Devorar-te-ei: Memórias póstumas de um amor escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 17
Reincidência




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O tic-tac do relógio na parede me irritava profundamente. Talvez fosse o som repetitivo ou a demora de Sebastian, mas minhas mãos suavam de nervoso por sob as luvas chiques.
Segui o cronograma, preparando-me para o baile ao qual iríamos. Me senti fútil enquanto permitia que Meyre prendessse meu cabelo num coque incrivelmente alto e justo, enfeitando-o com pequenas presilhas de flores e, por fim, soltando os bobes para que alguns cachos emoldurassem meu rosto. Meu mordomo estava em algum lugar por aí lutando a minha guerra e aqui estou eu, como a garota mimada que sou...
—É meu dever... -defendi-me de mim mesma, lembrando mais uma vez do meu objetivo no baile: encontrar informações sobre o SM abusado que ousou entrar no meu território.
Além do mais, não é como se eu pudesse sair por aí correndo atrás de Sebastian. Além de eu fisicamente realmente não poder, os empregados tinham ordens expressas de me proteger em caso de ataque e, bem, habitualmente Meyre não demoraria tanto tempo para fazer um penteado.
—Já está ótimo Meyre, obrigada. Pode preparar a carruagem que em breve estarei descendo.
—M-Mas senhorita... -ajeitou os óculos nervosamente
—Tenho trabalho a fazer, é uma excessão à regra. Sebastian vai entender. -desviei o olhar do meu reflexo no espelho para o reflexo dela, mantendo-o firme. -Vá.
Uma reverência apressada e ela apressou-se para fora do quarto, deixando-me sozinha. Me admirei por mais alguns segundos, desde o vestido carmin que acentuava até as curvas que eu não tinha até o batom vermelho vivo em meus lábios. Imagino como deve ser a sensação de aproveitar tudo isso, quero dizer, como uma garota normal usualmente aproveita. Sem o incomôdo da lâmina de emergencia presa na cinta liga ou da pequena pistola disfarçada na lateral da bota, sem a incerteza de sua segurança também ... Deve ser bom, mas certamente não é pra mim.
Segui para o quarto de hóspedes onde Kyro estava, Marye tinha dado uma arrumada desde o incidente mas minha mente reproduzia a bagunça que meus olhos não conseguiam mais ver. Depois que o demônio se foi e me recuperei do ataque, percebi que meu noivo havia sido possuído por algo de fora da mansão. Talvez algo tenha se aproveitado para entrar nele no tal ataque do qual ele me acusava e se mantido adormecido até então ... Mas como essa coisa sabia da ligação dele comigo?
Eles tinham um contato aqui fora... um contato próximo a mim.
Aproximei-me da janela quebrada e toquei um dos cacos que ainda estava agarrado à moldura de madeira maciça, esperava que Sebastian estivesse seguro. Desde o encontro com a marionetista, nossa ligação estava meio abalada... Ele não me disse nada, talvez para me proteger da verdade ou talvez porque sabia que não precisava, mas eu sabia que algo tinha mudado entre nós. Não sei o que aquela desgraçada fez, mas ela conseguiu enfraquecer nosso contrato. A marca provava isso. Era como se estivesse bloqueada, dificultando a comunicação entre as duas partes, entre mim e meu mordomo...
Apertei com força o caco de vidro, descontando nele minha raiva e frustração. Parei apenas quando me dei conta da dor, mas o sangue já escorria dos dois lados do vidro. Passei a mão no lençol bagunçado que estava sobre a cama, pressionando fortemente contra o corte para estancar um pouco o sangue e não me sujar, de forma que não preocupasse Marye e não desse motivos para ela acatar as ordens de Sebastian ao invés das minhas.
Iria provar que era útil, não uma mimada mal acostumada como todos pensavam. Iria fazer valer o esforço que meu demônio investia em mim e continuar a investigação como uma boa servente da rainha faria. Como meu pai faria.
Ouvi o som de cascos batendo contra as pedras da entrada e me preparei para descer, fazendo um pequeno desvio e passando pelo quarto para pegar um novo par de luvas, escondendo o outro sob a cama para que Marye não o encontrasse. Chequei mais uma vez minhas armas e desci com calma, encontrando meus empregados reunidos ao pé da escada, todos me encarando numa postura exemplar e me reverenciando assim que cheguei perto o bastante.
—Minha senhora... -Tanaka começou
—Por favor, cuide-se. -todos disseram, surpreendendo-me com o sincronismo.
—Permita que eu a acompanhe, à distância. Não vai notar minha presença a menos que seja estritamente necessária ...
Marye retirara seus óculos, todos sabiam o que isso significava. Embora suas roupas ainda fossem as da minha empregada estabanada, seu porte e espírito eram da velha atiradora de elite especialmente recrutada por Sebastian. Sabia que, desta forma, ela não me atrapalharia, pelo contrário, seria bem útil... então permiti que me acompanhasse pelas sombras.
Me olhei mais uma vez no espelho grande que tinha na entrada e treinei meu sorriso mais sociável, como já era de costume antes de grandes eventos sociais. Em seguida segui para a carruagem sozinha, Marye tomaria outro caminho para não chamar a atenção.
A carruagem parecia incrivelmente grande e vazia sem meu mordomo ali. Até mesmo o ar parecia ser demais para meus pulmões, fazendo com que eu ficasse nervosa e minhas mãos suassem um pouco. Tentei me lembrar da última vez em que estive completamente sozinha assim, mas logo me dei conta de que era a primeira, o que fez meu estômago revirar. Me preparei para os comentários que poderiam surgir pela ausência do meu noivo em um evento tão importante e pela atenção que eu poderia acabar atraindo, respirando fundo algumas vezes e fechando os olhos para me concentrar em meu objetivo. Quando dei por mim, a porta estava sendo aberta pelo coxeiro, que me estendeu a mão para me ajudar a descer.
O som do meu salto contra os degraus de mármore pareciam ensurdecedores contra a escuridão da noite, de forma que fosse dificil entender como ninguém mais parecia notá-los. Pelo canto do olho, percebi uma sombra na extremidade oposta da construção, notei de primeira que se tratava de Marye. Nunca ousei perguntar como ela podia ser tão diferente se colocasse um par de lentes na sua frente e depois as retirasse.
—Madame... -o guarda fez uma reverência cordial, cumprimentando-me e esperando pelo meu nome para que pudesse me anunciar.
—Kyotsu. -disse num murmúrio.
—Lady Kyotsu! -ele declarou para todo o salão, a voz alta e equilibrada, sem precisar gritar.
Dei um passo à frente e passei pelas cortinas que pendiam no pequeno corredor de entrada, de forma que pudesse ver o que me aguardava. Engoli em seco ao ver o salão lotado de rostos conhecidos e desconhecidos, todos da mais alta classe social e membros da corte.
Saí do corredor e caminhei ziguizagueando os grupos que se formavam para conversar sobre negócios ou outros assuntos ainda mais maçantes, dando de cara com uma torre de taças delicadas incrivelmente empilhadas umas sobre as outas. Afastei-me com cuidado e agarrei a primeira taça de bebida que me ofereceram. Não era do meu feitio, assim como nada mais nessa noite, mas era conveniente.
—Lady Kyotsu, que prazer encontrá-la por aqui! -uma jovem loira me cumprimentou, seguida por seu pequeno grupo de outras jovens.
Claro que eu notei o tom de sarcasmo na voz dela, assim como seu olhar me julgando dos pés à cabeça, mas nada podia fazer além de ignorar. Era muito azar ela ter sido o primeiro rosto conhecido que encontrei esta noite...
—Lady Jones... -acenei com a cabeça, cumprimentando-a. -há quanto tempo.
—Nem me diga. Chegou aos meus ouvidos que você estava no baile do conde Tokudaiji, fico feliz em vê-la bem assim. Soube que alguns nobres se feriram e imaginei que tivesse sido seu caso.
Aposto que sentira-se decepcionada ao não receber um convite para meu velório ao invés de me ver aqui de pé. Contive uma bufada e sorri.
—Foi mesmo muita sorte...
—Você está divina esta noite... certamente foi convidada para a parte exclusiva para jovens damas, estamos indo pra lá agora, eu e minhas amigas.
Pude ver por sobre o ombro dela as outras jovens rindo e cobrindo a boca para sussurrar coisas umas às outras. Certamente sabiam que eu não fazia ideia do que estavam falando e estavam se divertindo por serem mais "importantes" do que eu de alguma forma. Nada além do habitual.
—Ah... -ela cobriu a boca, com uma expressão de quem havia falado demais. -Esqueci-me que estas confraternizações não fazem seu tipo, e tem o conde Tokudaiji também ... Não será tão divertido sem você.
—Certamente que não... -murmurei, revirando os olhos
—O quê? -antes que eu pudesse disfarçar ela me interrompeu -Não importa, já estamos atrasadas. Não conte a ninguém sobre esta festinha particular, certo? É secreta, como disseram no convite.
Ela piscou pra mim e mandou um beijinho, assoprando-o pra mim antes de contornar a mesa com a torre de taças e seguir salão a dentro. Suspirei aliviada, esses encontros eram realmente cansativos, eu não sabia ser falsa e fingir interesse e cordialidade por muito tempo.
Olhei em volta e vi o mar de gente cada vez maior cercando-me por todos os lados. Senti-me sufocada por ser uma ilha solitária no meio daquilo tudo, o ar parecia imensamente mais pesado sem Sebastian ali, como se tivesse um buraco negro que sugasse toda minha segurança onde ele costumava estar.
Sacudi de leve a cabeça, era só uma noite. Faria meu trabalho e iria pra casa, logo mais isso acabaria.
—Tem certeza disso? Parece arriscado... -Ouvi um senhor de meia idade dizer do outro lado da torre de taças.
—Claro, eu já faturei alguns milhares de dólares com isso. -uma voz notavelmente mais jovem respondeu. -O negócio está correndo a boca pequena, por isso parece pouco confiável. Mas tal medida é necessária pra mantê-lo a salvo da rainha.
—Então é ilegal? -tal palavra atraiu totalmente minha atenção para a conversa. Podia ser algo da minha área ou não, mas certamente era do interesse da rainha.
—Mais ou menos... -a voz parou abruptamente -Venha comigo.
Os dois se afastaram antes que eu pudesse reconhecer seus rostos distorcidos pelo vidro, talvez tivessem se dado conta de que estavam sendo ouvidos ou tenham ido acertar os detalhes do negócio. Resolvi ignorar aquilo por hora, não tinha vindo pra esse trabalho em específico, tinha vindo para encontrar pistas do que tinha ocorrido no baile de Kyro.
Pode ser que a marionetista tivesse a ver com isso, já que ele alegou ter me visto por lá e ela tinha uma cópia minha. Talvez o sequestro tenha sido uma forma de me tirar de circulação para que sua boneca pudesse agir mais livremente e não causasse o efeito doppelganger... Mas ela não teria feito isso tudo por conta própria. Primeiro que não é do feitio dos SM's ter planos tão elaborados e audaciosos, eles preferem agir na encolha, e segundo que ela não ganharia nada com isso.
A pessoa que a contactou deve ser alguém que queria acabar com a minha reputação, no melhor dos casos. Ou, no pior, dizimar os nobres mais influentes politica e comercialmente. Pensando pelo lado em que eu sou o alvo, tivemos um belo exemplo de Susan Jones alguns minutos atrás. Se bem que ela não é tão corajosa... E não ganharia nada além de pura satisfação com isso.
Estava lá parada totalmente concentrada em meus pensamentos, com os olhos fixos no liquido dentro da minha taça praticamente intocada, quando senti duas mãos me cobrirem os olhos. Contive o impulso de agarrar os pulsos do estranho e jogá-lo por sobre meu corpo como Sebastian me ensinara assim que ouvi a voz do homem que um dia, mesmo que em memórias remotas, me fora tão familiar.
—Se adivinhar ganhas um beijo.
—Ciel. -puxei as mãos dele e me virei, encarando o par de olhos azuis escondidos sob o cabelo de mesma cor.
—Que fique claro que só não cumpro a promessa porque é uma dama compromissada e isso nos causaria uma enorme dor de cabeça.
Eu não consegui segurar o riso, mas logo me lembrei de meu noivo e a graça daquela brincadeira desapareceu por completo, notei que ele olhava ao redor discretamente, logo antes de me encarar intensamente.
—Sem cães de guarda? -ergueu uma sobrancelha.
—O que faz aqui? Veio encontrar uma noiva? -mudei de assunto, tentando manter o tom de brincadeira com o qual ele chegara e não lembrar que estava sozinha nessa
—Está tentando descobrir se tenho uma noiva para saber se pode flertar comigo? -ele ergueu novamente a sobrancelha, mas desta vez com um sorriso nos lábios, riu em seguida. -Não não... não ousaria dividir meu coração com mais ninguém. -algo na voz dele me fez sentir que aquelas palavras tinham sido direcionadas a mim, o que me fez corar e dar um passo discreto pra trás. -E você, achei que te conhecesse. Não viria a dois bailes seguidos, odeia essas coisas "sociais".
—Eu não ...
—Ah, noblesse oblige, certo? Sei como é...
Ele colocou a mão nos bolsos, olhando em volta. Aparentemente procurava por uma forma de manter a conversa, o que seria um pouco incomodo. Não que eu não quisesse, era só que, além de estar aqui a trabalho, algo estranho se agitava dentro de mim a cada vez que nossos olhares se cruzavam. Não era como quando Sebastian me olhava, nem como quando meu noivo me olhava. Era algo imediato, que desaparecia tão logo eles se desconectavam, quase como um transe.
De repente as luzes de todo o salão se apagaram, imediatamente eu toquei a arma sob o vestido e me preparei para um ataque surpresa, mas logo uma unica luz se acendeu no topo da escadaria no fim do salão. No meio tempo em que as luzes se apagaram e acenderam, Ciel havia se teleportado da minha frente pras minhas costas, e agora sentia suas mãos na minha cintura e seus braços ao meu redor.
Um arrepio desceu pela minha espinha, alojando-se em meu quadril na direção oposta a que as mãos dele estavam. Estranhamente, meu corpo estava confortável ali, como se fosse exatamente onde ele deveria estar. As lembranças do tipo de sentimento que nutriamos um pelo outro na infância percorreram o caminho por sob minha pele e fizeram-me arrepiar, tudo se encaixava. Desde à foto e aquelas palavras atrás dela até todas essas estranhas sensações que me invadiam na presença dele.
Nos conhecemos um pouco antes da minha mansão ser reconstruida, quando eu estava passando um tempo na propriedade da minha tia, que posteriormente seria passada para meu primo após a morte dela. Mantivemos contato mesmo depois de eu voltar pra casa, onde ele me visitava às vezes e sempre por curtos períodos de tempo. Ele foi meu primeiro amor, antes mesmo de eu saber o que era isso. Mas logo ele parou de aparecer e, consequentemente, eu me esqueci dele, assim como de tantas outras coisas.
—...aos convidados mais sofisticados, o salão de jogos está aberto para vocês, podem aproveitar uma bebida enquanto discutem seus negócios à beira de uma mesa de sinuca ou durante um empolgante jogo de dardos... -o anfitrião gesticulava no topo da escadaria, empolgado.
Certamente era lá que eu ouviria as melhores informações, não sobre meu caso, mas mesmo assim bem úteis. Mas não poderia me infiltrar tão perfeitamente como Sebastian, então teria que deixar passar. Olhando pelo lado mais lógico, se alguém tinha influência e motivos politicos para contactar SM's, estaria naquela sala, nesses momentos facilitaria muito minha vida e meu trabalho ter meu mordomo aqui.
—Está tudo bem? Parece incomodada... -pelo visto minha frustração estava transparecendo a ponto de Ciel poder perceber mesmo sem olhar nos meus olhos.
—Está sim...
Fingi meu melhor tom casual, virando-me pra ele bem a tempo de ver um sorriso surgir em seus lábios ao ouvir o anfitrião dizer as palavras "labirinto" e "aberto" na mesma frase. Pelo canto do olho, vi um grupo de cavalheiros caminhar pela margem do salão sendo guidados por um homem muito bem vestido que julguei ser um dos servos do lugar. Deviam estar indo para o salão de jogos, todos meus alvos. Olhei um por um pra ver se tinha algum rosto conhecido, mas a maioria eram estrangeiros, como pude perceber pelas particularidades fisicas. Alguns burgueses, alguns concorrentes comerciais e um ou outro conde os seguiam, gravei bem aqueles rostos para checar a presença deles no outro baile e traçar uma lista de suspeitos para Sebastian averiguar. Ficaria mais tempo no baile, claro, esperando pelo ataque, mas meu trabalho tinha acabado já que eu estava sem saída. Finalmente voltei minha atenção para Ciel, que aparentemente me convidava para ir tentar o labirinto com ele, uma tradição que adiquirimos ao participarmos das festas da minha tia, que também apoiava este tipo de diversão.
—Parece que estamos com sorte -ele disse, guiando-me para o jardim. -Nos reencontramos num baile com um labirinto, para relembrarmos os velhos tempos...
—Não sei se é bem sorte, não acredito nisso.
—Sorte, destino, acaso... O que quer que tenha te trago de volta pra mim, eu agradeço. -ele parou na entrada do labirinto e me encarou sério, seus olhos penetrando fundo nos meus e me fazendo querer abraçá-lo pra sempre.
—Você continua um idiota. -virei o rosto, encarando os jovens que entravam rindo no labirinto e desafiando uns aos outros a encontrar a saída mais rápido.
—E você continua linda, mas isso não vem ao caso. -ele piscou e deu uma risada suave, apertando minha mão de leve -Vamos?
Acompanhei-o, seguindo em frente e virando para a esquerda e direita aleatoriamente até darmos de cara com nosso primeiro ponto final. Nos encaramos e rimos, era incrivel como eu estava me sentindo leve naquele momento. Era como se não houvessem deveres a cumprir e monstros a caçar, como se não houvesse uma lutra entre demônios e shinigamis e como se eu não fizesse parte da justiça que tanto os atrapalhava. Naquele momento eu era só uma garota caminhando entre os altos muros de trepadeiras tentando encontrar o centro do labirinto, acompanhada de um rapaz que certamente fizera meu coração descompassar um dia e seu eu não tomasse cuidado certamente faria de novo...
—Lembra-se de quando corriamos pelos corredores do labirinto da sua tia? Os corredores pareciam ser dez vezes maiores do que realmente eram...
—mas já tinhamos mapeado todos eles, entravamos e saiamos tão rápido de lá que nem dava tempo de sentirem nossa falta.
—completei, sorrindo de prazer por ter resgatado uma lembrança tão boa, mesmo ela sendo de algo tão simples.
—Achavamos nojento quando encontrávamos um casal se beijando... -ele riu, fazendo uma careta. Mas logo retomou seu rosto sério e diminuiu o ritmo da caminhada. -Mas eu meio que os entendo agora.
Eu o encarei, curiosa e um pouco temerosa pelo rumo que essa conversa estava tomando.
—Essas paredes altas e o céu estrelado acima de nós poderiam guardar milhares de segredos. Desde os mais sujos aos mais puros... Então por quê não se permitir contribuir com esse baú de segredos e se libertar das amarras que as regras e códigos da nobreza nos impõem?
—Está dizendo isso tudo... hipoteticamente? -foi a minha vez essa noite de erguer uma sobrancelha
—Depende... -ele olhou para o céu, senti-o apertar um pouco mais minha mão.
Continuamos o caminho em silêncio até que demos de cara com outro ponto final. Eu me virei e comecei a caminhada de volta, mas ele me puxou bruscamente pra trás, de forma que meu corpo se chocasse contra o dele e ele pudesse rolar e me prender contra a parede de trepadeiras, que se agarraram ao meu vestido quase da mesma forma que meu peito agarrava meu coração para que ele não pulasse da minha garganta naquele momento. Não houve pausa, não houveram comentários ou pensamentos, nem mesmo uma troca de olhares precedeu aquele beijo. Os lábios dele não eram frios como os de Sebastian, eram tão quentes e transbordavam sentimentos tão quentes que chegavam a queimar os meus... algo dentro de mim retribuia aquele beijo, que se intensificou ao ponto da lingua dele tocar meus lábios e tudo aquilo me deixar sem ar, fazendo com que eu o empurrasse e, tão logo nossas bocas estavam livres novamente, quase me engasgasse com a quantidade de ar que puxei para meus pulmões.
Arfavamos, os dois, e nossos olhos se encaravam em busca do que dizer ou de como explicar o que, sabiamos, não tinha explicação. Os olhos dele tinham um brilho intenso mesmo na sombra da parede atrás de mim, era quase como o brilho dos olhos de Sebastian quando ele se permitia liberar seu verdadeiro eu, seu lado demoníaco. Meus olhos me enganaram e eu vi por um segundo meu mordomo na minha frente, encarando-me profundamente com aqueles olhos vermelho-sangue.
Ciel se aproximou novamente, colocando uma das mãos na minha cintura de forma que pudesse me puxar pra si. Meu corpo se rendeu instantaneamente, mas um sentimento ruim desceu pela minha garganta e minha mente voltou a si, me permitindo empurrá-lo forte o suficiente para que me soltasse. Ele parecia confuso, eu não o culpava. Murmurei uma desculpa que não tenho certeza se ele pôde ouvir e corri de volta pelo labirinto, esbarrando em alguns jovens pelo caminho até encontrar a saída. Meu timming não poderia ser melhor, tão logo dei o primeiro passo pra fora dali ouvi claramente uma explosão, em seguida, as labaredas começaram a cobrir a fachada da mansão. Ouvi gritos confusos vindos de trás de mim, no labirinto, e desesperados vindos da minha frente, onde as pessoas mais corajosas que estavam do lado de fora, se aproximavam das portas laterais da mansão para socorrer as pessoas que batiam contra o vidro do lado de dentro. Se fosse como Kyro disse, as portas tinham sido trancadas.
Ouvi tiros vindos da outra extremidade da mansão e imediatamente me lembrei de Meyre, corri o mais rapido que pude até lá, talvez ela tivesse abatido o SM ou algum outro responsável, ela não desperdiçaria balas com menos que isso. Cheguei e vi uma jovem caída no chão sobre uma poça de sangue, ao redor dela, mais pessoas gritando ainda mais desesperadas. Antes que ela fosse rodeada por curiosos, pude ver que ela estava com as mesmas roupas e penteado que eu, até mesmo suas feições lembravam um pouco as minhas, mas era diferente o bastante para que eu pudesse reconhecê-la como uma das jovens que acompanhava Susan. Meryn a tinha abatido antes que ela pudesse fechar a ultima porta, então os nobres se espremiam e batiam para passar por ela. Não demorou e uma bandeja de prata voou através de outra porta de vidro, permitindo que mais algumas pessoas passassem, mas não sem se machucarem nos cacos ainda agarrados ao portal. Corri de volta para o outro lado da mansão e puxei minha pistola da bota, mirando contra a porta de vidro tentando ao máximo desviar de todas as pessoas do outro lado. Num primeiro momento, todos se desesperaram ainda mais ao me ver apontar uma arma pra eles, mas alguns instantes após o disparo que estilhaçou o vidro todos começaram a passar por ela como estava acontecendo do outro lado. Em meio ao tumulto, vi um homem de cabelos azulados caminhar dentro do salão, indo em direção a uma das portas. Desesperei-me por Ciel e mencionei entrar lá para salvá-lo, mas senti alguém segurar meu braço e virei para encontrar Meyre com seu rifle pendurado nas costas.
—Está na hora de irmos minha senhora. -ela me encarava seriamente, me fazendo entender que aquilo era uma ordem
Não debati e a acompanhei, a carruagem estava aonde haviamos deixado, mas o coxeiro não estava lá, talvez estivesse no meio do tumulto ajudando os outros convidados ou tivesse fugido a pé, o que seria muita burrice da parte dele. Entrei na cabine e Meyre assumiu o posto do homem, atiçando o cavalo de tal forma que tive de me segurar para não bater com a cabeça nas paredes encobertas por tecido.

 

 

 


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