Devorar-te-ei: Memórias póstumas de um amor escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 18
Sonho




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Joguei-me na minha poltrona e bufei, encarando os papéis bagunçados sobre a mesa, tinha sido um dia perdido. Não podia dizer que tinha avançado na investigação, mas pelo menos eu podia fazer uma pequena lista de quem entrara na sala e eu conhecia. Dificilmente algum estrangeiro seria o responsável pelos ataques... Que objetivo eles teriam pra me atacar?
Tirei as luvas e joguei-as na poltrona a minha frente, afundando-me mais na que eu estava sentada. Mordi o lábio, pensativa, e no mesmo segundo me lembrei de Ciel. Dos lábios dele, quentes, contra os meus... senti um calor descer por minha espinha; enquanto Sebastian me deixava entorpecida, Ciel me fazia sentir viva. Era como dois lados de uma mesma moeda, embora ambos não fossem certos para mim.
A porta do escritório se abriu bruscamente, provocando um estalo no meu corpo que estava tão relaxado. Sebastian entrou e caminhou a passos largos até a minha mesa, retirando um envelope do bolso interno do unifotme e estendendo-o a mim. Eu não sabia se ficava surpresa ou confusa com a chegada dele. Ao mesmo tempo que queria abraçá-lo, sentia uma aura diferente nele, algo que me mantinha afastada...
— Sebastian... - comecei, aceitando o envelope.
— Este é o relatório de hoje, aproveitei que tinha resolvido aquele pequeno contratempo mais tarde do que eu esperava e me adiantei para o baile a qual fomos convidados.
Instintivamente eu engoli em seco, sentindo algo travar na minha garganta e quase me sufocar. Sebastian estava lá. Eu não tinha o visto, sequer tinha sentido... Mas ele estava lá, e, se estava, tinha me visto. A questão era, o quanto ele tinha visto? Senti meu rosto queimar ao me lembrar de Ciel e imaginar a reação do meu mordomo acompanhando toda a cena em tempo real. Os olhares... o beijo... corei ainda mais.
— Me permite confessar uma coisa? - ele cravou os olhos nos meus; não sabia se era coisa da minha cabeça, mas sentia que e le estava tentando-me a dizer a verdade.
— C-claro... - ocupei-me em tentar romper o selo do envelope com as unhas, baixando o olhar
— A senhorita estava adorável no baile... - ele pegou as luvas que eu tinha jogado na poltrona e acariciou-as. - Eu tive de me retirar por um momento, para investigar mais de perto alguns suspeitos... e vi que aquele homem a acompanhava...
— Ciel? - voltei a olhar para ele, que só assentiu.
— Espero que ele não tenha lhe feito nenhum mal enquanto eu estava longe... - Sebastian soltou, mais como uma pergunta que como uma afirmação.
— N-não. Lógico que não Sebastian! E se preocupar com isso também não era sua prioridade lá. - menti, controlando meu rubor.
— Entendo... - ele fez uma pausa e analisou-me em silêncio, não era preciso fazer muito esforço pra saber que ele estava vasculhando minha mente em busca de algo, mas logo desistiu. - Sobre a dama que se passou pela senhorita...
— Também me intrigou. - entrelacei os dedos e descansei as mãos sobre o peito, apoiando meu queixo nelas - Imaginei que o ultimo ataque tivesse sido coordenado pela marionetista, depois de ver a cópia que ela fez de mim e como ela era realista. - ergui uma sobrancelha para Sebastian. Ainda não tinha me esquecido do que ele aprontou com aquela marionete... Não tinhamos conversado sobre isso ainda, e eu não tocaria no assunto. Isso poderia acentuar o abismo entre nós. - Mas você já deu conta dela e mesmo assim os ataques continuam. São dois casos isolados... O que quer dizer....
Ele sorria pra mim, visivelmente orgulhoso. O que me fez bufar antes de conntinuar.
— Isso está num nivel muito maior de anormalidade do que estamos acostumados. - suspirei, era tanto pra se pensar em tão pouco tempo que minha cabeça girava e chegava a me dar náuseas. - E o Kyro? - disse por fim
— Morto. - meu mordomo disse. Pura e simplesmente, só disse.
— O quê?!
— Já estava morto. Não sei a quanto tempo, mas quando consegui eliminar aquele lixo, seu noivo já não estava mais lá.
— Então não foi você?
— My lady... Costumo lutar mais honradamente por aquela que amo.
— O-o quê? - me estiquei na cadeira, acho que toda essa confusão acabou afetando minha audição
Sebastian soltou minhas luvas sobre a mesa e contornou a mesma, chegando até minha poltrona e ficando a alguns passos de distância apenas. Deu mais um passo e pude sentir a perna dele roçando no meu vestido enquanto ele avançava. Mais um passo, agora eu conseguia sentí-lo tocar minha perna, além do vestido. Ele se inclinou sobre mim e meu único reflexo foi fechar os olhos e virar o rosto um pouco, meu corpo nunca fora capaz de rejeitar qualquer toque ou atenção do meu mordomo, mas agora cada milimetro de pele se eriçava e se esforçava para empurrá-lo para longe. Mas ele apenas fungou o topo da minha cabeça e a lateral do meu rosto, farejando como um cão de caça. E em um instante seu semblante mudou.
— Fica dificil proteger alguém que não quer ser protegido, my lady. - ele disse sério, apertando as têmporas. Eu apenas o encarei em silêncio. - Eu sabia que tinha algo diferente assim que entrei, esse cheiro que está em você não vai sair nem com mil banhos. Esse cheiro sujo...
— Sebastian! - levantei-me e bati as mãos na mesa com raiva, não importa que motivos tivesse, isso não era jeito de se falar com sua senhora.
— Perdoe-me my lady... Mas fica dificil enxergar minha jovem dama que tanto amo sob esse cheiro putrefe. Aquele homem tocou em você, não tocou? Ele tocou na minha dama... Na minha dama....
— Eu não sou sua propriedade! - gritei, notando tardiamente que não era pra tanto e como estava sendo ingrata com aquele que sempre me protegeu - Não me trate como tal... - terminei num sussurro.
— Perdoe-me my lady... - ele fez uma reverência e antes que pudesse me dar conta eu já estava sozinha na sala.
Despenquei na minha poltrona. Não sei o que me deu. Eu simplesmente explodi e descontei nele todas as minhas emoções fora de controle... Tenho certeza que ele estava falando de Ciel quando comentou sobre o cheiro e sobre alguém ter tocado na propriedade dele. Desde o primeiro momento percebi que havia um atrito entre os dois, mas ainda não sei porque. Sebastian pode ter ciumes de muitas pessoas, mas não a esse nível. Nunca chegou a me desrespeitar por ninguém, ou por nada...
E ainda tinha o Kyro... O descaso fora do normal não me deixa acreditar que ele disse a verdade. Se kyro foi morto antes de virar uma simples casca, quando foi? Foi em algum momento entre a nossa discussão e o momento que encontrei-o no quarto? Ou foi no curto espaço de tempo em que estávamos conversando e ele se transformou?
Como iria explicar isso pra familia dele? Como pude permitir que algo assim acontecesse? Ainda mais sob minha supervisão?!

— O que eu estou fazendo errado?... - questionei a mim mesma. 

Era como se eu estivesse sendo atacada por todos os lados. Kyro me atacara e agora estava morto porque alguém lá embaixo tinha sido contratado pra me matar... Ou pior, alguém lá embaixo me queria morta por vontade própria. Mas isso só confundia mais as coisas! Por que alguém do submundo iria me querer morta? Que vantagens teriam? Fazia muito mais sentido alguém deste plano querer se livrar de mim por interesses politicos ou comerciais, eu não era uma pessoa muito querida pela sociedade. Já não era naturalmente, agora que prestava serviços "sujos" pra rainha então ... é a velha estória: o avestruz sabe onde mete a cabeça, o problema é: não nasci pra ser um avestruz. Minha cabeça estava num buraco que eu desconhecia as dimensões ainda e, pior, estava a prêmio.

Levantei-me peguei o relatório de Sebastian, juntamente com minhas luvas. Apaguei a luz da mesa e me dirigi ao meu quarto, chutando os saltos pra longe tão logo fechei a porta. Coloquei o envelope na cama e pendurei as luvas na cabeceira da mesma, dirigindo-me até o espelho que ficava do lado oposto do quarto. O espelho era do meu tamanho, talvez alguns centimetros menor que eu apenas, e sua moldura parecia ter sido desenhada pelo mesmo artista que cuidou das igrejas no centro da cidade, tamanhos eram os detalhes. Olhando diretamente pra ele, eu via uma garota perdida, mais perdida que nunca, aliás. Não gostava do que via. Não podia transparecer meus medos e aflições, tinha que ser sempre a garota forte que daria continuidade ao nome da família, a sobrevivente!
Sobrevivente...
Pensar nisso me fez lembrar do que a marionetista me mostrou. Não tenho memórias suficientes para contestar a veracidade do que vi com ela, mas se ela realmente me mostrou a verdade, tudo o que sei é uma mentira. Meu pai não foi morto por um SM... e minha mãe não desaparecera. Foi Sebastian. O fiel escudeiro do meu pai, a quem ele confiou a vida e, com isso, acabou morrendo...
Não podia ser. Minha mente e meu coração entravam em conflito quando pensava nessa hipótese...
Comecei, com alguma dificuldade, a desabotoar meu vestido, deixando que ele caísse aos meus pés e só sobrasse meu espartilho e minha roupa de baixo. O decote do espartilho projetava meus seios para fora, deixando parte da marca do contrato a mostra, puxei-o um pouco mais e pude vê-la por completo, parecia uma sujeira na minha pele. Como uma mancha de café num vestido branco, logo a marca não passaria de um borrão. A única coisa visivel era a corrente vermelha sobre ela, ainda num tom vibrante. Toquei-a com a ponta dos dedos e senti minha pele quente.
Não entendia o que estava acontecendo, algo assim não deveria ser possivel! Deve ter um jeito de reverter isso... embora tenha minhas duvidas sobre o passado e tenhamos nos aborrecido, não posso me permitir perdê-lo. Não posso permitir que ele me abandone também, não ele.
Puxei os fios do espartilho com raiva, acabei dando um nó e ficando presa, não importava o quanto eu puxasse ele sequer se movia. Não tinha escolha, não conseguiria me livrar dessa sozinha. Puxei uma corda que ficava ao lado da cama, tocando um sino no quarto de Merye para que ela viesse me ajudar, poucos minutos depois ela entrou apressada no quarto, fazendo uma reverência. Seu avental estava sujo com uma espécie de pó preto, a importunei bem enquanto ela limpava suas armas...

— Ajude-me aqui por favor. - virei-me de costas pra ela, indicando o espartilho.

— S-sim, my lady... - ela se aproximou, os dedos ageis desatando o nó rapidamente e terminando de soltar aquela terrivel peça de roupa que me deixava sem ar. - Permita-me ajudá-la com o cabelo também.

Assenti, e ela começou a retirar, um a um, os grampos do meu cabelo, desfazendo o penteado glamuroso que tinha dado tanto trabalho para fazer. Logo eu estava só com minhas roupas de baixo e meus cabelos soltos cobrindo meu corpo, abracei-me e continuei encarando a minha figura magra e pálida no espelho enquanto Meyre pegava uma camisola para eu vestir. Tomei o cuidado de esconder a marca do contrato com uma mecha de cabelo, não queria que essa noticia vazasse entre os empregados, muito menos que chegasse ao ouvido de Sebastian. Embora talvez ele já soubesse...
Meyre me trouxe uma camisola de tecido branco leve que eu permiti escorregar por meu corpo sem pensar. A peça ficou na altura dos meus joelhos, um pouco abaixo, e escondeu de vez minha silhueta, me deixando parecida com um fantasma. Agradeci minha criada com um sorriso murcho e ela pareceu perceber que havia algo errado.

— A senhora está bem?

— Não se preocupe comigo Meyre, só estou atarefada demais...

— Quer que eu lhe prepare um chá? 

— Sabe que eu não suporto chás ... - ri, lembrando-me que ela talvez não fizesse ideia dessa peculiaridade já que era Sebastian que cuidava das minhas refeições rotineiras. - Pode se retirar, já vou me deitar... 

— Boa noite, my lady... - ela fez uma reverência e saiu.

Finalmente desviei o olhar do espelho e encarei o resto do quarto, a única coisa deslocada aqui era eu, todo o resto estava onde deveria estar... alguns passos e eu já estava na cama, joguei-me com todo o meu peso contra o colchão, afundando o rosto entre os travesseiros. Meus olhos se fecharam sozinhos e minha mente se entregou, o único momento em que tudo fazia sentido era quando estava dormindo. Meu corpo parecia ter percebido e se entregava sem pensar.

...............................

Ouvi um barulho suave, baixo o bastante pra me fazer ignorar num primeiro momento. Abri um pouco os olhos, os cilios entrelaçados juntando-se a visão turva e atrapalhando-me a enxergar. Mesmo assim vi um vulto esguio se aproximar da cama, segurava um pequeno castiçal que mal dava conta de provar a propria existência contra a escuridão. Pisquei por um longo segundo e senti o peso do estranho na minha cama, primeiro o joelho entre minhas pernas e em seguida as duas mãos, uma de cada lado da minha cabeça. Abri novamente os olhos e pude fitar duas orbes cor de sangue me encarando.
Lembro-me de, em meio ao sono, ter pensado algo como "é só o Sebastian..." e ter desligado meu instinto de defesa, relaxando e me entregando a uma piscada ainda mais longa. Senti o hálito de Sebastian bater contra meu pescoço e seus lábios se chocarem contra o mesmo, provocando um arrepio pela mudança de temperatura.
Os dedos dele se prontificaram em abrir caminho pela minha camisola, alcançando meus seios mais rápido do que qualquer um alcançaria. Meu primeiro impulso foi de proteger-me, mas meu corpo não se movia; tentei chamar seu nome mas minha boca não se abria... era como se eu estivesse num transe. 90% de mim ainda estava entrege ao sono, os outros 10% tinham certa consciência do que estava acontecendo...
Senti seus dedos frios tocarem a marca do contrato, senti-a queimar no mesmo segundo. Ele hesitou por um segundo, senti o estalo de seu corpo sobre o meu. Em seguida ele passou seus dois braços ao meu redor, erguendo-me contra si. Sebastian... o que está fazendo?
Meu corpo se chocou contra o dele. De inicio, senti meu corpo ficar frio ao ponto de tremer um pouco, mas logo me senti em chamas, como se o corpo dele fosse a faisca e o meu o álcool. Soltei um gemido, começando a despertar.

— sebastian.. - soltei num sussurro, a garganta arranhando

Ele empurrou meu queixo pra cima, desviando meu rosto do dele e virando-o pro teto da minha cama. Senti os lábios dele sobre a marca do contrato, invés de gelados eles pareciam ferro em brasa. Podia jurar que senti o cheiro da minha carne queimando com o contato.

Algo dentro de mim se acendeu e um choque percorreu minhas veias, fazendo-me abrir os olhos rapidamente e me preparar pra empurrá-lo agora que tinha controle sobre meu corpo. Empurrei com toda força, mas não tinha ninguém lá, eu só consegui empurrar o nada.
Olhei em volta, tudo estava exatamente como eu tinha deixado, até mesmo os sapatos espalhados um em cada canto. Um estalo no meu cérebro, olhei pra baixo para ver minha camisola mas ela estava intacta.
Não sei dizer se estava sonhando ou tendo um pesadelo, mas não estava louca ao ponto de duvidar que Sebastian estivera aqui.


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