Remember escrita por juvsandrade


Capítulo 2
II




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Nove horas em ponto Hermione estava parada em frente à porta de um pequeno edifício de dois andares, com vista para a praia. Aquela parte da cidade de Wollongong – a terceira maior da Austrália – era especialmente bonita. Sua mãe sempre tivera sorte com imóveis, e o local onde o consultório fora instalado parecia à paisagem de um quadro. Desde o raiar da manhã pipas coloridasbailavam pelo céu, quase tocando as nuvens brancas que possuíam a imagem refletida nas águas claras do mar. Hermione estava se acostumando com aquela beleza bem diferente da britânica. O céu cinza apagado parecia sem graça diante da magnitude daquele azul-Royal que pintava o céu australiano. As pessoas bronzeadas andavam com roupas floridas, em suas bicicletas graciosas, com os seus cachorros pequeninos e com os seus chinelos de dedo. Acenavam sempre, sorriam belamente e pareciam, cada vez mais, parte de algum filme ao qual ela não parecia se encaixar. Sendo uma secundária, Hermione respondia como conseguia, mas sempre encolhia os ombros e abaixava o olhar, perguntando-se que diabos fazia ali. 
Até mesmo os seus pais estavam bronzeados. As bochechas coradas de “Monica Wilkins” e os cabelos mais claros – devido ao Sol - de “Wendell Wilkins” havia deixando-a tonta, nos primeiros dias em que estivera por lá, e demorara mais do que o comum para ela se acostumar com aquela nova aparência dos pais. Parecia que Monica começara a praticar yoga na praia, nas manhãs de terça e quinta, corria atleticamente com uma ou outra amiga, nas tardes de segunda e sexta, e participava de um clube de leitura, nas tardes de quarta. Wendell perdera um pouco a barriga por causa da alimentação saudável e do vôlei – vôlei! - de praia que jogava com os amigos, nos finais de semana. Wendell também comprara um cachorro e adorava passear com o animal todos os fins de tarde.

O cachorro chamava Leontes, fazendo Hermione se perguntar se um dia aquele vício que o pai possuía pelo livro de Shakespeare diminuiria. Ela sabia que a resposta seria negativa.
Sua mãe fazia yoga. Seu pai jogava vôlei. Eles tinham um cachorro.
Sorrindo, Hermione destrancou a porta e adentrou no hall do consultório, perguntando-se ao mesmo tempo e em silêncio, pela milésima vez, se além de apagar a memória dos pais, também não havia deixado-os loucos. 
Andando sem rumo pelo local deserto até então, retirou a pequena máquina fotográfica (trouxa) da bolsa de contas que virara a sua fiel amiga e se encaminhou até os grandes vitrôs que apontavam para a praia. Havia prometido a Gina que registraria diversos momentos de sua “jornada” para depois compartilhar com ela, por isso tirou uma única foto das pipas que voavam por ali e voltou a guardar o objeto. Sorriu ao se lembrar de Gina, assim como fazia em todos os dias, no momento de tirar uma foto. Depois, com o sorriso ainda pendente em seus lábios, começou a ajeitar cada detalhe, preparando o consultório para receber não só os clientes, como também os donos – os seus pais. 
Quando ligava a máquina de café para preparar um para ela mesma, escutou a porta se abrindo eMonica entrar, cantarolando uma música que fez com que Hermione entreabrisse os olhos na hora, assustada com aquela estranha coincidência.

— Louie, Louie, oh baby, me gotta go. A fine little girl, she waits for me. Catch the ship across the sea. I sailed the ship all alone. I never think I'll make it home.*

Aquele rock alternativo, dos anos 80, era o tipo de música que sua mãe escutava raramente, enquanto dirigia, porque a lembrava da juventude. Hermione, quando era criança, divertia-se com os dias que a mãe colocava aquelas músicas dançantes, especialmente aquela... Porque era a única que fazia a sua mãe cantar.

Cantar para ela. Louie Granger, o seu pai, sempre morria de rir quando Georgia Granger, a sua mãe, pronunciava em forma de melodia aquelas palavras, olhando nos olhos dele e sorrindo magnificamente. 
Abobalhada, Hermione balançou a cabeça para afastar a memória quando Monica se aproximou dela e tocou-a no ombro, sorrindo meigamente e lhe cumprimentando daquela mesma forma.

— Bom dia, Hermione. 
— Bom dia, doutora.
— Não dormiu bem mais uma noite, querida?
— Ainda não consegui me acostumar com o fuso horário. — mentiu levemente, tragando um gole de cafeína e sorrindo suavemente para a mãe. 
— Oh, isso é normal. Quando nos mudamos para cá, demorei cerca de dois meses para conseguir ter uma boa noite de sono. Mas confesso que a yoga e alguns soníferos me ajudaram bastante. — servindo-se de um café também, Monica seguiu sorrindo para a garota, transformando aquela conversa em algo descontraído. — Quando chegamos aqui, eu não sei o que aconteceu, mas eu estava muito agoniada. Você conhece aquela sensação de ter deixado algo importante para trás?

O fôlego de Hermione fora aniquilado com aquelas palavras que possuíam um significado enorme – mesmo sem Monica saber – e que lhe adentraram a alma como uma explosão de fogos de artifício. Por mais que tivesse lhe doido, aquela frase também teve o efeito de um curativo temporário. Saber que a sua mãe ao menos sentira a falta de algo – que seu íntimo berrava: “É você! É você, Hermione!” – renovava-lhe as energias.
Sua mãe... Sentira... Porque querendo ou não, ela ainda era e sempre seria a sua mãe. E as mães deveriam sentir... Enfeitiçadas ou não... A falta de algo que lhe pertencia.

— Talvez você esteja passando pelo mesmo que eu passei, querida. Essas noites mal dormidas devem ser resultado da saudade que você tem da sua família e do seu namorado. — lançando um olhar morno para a garota – e que, ironicamente, era absurdamente semelhante com o da própria -, Monica fez um singelo carinho nos cabelos encaracolados de Hermione, sorrindo mais uma vez antes de criar uma distância razoável entre elas. — Falando no seu namorado, você recebeu mais uma carta?
— Ainda não. Ele costuma enviar no domingo, por isso as cartas costumam chegar na quarta-feira.
— O correio está cada vez mais rápido. — Monica sussurrou com a boca entreaberta e depois se calou, tomando um gole do café.
— É verdade. — mas não era aos correios que Hermione agradecia pela rapidez. — O seu consultório já está arrumado, doutora. — jogando o copo descartável fora e prendendo o cabelo em um rabo comportado, a garota começou a se afastar, porém parou, quando Monica perguntou:
— Você se lembra se a Nina Hopkins está marcada para as 09h30min ou 10h00min?
— A Nina está marcada as 10h00min, mas a irmãzinha mais nova dela, a Sally, está marcada para as 9:30. A Sally só virá para fazer uma limpeza.

— Hermione, às vezes eu acho que você foi um anjo que apareceu na minha porta, procurando por emprego. — Monica disse simplesmente, arrancando um sorriso emocionado da garota e virando-se em seguida, para adentrar na própria sala. — Eu vou me aprontar, mas se o telefone tocar, pode passar a ligação. Ah, e se você precisar de qualquer coisa, querida, pode me chamar.
— Está bem, doutora. 

Assim que a porta da sala da mãe se fechou, Hermione suspirou pesarosamente, percebendo que possuía uma vontade imensa de tirar uma fotografia da mulher para poder enviar a Gina. Ela sabia que a amiga veria o que a mãe, infelizmente, não conseguia ver: a semelhança absurda entre elas.
Ao longo de sua vida, olhara-se diversas vezes no espelho, procurando no reflexo alguma característica marcante do pai, para poder se gabar um pouco de ter puxado para ambos os lados, todavia, só carregava em sua aparência algumas poucas sardas esparramadas logo abaixo das bolsas dos olhos e o cabelo de cor ordinariamente castanha, fora aqueles míseros dois detalhes, todo o resto era a sua mãe desenhada e esculpida. Era difícil de se acreditar que Monica ainda não havia reparado e comentado sobre aquela “estranha coincidência”... Ainda mais ela. Hermione não conhecia muito a respeito de Monica, mas conhecia Georgie nas palmas das mãos. Ela herdara da mãe a atenção em demasia e a percepção descontrolada, por isso estava acostumada a notar não só o óbvio, como também o embutido nas entrelinhas... E a igualdade de suas feições era berrante! 

— Oh, Merlin. — murmurando para si mesma, enquanto sentava-se a mesa do hall e olhava através da janela, Hermione se lamentou: — Eu realmente devo ter afetado a inteligência deles.

Não teve muito tempo para se afundar em mágoas, pois o tempo se adiantou e logo a Sra. Hopkins aparecera no consultório, com as duas filhas presas em um aperto de mão e com um sorriso moderado nos lábios pintados de vermelho.

Nina e Sally eram duas crianças adoráveis, que infelizmente eram fascinadas por doces e açúcares no geral, e não suportavam escovar os dentes. Por isso, em menos de um mês, ambas visitaram a cadeira de Monica três vezes – sendo aquela a terceira – e não reclamavam de ter que ir ao dentista, porém sempre faziam cara feia quando a Sra. Hopkins começava a falar pelos cotovelos, dizendo e prometendo inúmeras vezes que cortaria os doces do cardápio das meninas.
Hermione simpatizara-se bastante com as garotinhas e sempre conseguia se distrair por alguns muitos minutos, escutando Nina contar a respeito da peça de teatro que o colégio dela estava a preparar e deixando Sally fazer bonitas tranças em seu cabelo, ao mesmo tempo em que provocava a irmã, dizendo que ela deveria fazer o papel de alguma árvore ou pedra.
Por mais que Hermione não quisesse confessar – e sempre sorria travessamente quando voltava a pensar naquilo -, ficar perto das duas garotas era como ter a companhia de Harry e Ron (de uma forma diferente), pois elas eram duas crianças, e os seus dois amigos, muitas vezes, não passavam de dois garotinhos bobos e divertidos. 
Mas aquilo ela nunca contaria a ninguém.

— Eu quero ser a Rapunzel. — Sally mexeu nos próprios fios dourados e sorriu sonhadora. — Você já fez alguma peça de teatro no seu colégio, Hermi? — os trouxas e aquela mania estranha de reduzir os nomes em apelidos sempre.
— Quando eu tinha a idade de vocês eu fiz a Dorothy, da peça O Mágico de Oz. Mas eu tenho certeza que me escolheram somente porque o meu cabelo era castanho e cacheado. — escutou a risada das meninas e riu um pouco também, vendo a Sra. Hopkins erguer a cabeça por detrás da revista e encará-las amorosamente. — Sally, você já terminou a minha trança?
— Estou terminando, estou terminando...

— Porque está na hora de fazer a limpeza nos seus dentes e você sabe que se você atrasar, não ganha o pirulito sem açúcar no final.
— Aquilo não tem gosto. — a menina falou baixo, somente para Hermione escutar, como se fosse um segredo, mas escutou o pigarrear da mãe e se calou, abaixando a cabeça. — Sua trança está pronta e está linda.
— Muito obrigada. — Hermione agradeceu de uma forma divertida, ficando em pé em seguida e pegando a mão da garota, para encaminhá-la até onde deveria ir. — E agora se você me prometer que escovará os seus dentes todos os dias, eu deixarei você encher o meu cabelo de tranças na próxima vez que vier aqui. 
— Hum... — empurrando a porta com um pé e olhando para cima, para encontrar o olhar da garota, Sally deu de ombros e sorriu um pouco, levadamente. — É um acordo justo...

Quando a porta se fechou, Hermione riu sozinha ao se pegar pensando que adoraria ter uma filha, um dia, em um futuro próximo ou distante. Seria ótimo ter uma garotinha – uma ruivinha – obrigando-lhe a sentar para então poder fazer penteados desde a raiz até a ponta de seus cabelos. Seria realmenteótimo...
O resto do dia passou como costumava passar. Wendell chegou um pouco mais tarde, do consultório, pois segunda de manhã ele jogava golfe com os amigos e foi correndo atender um paciente que chegara com ele. Pacientes entraram e saíram, com todos os dentes ou sem um deles, marcando novas consultas e agradecendo sempre pelo cuidado. Pacientes entraram e saíram, e quando o último se foi, Hermione despediu-se dos patrões (e pais) e recusou a carona oferecida por ambos, dizendo que iria a pé para aproveitar a vista do pôr-do-sol... A verdade é que ela ainda se sentia bem incomodada, perto deles, e tinha um certo receio, porque ainda existia o medo de chamá-los, sem querer – mas querendo – de pai e mãe. Por isso ela achava melhor ser cuidadosa.
Extremamente cuidadosa.


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