Mar de Lembranças escrita por Misuzu


Capítulo 11
Opções


Notas iniciais do capítulo

Oi minha gente :3
Finalmente consegui escrver algo decente o bastante. Não ficou a melhor coisa do mundo, mas até que fiquei satisfeita.

Boa leitura ;]



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Respirei profundamente, tentando manter-me calma pelo que estava por vir. Está na hora. Finalmente saberei quem me comprou. Não que haja alguma dúvida, certamente foi o barão Koppel. Todos aqueles olhares em minha direção, seguidos de longas conversas com Madame Agatha devem significar alguma coisa. Queria manter-me forte. Mas a verdade é que o máximo que eu conseguia era ficar rigidamente sentada na cama, evitando ao máximo tremer. Não apenas de medo, claro que medo também, não há como não sentir um pouco de pânico ao ter sua vida, seu destino, entregue a um desconhecido.

Estava tentando manter o rosto inexpressivo. Ao menos isso eu sabia que conseguiria fazer. Poucas coisas eu aprendi sobre mim mesma nesse período – é estranho, mas desde que eu acordei naquela cama, não são apenas as pessoas a minha volta que fui conhecendo aos poucos, com a convivência, mas da mesma forma vou conhecendo a mim mesma - e uma delas foi a capacidade de manter-me calma, ao menos aparentemente, independente da situação. A menos que se tratasse de Elora, lógico. Ela parece ter o dom de me tirar de meu transe, de minha aura de calmaria. Mas isso não aconteceria mais. Porque eu estava ciente de que, não importando quem entrasse por aquela porta, eu certamente nunca mais a veria.

                A maçaneta girou e, enfim, a porta foi aberta. Mas não foi o velho barrigudo espremido dentro de uma roupa considerada elegante, em qualquer outra pessoa, não nele, que entrou pela porta. A pessoa que passou pela porta era genuinamente elegante. Estava bela como sempre, trajando um vestido azul escuro adornado com rendas e pedras, os cabelos louros, quase brancos, presos em um coque refinado. Então ela veio despedir-se de mim. Provavelmente com a intenção de passar-me suas últimas instruções. Após certificar-se de que a porta estava fechada, ela enfim sentou-se ao meu lado, soltando um longo suspiro depois de me avaliar por algum tempo. Como se aquela situação fosse mais estressante para ela que para mim.

                – Eu devia saber que aquela garota ia fazer alguma besteira. Devia ter-lhe explicado melhor a situação.

                – De quem você está falando? Quem me comprou?

                – Você realmente pensa que eu a venderia? Elora certamente me mataria se o fizesse. Além do mais, eu não vendo minhas garotas, não permanentemente.

                Aquelas palavras, apesar de parecem uma ótima notícia, não me alegraram por muito tempo. Posso não lembrar do que vivi antes, mas lembro muito bem daquilo que vivi aqui. Assim como sei exatamente como um lugar desses funciona.

                – A senhora realmente espera que eu acredite nisso? Não sou uma criança, sei muito bem como lugares como este funcionam.

                – Ora, minha querida, estou bastante certa de que você não faz a mínima ideia de como este lugar realmente funciona. Este estabelecimento – ela enfatizou a palavra, como se não houvessem varias outras mais apropriadas, mas específicas, menos elegantes –  não funciona como os outros desse distrito, não totalmente, pelo menos. Essencialmente, prestamos o mesmo tipo de serviço que os outros, mas a forma como este lugar é gerido é bastante distinta.

                Ela levantou-se da cama e passou a circular a passos calmos pelo quarto, olhando para os objetos como se os visse de uma forma bastante diferente da que eu via. E eu sabia, pela melancolia em seu olhar, que seus olhos não viam apenas o lugar em si, mas também o tempo. Nunca passou pela minha cabeça pensar em como a Madame se tornara a dona deste lugar, nem mesmo em quanto tempo ela já está aqui.

                – Primeiramente, você deve saber que, antes de gerenciar este lugar, eu exercia a mesma função que Elora, Bonnie, Laureen e as outras, prestava os mesmos serviços. Fui vendida para cá quando tinha cerca de doze anos. Tudo que me lembro de minha vida ocorreu aqui. Conheci muitas pessoas, de todos os tipos. Inclusive o antigo dono. Naquela época nós não éramos livres como vocês. Não saíamos desse lugar por motivo algum. Todas as possíveis saídas eram completamente lacradas durante o dia e sempre tinham pessoas nos vigiando. Se alguma garota engravidava, era obrigada a tomar diariamente um extrato de ervas que a faria perder o bebê e, muitas vezes, a vida. Vi muitas garotas definharem até a morte por causa disso. Quando acontecia de alguma garota conseguir acobertar a gravidez até o momento do parto, o bebê era levado no instante seguinte, sem que a mãe pudesse ao menos segurá-lo.

                Percebi que, enquanto ela narrava os fatos, eu involuntariamente abraçara com força meu ventre, como se tentasse proteger uma vida que eu sabia que não estava ali, mas que meu instinto lutava para proteger. Instinto feminino, provavelmente.

                – Isso aconteceu com a senhora? – minha voz tremeu levemente devido à angústia que aquele tema havia infligido a mim.

                Minha pergunta pareceu tê-la trazido de volta ao presente, já que ela olhou fixamente para mim por uns instantes, principalmente para os braços que eu não conseguia remover de meu ventre.

                – Não, eu não tive o infortúnio de passar por esta situação. Embora muitas garotas que considerei como irmãs tenham passado por isso. Com o passar do tempo, percebi que eu não podia ter filhos.

                – Eu sinto muito. – e realmente sentia. Não conseguia me imaginar sem Elora, ou mesmo sem Luce.  

                – Após tanto tempo e tantas perdas, comecei a superá-las, mas nunca as esqueci. Sempre fui grata por não poder ter filhos. Isso me salvou de morrer ou de ter uma parte de mim roubada. Simplificando o restante, eu seduzi o antigo dono – isso não era difícil de imaginar, considerando sua beleza atual, certamente era linda quando mais nova – e com que ele acreditasse que eu concordava plenamente com a forma que ele lidava com tudo. Acabei ganhando mais liberdade aqui dentro, o suficiente para comandar o lugar junto dele e conseguir mandar os recém-nascidos para algum lugar melhor. Mas apenas isso não bastava. Não enquanto eu estava muito mais livre as outras garotas. Diariamente eu ministrava pequenas doses de veneno em sua comida. Assim que ele partiu deste mundo, mudei radicalmente a forma como tudo acontecia aqui. Nessa época, muitas das garotas restantes foram embora, muitas ganharam um lugar para viver, sendo mantidas como amantes de nobres, outras, raramente, até mesmo casando-se.

                Ela então fez uma pausa, como se escolhesse com calma as palavras que viriam a seguir, enquanto continuava a vaguear lentamente pelo quarto.

– Não sou a favor de comprar garotas para trabalhar aqui, assim como não obrigo nenhuma delas a fazer o que fazem. Mas elas entendem que precisam fazer algo para que tenham onde dormir e o que comer e que a natureza desse lugar não vai mudar.  E eu tenho certeza de que elas estão melhor aqui que com a família que as vendeu. Mas esse é apenas o mais incomum dos fatores que fazem com que uma garota venha parar aqui. Muitas fogem da pobreza e de péssimas condições de vida, como Luce. Outras simplesmente não têm para onde ir após ficarem órfãs, como Laureen. Mas a maior parte é jogada na rua, abandonada por sua família por ter realizado algum ato imoral, que vai desde ter um caso com algum rapaz, até engravidar antes do casamento ou mesmo por ser violentada por um desconhecido, ou um conhecido. E ainda, há algumas que me procuram simplesmente por opção. Como Elora. Esse tipo de lugar, infelizmente, acaba sendo o único lugar em que estas garotas conseguem ficar sem serem julgadas e tratadas como lixo.

Embora já soubesse que Elora havia fugido da vida que lhe fora imposta, era um pouco difícil acreditar que ela largara o luxo de uma vida como nobre para vender seu corpo no maior distrito de prostíbulos do reino. Após ouvir atenciosamente o relato de Madame Agatha, percebi que estive alheia ao que acontecia a minha volta. Nunca questionara o fato de nunca ter sido obrigada a trabalhar de outra forma, embora tivesse realmente motivos que me impedissem. Também nunca imaginara como as outras haviam chegado a este lugar. Mas, mais importante, percebi o quanto aquela mulher ganhara minha sincera admiração, e do quanto me arrependia por tê-la julgado de forma errada.

Por trás de sua fachada elegante, de suas vestes e cabelos perfeitamente alinhados, eu percebia agora que havia uma senhora amargurada que soubera lutar pela vida. Que, assim como eu, carregava cicatrizes profundas, marcadas em seu ser.

– Não me entenda mal, Millenia. Eu me acostumei à vida aqui, não me arrependo de meu passado, nem culpo meus pais por terem me vendido. Como eu lhe disse, creio que estou melhor aqui. Não fosse por isso, todas essas garotas não teriam livre arbítrio. Estariam presas em algum prostíbulo, certamente menos requintado que este, vivendo como escravas. Não digo que eu não tenha sonhado com uma vida diferente, fora daqui, quando era mais jovem. Apenas percebi  com o passar dos anos que eu não me adaptaria a outro tipo de vida, que não conseguiria permanecer trancafiada em casa, incapaz de aos menos formar uma família de verdade, de ter filhos. Mas todas estas garotas aqui podem. Por isso que, quando elas decidem por vontade própria deixar este lugar, eu não crio empecilhos.

– Então se não era para vender-me, por que fui trancada aqui, sem nem mesmo poder ver Elora?

                Ela parou sua caminhada por uns instantes, por fim decidindo sentar-se em uma cadeira à minha frente, olhando em meus olhos.

                – Porque venho fazendo planos para você já há algum tempo, Millenia. E queria discuti-los sem interferências. Eu quero o melhor para todas vocês e, tanto quanto você, quero que recupere suas memórias. E tenho absoluta certeza de que não é aqui que você vai conseguir retomar suas lembranças. E, também, não quero que aconteça com você o que aconteceu comigo. Não quero que toda sua vida aconteça entre estas paredes. Está na hora de você conhecer o mundo lá fora, de vê-lo com seus próprios olhos mais uma vez. Um ano aqui dentro foi o bastante. Está na sua hora de nos deixar. Sei que há a possibilidade de suas memórias não voltarem, mas você sempre poderá criar novas.

                Que maravilha, não estou sendo vendida. Estou é sendo expulsa. Não sei o que é pior. Sendo vendida eu ao menos teria um maldito teto sobre minha cabeça. De qualquer outra forma, não tenho para onde ir. Não que eu me lembre de algum lugar. Vai ver é isso, ela quer que eu saia caminhando pelo reino todo olhando cidade por cidade, ruela por ruela, até achar algum lugar familiar. Não que não fosse interessante, deve ser bom viajar, não ficar presa somente a um lugar. Mas para isso seriam necessárias duas coisas: dinheiro e alguém louco o bastante para me acompanhar. Dinheiro, obviamente, eu não tenho. Nada. Quanto à alguém disposto a fazer isso, pior ainda. Todo esse belo discurso deixa algo muito claro para mim: eu não sou útil aqui, portanto devo ir, mas Elora é muito útil e rentável. Isso explica muito bem porque não pude vê-la por todo esse tempo e porque ela não estava aqui agora, se era para um comunicado tão feliz.

                Velha desgraçada. Todo esse discurso de padroeira das moças da vida por nada. Não, por tudo. Para mascarar sua verdadeira intenção: descartar-me. Como fui tola por pensar que havia sido vendida. É óbvio que ninguém quer comprar algo tão cheio de defeitos quanto eu, com tantas marcas.

                – E você pretende que eu faça o que? Saia sozinha pelo reino, visitando todas as cidades e vilas que existem aqui?

                Eu estava quase explodindo. Estava tomada por tamanha ira que, no momento, estava com uma incrível vontade de pular em cima dela. Mesmo sendo uma velha decrépita.

                – Eu falei que isso não daria certo, Madame. A senhorita Millenia certamente entendeu tudo errado.

                Uma familiar voz de homem surgiu de um dos cantos do quarto. Certamente quem estava falando estava atrás do belo biombo de madeira que havia ali. Estivera tão aflita que nem mesmo notei a presença daquele biombo, sequer imaginando que poderia haver alguém ali por tanto tempo. O homem que estava ali foi saindo das sombras lentamente, caminhando em minha direção, a primeira coisa que vi foram as vestes elegantes e impecáveis. Depois, aqueles desgrenhados cabelos cor de mel.

                – Mas o plano é exatamente esse, senhorita Millenia. Kenderon é grande demais para você ficar apenas neste distrito.

                E então Allan Marshall sorriu, de forma genuína e calorosa, certamente sem considerar o tamanho da loucura que acabara de propor. E então a porta se abriu. Na verdade, a forma correta era dizer que a pobre coitada levara uma pancada tão forte para abrir que eu nem mesmo sabia como ela continuava presa à parede.

                – Espero que tenha lugar para mais um nesse plano incrível, senhor Marshall.

                –Não creio que eu tenha uma opção quanto a isso, senhorita.

                – Ora, sempre há opções, senhor Marshall.  – Ela então entrou no quarto, dirigindo um sorriso meigo ao senhor Marshall – No seu caso, ou o senhor permite que eu tome partido nessa viagem ou – seu sorriso se intensificou – o senhor é que irá em uma incrível viagem. Para sete palmos abaixo do solo.


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Notas finais do capítulo

Reviews? :3



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