Mar de Lembranças escrita por Misuzu


Capítulo 10
Vendida




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Já haviam se passado três semanas desde a conversa com o Sr. Marshall e o constrangedor incidente lacrimoso. Três semanas em que ele não apareceu uma única vez. Parabéns para mim. Espantei o homem justo quando eu começava a confiar mais nele. E a me encantar por ele. Talvez seja melhor assim. Cortar as raízes antes que a árvore comece a crescer de verdade. Antes que eu passe a gostar dele de verdade. Pelo menos é isso que eu tento dizer a mim mesma. A verdade é que eu sinto falta dele. E isso só piora tudo.

            Elora parecia tentar compensar a ausência dele. Passava todo seu tempo livre à minha volta, no balcão. Quando não era ela, era Luce. Parecia até que tinham combinado: cada uma tinha um turno para me atormentar com assuntos banais. Eu não podia culpa-las completamente. Eu reparara que fazia certo tempo que ela não tinha sua visita especial. Já fazia algumas semanas desde a última vez que Keefe Hensley esteve aqui. E Luce, bem, Luce acabou se apegando a mim e à Elora. Não podia culpá-la. A maioria das mulheres daqui, assim como Bonnie, veem todas como concorrentes. Como inimigas. Laureen era diferente das outras também, mas sua frieza tornava difícil ter contato com ela. Para mim, pelo menos, era complicado. Luce não parecia se importar com isso, pelo que percebi há algum tempo. Aparentemente, quando ela não está comigo ou Elora, está com Laureen. O mais surpreendente é que Laureen não parece se incomodar com isso. Vá entender.

            Nesse momento, para meu azar, o turno das duas cruzara. Estavam ambas à minha volta. Não paravam de falar e pareciam não se contentar mais com minhas respostas rápidas e vagas.

            – Deixe de ser carrancuda Millenia, estamos falando com você.

            Elora estava debruçada sobre o balcão, como de costume. Com o queixo apoiado em uma das mãos. A outra ela utilizava para dar leves puxões na saia de meu vestido, tentando chamar minha atenção.

            – O que você quer, Elora?  

            Ela franziu a testa. Não parecia irritada, apenas chateada. Aparentemente, sua irritação era exclusiva à Bonnie.

            – Você não prestou a mínima atenção no que estávamos falando.

            Abri a boca para dar alguma desculpa ou fazer algum comentário sobre o assunto, mas a fechei no mesmo instante. Ela estava certa, eu não fazia a mínima ideia de qual era o assunto que elas estavam discutindo.

            – Você está certa. – Suspirei levemente, sentindo-me culpada. – De que vocês estavam falando?

            – Eu estava comentando que já faz algum tempo que Bonnie tem estado calma.

            – Sim, desde o incidente com o uísque.

Ela assentiu.

– Parece que ela ficou abalada demais com a ausência do Sr. Marshall para lhe confrontar novamente.

Imagens daquela noite vieram a minha cabeça. A dor aguda. O torpor. A sensação de segurança ao ser carregada pelo Sr. Marshall. A surra que Elora dera em Bonnie.

– Na verdade, eu acho que o olho roxo que você deu a ela é que realmente a abalou.

Luce riu. Ela também era atormentada por Bonnie, por ser nova e ter ganhado para si a atenção de alguns clientes de Bonnie.

– Como está seu braço, Millenia?

– Está quase cicatrizado, graças aos cuidados de Elora.

– Bom saber. Eu estava pensando em lhe dar um novo para que sua amiguinha possa cuidar. Como um corte bem profundo em se pescoço, por exemplo.

Mesmo sem ter dúvida alguma de quem era a dona de tal voz irritantemente esnobe, olhei para a direção de onde vinha. Exatamente a tempo de vê-la descendo as escadas em um vestido verde. Parecia um grande abacate.

Certamente, eu me enganara. O olho roxo não fez tanto efeito quanto pensamos. E também, aparentemente seu ódio a mim não se resumia ao fato de seu cliente favorito preferir a mim. Já havia se enraizado.

– Eu não tentaria algo assim novamente, se fosse você. Pelo menos, não se você pretende continuar com este lindo rostinho preso ao pescoço.

Não havia ameaça no tom de voz de Elora. Ela parecia simplesmente entediada enquanto mexia em um delicado cacho de seus cabelos. Mas as palavras eram claras. E fizeram bastante efeito. Bonnie não disse mais nenhuma palavra e seguiu para a cozinha, empinando bem o nariz. Certamente, queria parecer superior mesmo ao fugir com o rabinho entre as pernas.

– E então, que tal você se arrumar para esta noite, Millie? Há um vestido lindo que quero que você use. Feito especialmente para você.

Sua voz e sua expressão não deixavam transparecer nenhum resquício da tensão que havia se instalado ali. Era apenas a Elora alegre de sempre. Abri minha boca para dar alguma desculpa para continuar ali, mas ela parecia estar um passo a minha frente, como sempre.

– E nem pense em dar alguma desculpa. Estamos aqui há bastante tempo já. Nós três sabemos muito bem que você já terminou o que estava fazendo, seja lá o que for.

É, ela tinha razão. Eu já tinha terminado tudo há muito tempo. Estava tudo perfeitamente limpo e organizado. Não havia mais o que fazer ali. Derrotada, deixei que Elora me arrastasse até meu quarto, enquanto Luce seguia atrás, rindo de meus comentários sobre aquilo ser uma grande tortura. Uma tortura muito perversa.

Veja bem, não é que eu não goste de usar vestidos e penteados bonitos, pois eu gosto. Acontece que muitos destes vestidos bonitos de Elora deixam a mostra parte de meus braços e ombros. São realmente lindos, em Elora. Em mim, só ressaltam as horríveis cicatrizes em meus braços e ombros. Então, de forma alguma eu os usaria na frente de outras pessoas. E também, não faz sentido eu arrumar-me tanto para servir bebidas. Sabe, acidentes em que bebidas caem e arruínam completamente minha roupa não são nem um pouco incomuns. Tentei usar esses argumentos algumas vezes contra ela, mas nunca adiantou. Então só me resta torcer para que o vestido ao menos me agrade.

 E agradou. O vestido era realmente lindo. Era simples, mas lindo. O vestido em si era completamente negro, suas mangas eram estreitas, já que não precisava mais preocupar-me com a ferida, o que o tornaria prático para trabalhar. Seu decote era discreto, mas bonito. Mostrava uma área de minha pele que não estava maculada. O único detalhe colorido era o lindo corpete vermelho acetinado que ela colocara por cima.

             Eu estava tão encantada com o vestido que deixei que ela arrumasse meu cabelo sem recusas, prendendo-o em um coque perfeitamente elaborado, finalizado com um adorno prateado com pedras vermelhas.

            Luce fez com que eu subisse as escadas e fosse até um dos quartos mais elegantes, com a desculpa de que havia deixado os brincos lá, enquanto Elora aguardava nosso retorno em meu quarto. Entrei na frente, esperando que ela me seguisse. Mas não foi isso que aconteceu. Virei-me a tempo de ver a porta fechando atrás de mim, trancando-me sozinha naquele quarto. Escutei o barulho da chave e tive certeza de que eu não teria como fugir disso. A alegria do momento fora tão grande que fui idiota o bastante para não perceber a tempo o que estava acontecendo.

            Bati na porta grossa com toda a força que pude, gritando para que ela me deixasse sair, mas nada aconteceu. Quando, por fim, dei-me por vencida e encolhi-me no chão ao lado da porta, pude ouvir o leve sussurro de Luce.

            – Por favor, me desculpe Millenia. Eu tentei negar fazer isso, mas não tive escolha. Foi uma ordem da Madame.

            – Como você pode fazer isso comigo, Luce? E Elora? Eu nunca vou perdoa-la por isso.

            – Por favor, Millenia, não culpe Elora. Ela pensa que a Madame deu-lhe o vestido para deixa-la feliz.

            Pude perceber pelo tom de sua voz que ela estava chorando.  E então, sem mais nenhuma palavra de consolo, ela se foi. E Então eu fiquei sozinha no quarto. Com medo. Medo porque o fato de eu estar trancada neste quarto, sem Elora saber, só podia significar uma coisa: eu não iria apenas passar a noite com alguém. Eu fui vendida. Para sempre.

            Agora só me resta tentar descobrir quem foi a odiosa pessoa que conseguiu fazer com que eu fosse vendida. Certamente não fora nenhum dos marinheiros beberrões que ficam em torno de meu balcão. No momento, meu maior palpite é o Barão Koppel. Já faz algumas semanas que o vejo no fundo do salão, sentado em uma mesa negociando com a Madame enquanto olham em minha direção e sussurram em tom conspiratório. Aquele maldito velho gordo.

            Horas depois, eu estava totalmente derrotada. Sentada sob os lençóis macios da cama, eu abraçava minhas pernas com toda a força que conseguia. E então escutei o som da chave na fechadura. A hora da verdade finalmente havia chegado. Fechei meus olhos com força e apertei ainda mais os braços em torno de minhas pernas. Logo eu seria obrigada a erguer minha cabeça e ter a horrível visão daquele velho barrigudo tenebroso.

Resolvi aproveitar meus últimos instantes sozinha abraçando minhas pernas, desejando que na verdade aquele fosse o corpo de Elora, aquela que cuidou de mim por tanto tempo. A certeza de que eu nunca mais a veria foi tão dolorosa que as lágrimas simplesmente saiam de meus olhos, enquanto eu imaginava qual seria o terrível acidente que mataria o Barão Koppel no futuro. As ideias me fizeram sorrir e ter força o bastante para limpar as lágrimas e erguer o rosto, ainda terrivelmente assustada, mas com certa confiança.

Estava na hora de parecer forte perante meu odioso comprador.


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Notas finais do capítulo

E então, qual seu palpite?
Estou curiosa para saber quem vocês acham que é o comprador. ;]



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