às mulheres que a preparavam que ele a havia convocado à sua presença do jeito que estivesse, imediatamente. Ela estava paralisada de estupefação e medo. A arrastei o mais rápido que pude, mas as mulheres ficaram desconfiadas e fizeram a notícia chegar aos ouvidos do Imperador. Ele próprio tomou de sua espada e foi atrás de mim, e quando de repente o imperador finalmente conseguiu nos alcançar, já nos pegou na estrebaria, roubando um cavalo e fugindo velozmente. Sai a galope com minha esposa e mandei que abrisse os portões, porém já estava sendo cercado pelos guardas e não conseguia achar outra saída que não fosse pela qual eu entrei.

-Ai meu Deus! Mas e aí?Como o senhor fez? Como foi que conseguiu sair?

-Ah! Minha menina! Aqueles foram os momentos mais angustiados de toda a minha vida. Eu estava cercado pelos guardas, e à frente deles o próprio imperador sentenciava: “prendam-nos, levem nos ao calabouço, eles ficarão lá até amanhã. E ananhã bem cedo eu irei casar com essa mulher e matarei esse traidor.”

Então, um grupo de guardas de honra do Imperador avançaram contra nós, nos tiraram brutalmente do cavalo e aos solavancos começaram a nos empurrar de volta para o interior do castelo, descendo as escadas, na direção indicada pelo Imperador. Mas no meio da confusão e das agressões que eu e minha esposa estávamos sofrendo, consegui reconhecer entre os guardas aquele que havia me emprestado sua roupa. Fomos trancafiados no calabouço e lá ficamos presos até o meio da madrugada. E quando todos já estavam dormindo, ele foi até os calabouços sozinho, às escondidas, destrancou a porta sem ruídos, pediu silêncio e começou a nos conduzir por caminhos empoeirados do castelo. Provavelmente poucas pessoas faziam uso daquelas passagens, quiçá conheciam-na. Ele nos levou até a saída e nos deu a fuga, a liberdade clandestina, arriscando a própria vida. Eu e minha esposa sabíamos que seria necessário sair do Japão o mais rápido ou seriamos mortos, mas não poderíamos ir sem a nossa filha, sem ao menos ter noticias dela. Então fui até a praça e perguntei outros mercadores sobre aquele rapaz que a levou. Ninguém, meu anjo. Ninguém o conhecia. Foi quando uma velha senhora se aproximou de mim. Misteriosa e tranqüila, percebia-se que era uma mulher de extrema sabedoria e misericórdia. Foi ela que nos contou tudo, nos esclareceu e nos revelou a parte mais aterradora desses acontecimentos. Disse que, na verdade, o rapaz não era um florista estrangeiro. Aquele que se apresentou como tal, conquistou nossa confiança por alguns momentos, que cortejou nossa filha insistentemente, era na verdade um inimigo pessoal do imperador, e ele a seduziu somente para ascender a ira do seu rival, para se vingar, como uma atitude de afronta ao seu inimigo declarado.

Ela me disse tudo o que sabia, e não era pouco. Sabia que certamente eles não estariam muito longe dali. Havia uma cabana muito pobre que ficava aos arredores da cidade, no meio da floresta densa. E era esse o lugar que a senhora desconfiava que aquele traiçoeiro homem costumava usar como esconderijo. Sendo assim, se tivéssemos sorte, talvez nossa filhinha pudesse estar lá, talvez aprisionada e maltratada. Então, a manhã já começava a se esboçar no céu, e decidimos não esperarmos mais nenhum segundo. Partimos imediatamente, eu e minha esposa, para essa cabana, e quando chegamos minha filha estava realmente lá, mas deveras aterrador foi encontrá-la no estado em que a encontramos: toda suja de sangue, trêmula, com um olhar febril. De imediato, achei eu que ela estivesse ferida, então corri e a abracei forte. Minha esposa chorava compulsivamente, mas minha filha sorria histericamente, e dizia reticente e repetidamente que estava tudo bem, que o todo o mau já havia passado. Quando parei, interrompendo o abraço, e observei o derredor daquela pobre cabana suja e velha, vi o maldito florista caído no chão. Estava morto com um corte profundo nas costas. Então a perguntei:

-O que foi que aconteceu aqui? Quem fez isto com ele minha filha?

Olhava para o rosto pálido da minha filhinha e deduzi que muito daquela palidez poderia significar que há vários dias minha princesinha não se alimentava.

O cadáver do farsante, aquele que se dizia florista, por sinal, já começava a entrar no estado de decomposição e em seus cortes já havia bichos. Minha esposa estava em estado de choque com tudo que estava vendo. O odor daquele corpo estava nos contaminando, nos deixando enjoados, causando náuseas. E no olhar de minha florzinha havia algo de muito estranho, não parecia ser a mesma garotinha que havia crescidosob nossos cuidados, não parecia ser a minha criança dócil e anjelical. Tinha um olhar macabro, endurecido, frio, cristalizado, parecia o olhar cruel de uma assassina fria e sanguinária. Ela estava segurando ainda o objeto com o qual havia matado aquele homem nas mãos sujas e manchadas de sangue, assim como todo o resto de seu corpo miúdo, e mesmo não querendo acreditar, perguntei:

-Minha filha quem matou esse homem? Por uma fração de segundo pareceu que minha filha congelou, retesou todos os músculos, me olhou com o olhar mais desdenhoso que eu já vi por toda a minha existência, Depois, com um sorriso frio e macabro ela respondeu:

-NÃO SEI, PAPAI!


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