Mundo dos Sonhos escrita por Trezee


Capítulo 27
Papai no 116 e o indecifrável Daniel


Notas iniciais do capítulo

Gente, esse capítulo é gigante hauahuahauhahuaua
Mas tudo bem, acho que vcs superam! o/



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/151968/chapter/27

       Demorou um pouco para a ficha cair, mas caiu. Dei um pulo e me atarraquei na cordinha. Um apito ecoou por todo o ônibus, mas tive que me contentar apenas com o próximo ponto. Não ficava assim tão longe da minha casa, só precisei andar um bocado a mais. Não me queixe, a culpa foi minha. Fiquei um pouco brava com a minha capacidade de me desligar do mundo, como pode alguém ficar alheio a tudo do nada? Eu sabia que não era exatamente do nada, mas sabia também que não precisava de tanto assim. Fui caminhando e olhando as casas, as árvores, os carros que passavam do meu lado. Vi um carro parecido com o do meu pai, abri um sorriso mesmo sabendo que não era ele. Mas logo meu sorriso se cessou sozinho. Senti uma pontada extremamente forte no meu coração. Doeu e muito. Não sabia o motivo, mas como veio de repente, foi-se de repente.

         Estava um pouco desnorteada com a dor que se fora, não entendi muita coisa, mas continuei andando, agora com a cabeça mais baixa. Já estava perto de casa e lembrei-me que precisava e muito ligar para Joana, queria ao menos entender o que se passava naquela manhã. Apertei o passo, abri a porta e corri para o telefone. Minha mãe não estava em casa e eu já estava acostumada com isso. Com o telefone na mão, larguei minha bolsa em qualquer canto e me lancei no sofá. Comecei a discar o número da casa de Joana, quando fui surpreendida com o telefone que começou a tocar na minha mão. Não sabia que ele era capaz de tocar quando estava em uso, mas pulei toda essa introdução e atendi.

         - Alô. – disse.

         - É da residência do senhor Afonso Dupon? – perguntou a voz rouca e feminina do outro lado da linha.

         - Sim.

         - Bem, a senhora é a responsável pela casa?

         Hesitei em responder por um segundo. Responsável. Isso significava que eu deveria ter mais que dezoito? Se sim, menti.

         - Sou, pode falar. – tentei ao máximo não tremer minha voz e entregar os meus ainda dezesseis anos.

         - O senhor Afonso Dupon acabou de dar entrada no Hospital Municipal de Bráscuba, pois sofreu um acidente de transito.

         Um gelado súbito subiu e desceu pela minha espinha, minha mão começou a tremer no telefone. Responsável, responsável, responsável. Eu tinha que manter a linha. Então, tentei respirar fundo, uma respirada ardida e profunda. Busquei as palavras certas e falei um tanto que apressada.

         - Meu Deus... Mas como ele está? O que aconteceu?

         - Ele ainda está fazendo exames, para ver as fraturas e outros danos internos. Por enquanto obtivemos ciência somente das esfoliações externas.

         Um suspiro saiu da minha boca e mordi um pouco os lábios. “O que fazer agora?” “Pense, pense...”

         - Nós temos um convenio médico da empresa que ele trabalha... Como isso pode ajudar? – espantei-me quando falei. Com certeza isso foi responsável.

         - Bem, como não sabemos qual o real estado dele, não podemos confirmar uma transferência ainda. Mas se não houver maiores problemas, assim que recebermos a permissão, a solicitaremos.

         Minha garganta ardeu mais um pouco, ou melhor, muito. Nem consegui suspirar direito minhas últimas palavras. Realmente eu estava aflita.

          - Obrigada, estamos indo.

          O pior de tudo, é que eu não sabia o que de fato havia acontecido. Meu pai poderia estar mal, muito mal. Eu necessitava falar com minha mãe. Tinha noventa e nove por cento de chances de eu encontrá-la na loja da Marlene. Dei um pulo do sofá, com meu coração ainda temeroso, corri para a escrivaninha e atarraquei a agenda. “Marlene, Marlene... Marlene!” Encontrei rápido o nome e o número. Disquei e errei na primeira vez. Minha mão ainda tremia um pouco. Respirei fundo e disquei com mais calma e o telefone começou a chamar. Parecia ter passado uma eternidade até que alguém atendeu. Era Marlene.

          - Marlene, é a Mel! Minha mãe está aí? – joguei as palavras.

          - Mel, está tudo bem minha flor? – perguntou com sua voz aguda

          - Bem... É... Posso falar com ela? – não estava muito apta a dar explicações.

          - Vou chamar a Lorena.

          Fiquei com os ouvidos postos no telefone. Minha respiração já melhorara um pouco, mas minhas mãos ainda estavam um tanto que trêmulas.

          - Mel? – uma voz bem familiar falou do outro lado da linha.

          - Mãe, ainda bem que eu te encontrei. – murmurei aliviada, mas ainda aflita.

          - O que aconteceu Melinda, está tudo?

          Novamente minha voz pareceu dar uma leve falhada.

          - Mãe, ligaram aqui em casa do... hospital. – tremi, com certeza.

          - Hospital? – indagou assustada.

          - É... Ai mãe, falaram que o pai sofreu um acidente de carro... – pensei por um segundo, a final a moça havia me falado “acidente de transito”. – Eu acho. Não sabem como ele está ainda, estão fazendo exames. Eu estou preocupada.

          - Mel, como assim? Ligaram agora, quando aconteceu?

          - Eu não sei, não sei mãe! – minha voz se elevou um bocado no telefone. – Só sei que precisamos ir para o hospital.

          - Sim... – a voz de minha mãe, sempre alegre e estridente, murchou. – Tome um ônibus aí de casa que eu tomo um daqui. – murmurou a ordem.

          - Claro mãe. Tchau.

          - Se cuide.

          Sua última frase me fez raciocinar um pouco. Fiquei mais atenta ao meu redor, procurando de fato me cuidar.

          Cheguei ao hospital e minha mãe já estava ali, aflita falando com a recepcionista. Esperei que ela se afastasse um pouco e coloquei-a sentada em uma poltrona. Procurei alguma coragem perdida dentro de mim e perguntei.

          - E aí, como ele está?

          Ela demorou um pouco para falar, deu um longo suspiro e murmurou:

          - UTI... – sua voz era chorosa e seu olhar estava perdido.

          - Ah não, não... – percebi que uma lágrima teimosa ia descer pelo meu rosto, tentei reprimi-la o máximo que pude. Precisava parecer forte para ajudar minha mãe. – Calma, vai dar tudo certo, logo ele vai ficar bem.

          Dei um abraço apertado, envolvendo-a entre meus braços. Fiquei pensando em muitas possibilidades, possibilidades que eu nem deveria pensar. Fechei os olhos com força, espremendo qualquer dor que eles poderiam representar.

          Passamos a tarde toda ali, esperando por notícias. Mais ou menos umas cinco e meia um policial chegou nos procurando. Ele queria falar sobre o carro. Pedi para minha mãe me deixar tratar disso, mas ela teimou que estava bem e foi com o policial para uma sala conversarem.

          Fiquei sentada por um bom tempo, revezando minhas idas ao banheiro e ao bebedouro. Uma pontada insana perfurou meu estômago, que começou a resmungar. Eu estava com muita fome, não havia sequer almoçado. Passei a mão no bolso do meu jeans e cacei alguns trocados. Fui até o balcão e perguntei para a mocinha se havia alguma lanchonete por ali. Ela apontou um corredor e mandou-me segui-lo até o final.

          Fui andando e observando o branco que me cercava. Era um hospital, como posso dizer, muito bom para ser público. A iluminação era mais branca ainda, chagava a ofuscar de leve os olhos. Um clarão mais forte me cegou por um segundo, como um flash que atingia minha mente. Abri os olhos e comecei a ter uma sensação de deja vu. Pelo que me lembro, nunca havia entrado naquele hospital. Talvez uma vez, mas com certeza não me lembraria tão bem. Corri os olhos pelas portas, pelas alas e tudo pareceu já ser bem conhecido pela minha memória.

          Uma enfermeira passou ao meu lado com uma maca vazia e parecia que ela estava em câmera lenta. Fui acompanhando seus passos, fitando meus olhos principalmente na maca. Estava sentindo algo muito estranho dentro de mim, uma dor mista de um aperto que chegava a sufocar meus pulmões. Por que eu estava sentindo aquilo? Apertei o passo e tentei encontrar logo a lanchonete. Devia estar tendo alucinações de tanta fome que sentia. É, devia ser só isso.

          O corredor branco acabou e topei com duas máquinas de comida. Uma de refrigerante e outra de lanches naturais e salgadinhos diversos. Fiquei um pouco surpresa, pensei que encontraria uma lanchonete e não maquininhas, mas me contentei com isso mesmo. Peguei uma nota de dois e coloquei na máquina de refrigerante. Depois de devolver duas vezes minha nota, tentei desamassá-la ao máximo e empurrei-a para dentro de novo. Desta vez foi. Um barulho de lata batendo ecoou pelo corredor que estava um tanto que vazio. Peguei minha coca e fui para a outra máquina. Escolhi um lanche de cinco reais, pois era a única nota que eu tinha inteira. “Frango desfiado com queijo”, não me parecia mal. Coloquei a nota e a máquina colaborou de primeira. O lanche despencou da penúltima prateleirinha e eu o peguei.

          Caminhei vagarosamente de volta para a sala de esperas com meu lanche na mão. Não tive a sensação estranha de novo e isso me reconfortou. Quando cheguei lá, todos os lugares estavam ocupados e minha mãe não havia retornado ainda. Resolvi sair um pouco, tomar um ar fresco. Em frente ao hospital havia muitos bancos daqueles típicos de praça. Sentei em um vazio e comecei a devorar meu pão devagar, aproveitando ao máximo o sabor que eu encontrava.

          Não estava mais com fome, mas não queria entrar de novo. Senti uma brisa gostosa batendo no meu rosto, leve e gélida. Arrepiei um pouco e me aconcheguei mais ainda no banco, mesmo que duro. Fechei os olhos e comecei a lembrar de um certo dia, na frente da escola. Uma certa garotinha angelical e desmaiada, que visitara meus sonhos. Abri rapidamente os olhos, o coração um pouco acelerado. Tinham me falado que ela havia sido levada para o hospital logo depois do incidente da escola. Com certeza teria sido para este hospital. – olhei vagamente sobre os ombros – Será que ela encontrou os pais? Ou melhor, será que os pais a encontraram? Fiquei com uma vontade e uma curiosidade imensa de buscar informações, mas o que eu poderia fazer. Não sabia nem ao menos o seu nome.

           Conformei-me e desisti. Olhei para o relógio e resolvi entrar, minha mãe já devia ter sido liberada. Cruzei a porta de vidro e encontrei-a de pé, encostada em uma parede branca. Cheguei do seu lado e apoiei a cabeça em seu ombro.

           - Tudo bem? – perguntei.

           Ela balançou a cabeça com um fraco sorriso nos lábios.

           - Resolveu o negócio do carro?

           - Sim, foi um pouco confuso, não entendo muito dessas coisas, mas acho que está tudo em ordem.

           - Eu falei para você me deixar... – não consegui terminar, ela me interrompeu.

           - Não, faço questão de tratar dessas coisas. Você ainda é uma... – ela resolveu mudar a palavra. – Você é tão jovem para ficar louca com essas coisas.

           Dei um sorrisinho torto e a única palavra que vinha na minha mente naquele momento era “responsável”. O branco de tudo começou a ofuscar meus olhos, eles foram ficando pesados. Poderia tirar um cochilo longo e gostoso ali mesmo, em pé, encostada na minha mãe, mas não demorou muito para uma poltrona ser desocupada.

Cabiam duas pessoas, então fomos cambaleando até ela. Mal sentei e já estava sonhando.

            O branco intenso continuou ali, olhava para tudo ao meu redor, mas nada conseguia ver. Não estava com medo, pelo contrário, uma sensação muito gostosa havia invadido meu corpo. E eu estava deitada em um lugar macio como plumas. Minha vontade era de não levantar, ficar naquele nirvana mágico e prazeroso até enjoar da calmaria. Comecei a rolar e sentir meu corpo roçar na maciez daquele chão. Ri com os olhos e fui rolando e rolando sem medo de cair. Pois uma hora cai e não parei mais. Caia do branco para o branco até que uma mão segurou nas minhas. Era a garotinha na qual eu estava pensando não fazia muito tempo. Ela segurou minha mão e riu. Não parava mais de gargalhar uma risada gostosa e convidativa. Mesmo que eu estivesse caindo a pouco, não estava com medo e permiti que o riso tão bom me contagiasse. Enquanto tentava me conter, comecei a observá-la com mais precisão. Sua roupa era tão branca como tudo ali. Se não fosse por um contorno prateado, não saberia identificar onde seu corpo se fundiria com a paisagem. Seus pés descalços e pequenos pareciam flutuar no nada. Seus cabelinhos castanhos esvoaçavam e caiam sobre seus ombros delicados. Seus olhinhos tão azuis me cativavam ainda mais e eu sabia o motivo. Mas meus olhos se fixaram em uma outra coisa. Entre seus cabelos finos percebi uma correntinha, ou melhor, a correntinha. Não conseguia ver muito bem, pois ora estava tampada pelo cabelo, ora pelo vestido. Mas nas poucas vezes que o dourado reluziu em meus olhos, pude ter uma ideia, porém não uma certeza que aquela corrente era muito familiar para mim. Certeza vaga de um sonho, mas que minha mente guardou com muita clareza.

            Abri os olhos e meu pescoço doía. Minha cabeça estava encostada de mal jeito nos ombros de minha mãe. Eu estava torta e toda desconcertada no sofá minúsculo que tentava me espremer. Olhei para fora e já estava bem escuro. Mirei os olhos rapidamente para meus pulsos, mas meu relógio não estava ali.

            - Que horas são, mãe?

            - Sete e pouco.

        “Já!” Não dava para acreditar que eu havia dormido tudo isso.

          - Mel, nós vamos para casa daqui a pouco. Os médicos falaram que para hoje não vamos ter muitas novidades... – ela deu um suspiro profundo. – Não vai adiantar virarmos a noite aqui.

          Eu apenas confirmei com a cabeça, minha mãe também deveria estar exausta. Ficamos por mais um pequeno tempo até que ela decidiu ser uma boa hora para irmos.

Partimos em silêncio por quase todo o trajeto do ônibus. As duas pensativas. Não sabia o que fazer, como abrir um sorriso no rosto da Dona Lorena. Era muito difícil vê-la calada e triste sem conseguir ajudar. Comecei a me sentir um pouco inútil perante a tudo o que ela faz por mim, mas se houvesse algum modo de fazê-la sorrir, eu agarraria com unhas e dentes.

          A casa estava quieta, as luzes pouco acesas. O ânimo de comer, de estudar não chegavam e já estava bem claro que não chegariam. Enrolei-me em um lençol fino e subi para o quarto. Mal coloquei o pijama e já me estirara na cama. O quarto estava abafado mesmo com a janela aberta. Comecei a me sentir sufocada e não sabia se isso era apenas reflexo do calor.

          E se ele não melhorasse? Se não voltasse a ficar bom para falar algo? E se ele... Mordi a língua e expulsei os pensamentos da minha cabeça. Rolei da cama e deitei no chão mesmo. O piso frio começou a gelar minhas costas, uma sensação refrescante correu por todo meu corpo. Senti minha mente esvaziar aos pouquinhos do dia agitado, lentamente os pensamentos fúteis iam se apagando e os interessantes sendo arquivados, até não ter mais nenhum com que me preocupar. Apaguei profundamente.

          Senti uma mão me balançando longe, parecia ninar. O balanço foi ficando mais intenso e começou a lembrar mais com um chacoalho intenso. Comecei a me incomodar e abri meus olhos prontos e bravos. Deparei com uma figura embaçada da minha mãe. A luz forte ofuscava meus olhos e precisei ampará-los com minhas mãos. Não fazia a mínima ideia de que horas eram e fiquei um pouco confusa se aquela luz era do dia ou de lâmpada. Custou uns segundo para me acostumar. Era dia.

          - Mel acorda, Mel! – gritava Dona Lorena entusiasmada.

          -Mãe? – murmurei com uma rouquidão matinal.

          - Graças a Deus! Acabaram de ligar do hospital.

          - Hospital...?

Demorou um pouco para eu me sintonizar na realidade. Tudo de fato havia acontecido?

          - Oras Melinda, acorde de vez! Ligaram a pouco do hospital, vamos, se troque que as notícias são boas. Daqui dez minutos já quero estar saindo! – ordenou sorrindo.

          Fiquei feliz e consegui me concentrar quando vi seus lábios se curvarem. Ela sorriu. Temia não ver mais isso, mas ela sorriu. Senti-me um pouco boba em ficar repetindo essas palavras para mim mesma, mas afinal, ela sorriu. E isso era bom.

          - O que aconteceu? – perguntei ficando sentada na beira da cama.

          - Um milagre!

          A palavra não soou a meus ouvidos tão agradavelmente. Já havia aprendido muito bem que para um milagre acontecer, algum muito ruim tem que vir antes.

          - Milagre?

          - Sim Mel... Ele milagrosamente saiu da UTI e já está consciente no quarto. Nem os médicos conseguiram explicar essa recuperação relâmpago, já que as expectativas não eram das melhores. – sua voz ficou um pouco aflita nas suas últimas palavras, mas logo se recompôs.   

          - Mãe, essa notícia realmente é muito boa! – abri um sorriso de lado a lado das bochechas.

          - Pois então, já deve ter percebido que não vai a aula hoje. Se troque que vamos para o hospital neste instante.

          Na verdade, nem havia percebido que já estava tarde de mais para ir à escola. De início não fique incomodada com isto. Recordei as aulas que teria e vi que não iria perder muita coisa. O que realmente me deixou um pouco intrigada, é que eu não conseguiria novamente falar com ninguém. Mas comparar isso com o motivo da minha falta, não dá nem para reclamar.

          Coloquei uma roupa rápida e prática. Passei a mão em um saco de biscoitos e fui comendo no ônibus. Minha mãe estava me achando um pouco desesperada, até eu estava me achando desesperada, mas não sabia o motivo. O importante é que tudo estava dando certo.

          Chegamos ao hospital e por sorte, estávamos dentro do horário de visitas. Pegamos um crachá e seguimos por um dos muitos corredores brancos. Achei que sentiria um pouco de medo. Não queria sentir aquela sensação estranha de novo, principalmente com minha mãe ao meu lado, mas a sensação não veio, nem o medo. Muito pelo contrário, o branco parecia reluzir e brilhar insanamente com a luz da manhã que atravessava os vidros. A claridade era boa e banhava qualquer espécie de medo que poderia me afligir. Não estava ruim, estava bom. Bom até de mais para mim, que sempre ficava com um pé atrás para tudo.

         Paramos na frente de uma porta. 116. Entramos e lá estava seu Afonso, carrancudo como sempre. A cara amarrada me fez sorrir e eu pulei em sua direção, dando-lhe um forte abraço. Minha mãe veio logo depois de mim.

         - Pai! Você está melhor? – disse olhando para sua perna, que estava engessada.

         - Se para você, melhor é ficar de castigo sentado em uma cama e tomando sopinha, sim. – resmungou para mim.

         - Oras não reclame Afonso. Eu e a Mel sabemos muito bem que você não consegue parar quieto um segundo, pelo o que os médicos falaram era para você ficar aqui por muito tempo. Já teve muita sorte de receber alta hoje!

         - Hoje? – dissemos eu e meu pai juntos, voltando os olhos rapidamente para minha mãe.

         - É, hoje. Pelo o que eu entendi você saiu da UTI ontem a noite. Completando doze horas de observação, já está liberado. Agora se quiser, o médico alegou que você pode ficar mais um dia de observação se quiser!       

         - Mas nem morto! – pude perceber que se ele pudesse, sairia correndo dali de avental mesmo. – Vou embora hoje, agora!

         - Correção, você vai embora hoje, mas não agora. De tarde nós voltamos para de buscar e ver certinho o que vai acontecer. Não se esqueça Afonso, você saiu da UTI a poucas horas! – disse minha mãe com uma autoridade que me estimulou.

         - Verdade pai, é melhor não abusar da sorte.

         Ficamos conversando até acabar o horário de visitas. Meu pai ainda estava inconformado de não poder ir para casa, mas eu e minha mãe mantivemos o punho forte.

         No caminho de volta, mamãe estava um pouco quieta. Seu olhar era calmo e pensativo. Contive-me duas vezes antes de interromper seus pensamentos, mas não conseguir segurar uma terceira vez.

         - O que foi?

         Ela me lançou um risinho calmo e começou.

         - Estava pensando em tudo o que aconteceu, nas possibilidades. Seu pai está bem de espírito, mas você reparou? Ele tinha vários machucados no corpo, hematomas leves e esfoliações. Fico preocupada com as coisas. Dou graças a Deus dele ter melhorado extremamente rápido, mas e se isso for apenas coisa momentânea? E se depois piorar?

       - Não mãe, não pense assim... Nunca mais. Pensamentos negativos só atraem coisas negativas. Vá sempre pelo lado positivo. Ele melhorou por completo, as feridas se curam com o tempo. Nós vamos superar essa, a final sempre acontecem acidentes de carro... – minha voz estremeceu aí.

        Não só eu, mas minha mãe também, paramos e ficamos nos encarando por uns segundos. Até então, não havia caído a ficha de que eu não sabia o que de fato havia acontecido. Sabia de tudo por cima, apenas que meu pai havia sofrido um acidente, assim como a moça do telefone havia me falado. Em nenhum momento perguntei para minha mãe o que havia se passado realmente, estava tentando ao máximo poupá-la.

         - Foi um acidente de carro, não foi? – tentei confirmar.

         Ela ficou em silêncio por um tempo, mas interrompeu-me logo quando eu iria retomar a pergunta.

         - Bem, foi...

         - Foi...?

         - Ai Mel, nem eu entendi muito bem quando o guarda me contou. Na verdade nem o guarda soube me explicar muito bem. Você acredita que ele até me pediu desculpa pelo o que estava falando, que sabia que era uma insanidade comentar aquelas loucuras...

         - Que loucuras? – interrompi.

         - Como posso dizer... Para você, isso vai ser... Qual a palavra mesmo? Ah – exclamou – caretice. 

         - Não me importo, só fale. Tenho certeza que não vai ser caretice. – dei os ombros.

         - O guarda falou que tudo aconteceu bem perto de casa, na esquina da Alencar com a Principal. Ah! Bem na frente daquele ponto de ônibus, sabe?

         Confirmei com a cabeça e a fitei curiosa.

         - Pois então. Ele falou que havia um garoto e uma mulher no ponto e eles serviram de testemunhas. Está aí o “careta” da história. Ambas as testemunhas começaram a narrar igual, falando que seu pai estava vindo de carro e no cruzamento, um outro carro veio e bateu com tudo, bem na lateral do motorista. O que ficou de diferente foi que a mulher alega de pé juntos que viu antes da batida, um vulto preto ou uma fumaça, passando na frente do outro carro, fazendo o motorista assustar, acelerar e bater no seu pai. E ela ainda acrescentou que bem neste momento o garoto que estava do seu lado sumiu por uns instantes e depois voltou na hora de prestar o socorro. Já o garoto, negou tudo.

         Tentei interromper, mas ela levou sua mão a frente do meu rosto me brecando.

         - O menino falou tudo ao contrário, que não havia visto vulto algum e que não arredara o pé do ponto de ônibus por um segundo sequer. Estão fazendo testes de sanidade mental na mulher, acham que ela pode ter algum problema que ainda não sabe. Mas ela não nega sua versão, crê nela veemente.

         Meu queixo caiu levemente. Eu não tinha as melhores lembranças de “fumaças negras”, quanto menos de vultos. Estremeci por alguns segundos e acho que minha mãe percebeu minha reação estranha, pois fez uma cara de “não acredito que você acreditou”. Tentei me recompor rapidamente, não queria deixá-la mais aflita do que poderia estar.

         - Caretice. – tentei convencê-la.

         Por um instante achei que não havia sido convincente o suficiente, mas logo relaxei.

         - Foi o que eu pensei...- murmurou.

         - Oras mãe, nada a ver uma “fumaça negra” surgir de repente e provocar tudo isso! – brinquei.

         - Realmente, não sei onde estava com a cabeça quando pensei nisso. É que sempre queremos achar respostas para coisas que não podem ser respondidas.

         Na hora um sonho veio em minha mente. Como já disse, minha memória é muito boa e arquiva tudo o que julga ser interessante. Pena que não recordo das coisas instantaneamente, quando quero, e sim quando minha cabeça resolve mandar as lembranças de volta. Lembrei de uma vez, acho que a primeira vez em que a garotinha angelical veio nos meus sonhos. Ela me disse algo parecido a respeito de “sempre se querer achar respostas para tudo”.

          Chegamos em casa e nada fizemos até termos que retornar novamente para o hospital. A tarde voara e eu nem havia dado conta disso. Repetimos todo o processo da manhã, só que desta vez, veja só, voltamos de carona em uma ambulância. Sim, isso soou um tanto que estranho, mas os médicos alegaram que não seria bom para meu pai tomar um ônibus. Ele podia estar melhor aparentemente, mas ainda teria que ficar de repouso e observação em casa.

          A ambulância estacionou a porta de casa, o que gerou certo murmúrio entre as pessoas que trafegavam pela rua. Entrei logo após meus pais, um pouco corada e incomoda com a situação, mas deixei meu orgulho e egoísmo de lado e encarei os fatos reais. Era para o bem de uma pessoa querida.

          Não muito depois de termos entrado, a campainha ecoou pela casa. Minha mãe estava no quarto ajeitando meu pai, que teimava que não precisava de tantos mimos. Creio que no meio da discussão nem ouviram a campainha tocar, então disparei do meu quarto e abri a porta.

          - Daniel? – minha voz empalideceu com tremendo espanto.

          - Mel, tudo bem? – disse levando a mão ao meu rosto, que com certeza devia estar branco ou talvez vermelho.

          - Deni? – me senti uma retardada perguntando novamente, mas nunca imaginei que ele viria tão de inesperado.

          - Eu. – respondeu rindo de leve. Sim, ele também deveria estar me achando uma esquizofrênica.

          Mordi a língua antes de repetir seu nome pela terceira vez e custei alguns segundos para imaginar o que ele estava fazendo aqui.

          - O que está fazendo aqui? – se eu continuasse repetindo tudo o que pensava, essa conversa não teria um fim tão promissor.

          - Só vim fazer uma visita... – respondeu pausadamente.

          De fato eu precisava mudar meu tom antes que ele se arrependesse de ter vindo. Expulsei o espanto e joguei-o o mais longe que consegui. Abri um longo sorriso e tentei ao máximo não parecer mecânica de mais.

          - Ai Deni, desculpe se estou parecendo um tanto que... Inconveniente. – nessas horas, a salvação é usar palavras difíceis. – Entre!

          Minha mente só pensava em uma coisa. Ele veio e deve haver um motivo para isso. Será que estava com saudades de mim? Essa ideia só valeria por mim, pois com certeza um garoto não seria tão romântico ao ponto de não resistir a ausência de sua amada por um dia. E, além disso, nem consigo ter total certeza do que ele sente de fato. Meu sorriso se fechou um pouco com essa hipótese desfeita, mas logo afastei as penumbras destes pensamentos e perguntei antes de qualquer coisa.

          - Por que veio? – palavras erradas novamente. Saíram rudes e secas, mas isso era apenas reflexo da minha ansiedade. Pensei em me corrigir, mas logo percebi que elas não o afetaram.

          - Vim saber como você está. – disse naturalmente.

          Meus olhinhos brilharam de ternura. Ele estava preocupado comigo.

        - Estou bem e você?

        - Mel, não fuja de si mesma. E lembre-se, o seu bem estar envolve o de todos ao seu redor. – suas palavras cruzaram sabiamente meus ouvidos.

         Uma luz acendeu para mim. Como posso ser tão tonta ao ponto de esquecer o motivo de tudo? Somente as palavras de Daniel para me reforçarem as ideias. Estava tão cega com os olhos azuis e tão curiosa para saber o motivo da visita, que não consegui lembrar de todo o ocorrido com o meu pai. Que pessoa cruel essa que consegue se desligar do mundo real tão facilmente, não dando mais crédito a nada do que não esteja incluso aos seus sonhos. Era eu, eu e meus caprichos. Balancei um pouco a cabeça para afastar as ideias impróprias. Sentei em uma poltrona e apontei para o sofá, onde ele se sentou. Senti uma pontada de arrependimento quando percebi que se eu estivesse sentado no sofá primeiro, logicamente ele se sentaria ao meu lado e tudo ficaria melhor do que já estava. Mas me conformei apenas com sua presença. Eu aqui e ele ali.

         - Deni, como adivinhou? – só então minha fixa caiu. – Realmente, eu estou bem de certo modo, mas meu pai... – travei assim mesmo.

         - O que aconteceu com seu pai. – sua voz continuava calma e pausada.

         - Bem, agora ele está melhor, mas ontem... Ah, ontem ele sofreu um acidente de carro, foi parar até na UTI!

         - Mas agora está tudo bem mesmo? – ele intensificou bastante o “tudo”.

         - A meu ver, sim. Tem que ficar de observação por um tempo, mas milagrosamente ele já pode ficar em casa. – senti-me um pouco esquisita falando de milagres assim, tão banalmente.

          - Sorte que fiz tudo certo... – murmurou tão baixo, tão para si, que não era nem para eu ter escutado, se é que de fato ouvi.

          - O que disse? – perguntei curiosa.

          - Disse o quê?

          - O que você acabou de murmurar! – pedi.

          - Ah... Bem, nada de mais... Só que foi uma sorte dar tudo certo...

          Não foi exatamente isso que eu ouvi, mas fica o dito pelo o mal escutado.

          Conversamos um pouco e Daniel estava com o olhar vago, calmo e piedoso. Não sei de onde tirei a impressão de piedade, mas era como se o azul implorasse por algo que eu não sabia ao certo o que era. Grande novidade esses mistérios de Daniel.

           Ouvi passos na escada e vi que era minha mãe descendo pausadamente, com medo de interromper algo de importante. Como eu iria explicar a visita sem inesperada de Deni? Nem eu sabia e também não ia dar tempo de pensar em muita coisa. Agarrei o bloquinho de notas que estava sobre a mesinha e disse:

            - Prossiga Deni, página 33,34 e 35 de Biologia 1. E Matemática?

            Eu estava sendo totalmente dissimulada na frente da minha mãe e Daniel foi obrigado a entender minha tática por uma telepatia monstruosa, que creio ter funcionado.

             - 41, 42 e exercícios da aula 43? – disse ele com uma cara engraçada.

             - Quanta coisa! Mas tudo bem, vou colocar a matéria em dia no fim de semana. – anotei qualquer coisa no bloquinho. – Ah, oi mãe... – virei a cabeça para a escada e fingi vê-la naquele exato instante. – O pai está melhor? Bem, Deni passou aqui para me falar das aulas que perdi hoje...

              - Claro! Tudo bem Daniel? – perguntou minha mãe, espero que sem desconfianças.

              - Tudo sim e com a senhora?

              - Tirando o fato do Afonso... – ela suspirou.- Tudo sim...

            - Ah, entendo... Falando nisso, acho que já entendi tudo o que deveria por hoje. Estou indo Mel.

            - Mas... – persisti.

            - Realmente o melhor é eu ir Mel... Tchau dona Lorena, espero que seu marido melhore logo. – ele acenou para minha mãe e eu o acompanhe até a porta.

            - Bem Mel, espero que dê tudo certo, só vim saber disso mesmo.

            - Mas... – nem eu sei o que ao certo queria falar, porém continuei insistindo.

            - Tchau. – ele se inclinou e beijou minha bochecha, rosada com certeza. – Amanhã a gente se fala melhor. - ele piscou um olho e deu as costas, seguindo pela rua até dobrar a esquina.

            Três coisas ficaram pendentes na minha cabeça. Primeira, por que Deni veio me visitar sem motivo? Segunda, por que ele insistiu em perguntar se tudo realmente estava bem? E finalmente uma terceira. Uma de suas frases me intrigou “Acho que já entendi tudo o que deveria por hoje.” Entendeu o quê? Eram tantas perguntas, tantas frases sem conclusões. Sempre aquele ar de inacabado rodeava Daniel. O indecifrável Daniel.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham curtidooooooooo o/
Coments ^^