Eu podia dizer que estava triste, com medo, preocupado... mas na verdade, eu estava estático, não conseguia mover sequer um músculo. Acho que a palavra inerte é a melhor descrição que eu posso dar, só para você ter uma idéia da situação na qual eu me encontrava.

Eu não conseguia pensar. Não conseguia falar. Não conseguia me mexer, A única coisa que eu ouvia eram as palavras da profecia.

Olhei para meus amigos, que ainda dormiam profundamente. Grover soltava risadas e murmurava coisas como enchilladas, mas logo voltava a dormir, de boca aberta.

Annie estava encolhida no assento ao meu lado, ela dormia serenamente, aposto que não estava tendo sonhos, pelo menos, não os sonhos de meio sangue. Que inveja.

Olhei no relógio, ainda eram 5h15 da manhã, mas ao longe no horizonte já era possível ver um leve brilho alaranjado, do sol que logo iria nascer, guiado por Apolo.

Apolo. Ele deve saber da profecia. Na verdade, todos os deuses devem saber da profecia. E, é claro, ninguém me contou. Ok, não que eu quisesse saber que no final das contas eu ia morrer de um jeito ou de outro, e o fato de eu decidir o destino do Olimpo já me faz entender um pouquinho do por que Zeus quer me ver morto, provavelmente não quer se arriscar me deixando viver para depois eu agradecê-lo tomando seu trono.

E meu pai provavelmente não me contaria por que quer me proteger, deve achar sou novo demais para essa responsabilidade. Ok, também acho, não precisava descobrir que vou morrer aos 16 quando eu já estou 12, mas vamos pular essa parte.

Fiquei pensando no que falar à Annabeth e Grover. Como contar para eles? “Então, gente, vamos curtir bem esses próximos quatro anos, por que Cronos vai me matar quando eu fizer 16! Uhul! Por favor não esqueçam de escrever no meu túmulo: Fui visitar meu titio Hades, volto já!”. Não, eu não vou contar. Não por enquanto pelo menos. Vou guardar isso só para mim. Annabeth já sofreu muito com a família, a ausência da mãe, a falta de amigos na escola, a classe nos perseguindo por sermos... diferentes. E Grover... bem, ainda estamos tentando descobrir direito o que aconteceu com ele na primeira chance que o Conselho de Casco Fendido lhe deu, mas tenho certeza de que não foi nada bom.

Fiquei assim, sozinho entre meus pensamentos, olhando o sol nascer pela janela do vagão. Logo, Annabeth e Grover acordaram, e o maquinista anunciou que a próxima parada seria em Las Vegas. Annabeth estava pensativa, mas Grover falou:

- Ai, vamos descer vai, sempre quis conhecer Vegas, e não temos o que fazer mesmo, precisamos de um plano, então vamos descer e bolar esse plano aqui em Vegas vai por favor?

Annabeth e eu ríamos, ele falou tudo isso em um fôlego só.

- Está bem, Grover, vamos lá. – Falei, e ele saiu saltitando, literalmente.

Las Vegas era linda. Tinha acabado de amanhecer, então eu fico imaginando como seria essa cidade deve ser linda a noite, com todas essas luzes.

Em frente à estação tinha um café, o cheiro inebriante da bebida invadia nossas narinas e nos convidava a entrar. Com um acordo silencioso, sentamos nas mesinhas em frente à loja e logo uma atendente veio pegar os pedidos.

- O que querem, doçuras? – Ela falou, uma senhora muito simpática, aquele tipo de vovó que dá vontade de apertar as bochechas.

- Três cappuccinos e três fatias de torta de palmito. – Grover disse. A senhora entrou na loja, e logo nós três estávamos em silêncio, observando a cidade. Aproveitando enquanto nosso pedido não chegava, Grover foi ao toalete. Eu estava entretido olhando uma Porsche parada no farol, até que subitamente surgiu flutuando duas cabeças conhecidas: Luke e Sophie.

- Luke! Sophie! Mas como...

- Mensagem de Íris, Percy, você ainda tem muito o que aprender. Tudo bem, Annie?

- Tudo! - Ela respondeu, corando. Abusado! Intromete-se no meio da MINHA missão e ainda fica de namorico com a minha... hã... amiga. Fechei a cara, é claro.

- Oi Percy! Tudo bem? – Disse Sophie, corando. Confesso que fiquei um pouco balançado também.

- Oi Sophie. Tudo sim.

- E então, como vai a missão? Por onde andam agora? – Luke perguntou.

- Vai bem. Estamos em Las Vegas, chegamos há dez minutos.

- E Grover, onde está? Aconteceu alguma coisa com ele? – Perguntou Sophie.

- Ele foi no banheiro, mas já deve estar voltando. E as coisas aí no acampamento, como andam? – Perguntei, não queria Annie de papo furado com ele.

- Bem... Quíron está tendo um bocado de trabalho. Agora mesmo ele está na arena separando uma briga – Disse Luke, o que me deixou um tanto preocupada. - A situação anda um bocado tensa por aqui. A questão-impasse entre Zeus e Poseidon vazou de vez. Antes eram só suspeitas, mas alguém deu com a língua nos dentes e contou tudo, inclusive detalhes que poucos sabiam. Ainda não sabemos direito quem... provavelmente, foi o mesmo sujeito nojento que convocou o cão infernal. Agora os campistas estão começando a tomar partido. As coisas estão ficando como na Guerra de Tróia, tudo de novo. Afrodite, Ares e Apolo estão de certo modo apoiando Poseidon. Atena está apoiando Zeus, embora ele tenha deixado claro que ainda não confia em você, Annie. Os outros ainda estão avaliando qual lado acham que é o mais forte para depois poder tomar partido.

Estremeci só de pensar que o chalé de Clarisse pudesse estar do lado de meu pai para alguma coisa.

- Então, qual é a sua situação? - perguntou Sophie para mim. - Quíron vai lamentar muito não ter podido falar com vocês.

Contei-lhe praticamente tudo, exceto meu último sonho, é claro. Era tão boa a sensação de vê-la, parecia que eu estava de volta ao acampamento, mesmo que fosse por alguns minutos.

- Queria poder estar aí - disse Luke. - Não podemos ajudar muito daqui, infelizmente, mas escute... com certeza foi Hades quem pegou o raio-mestre. Ele estava lá no Olimpo solstício de inverno. Eu estava supervisionando uma excursão e nós o vimos.

- Mas Quíron falou que os deuses não podem tomar diretamente os itens mágicos um do outro.

- É verdade - disse Luke, parecendo perturbado. - Ainda assim... Hades tem o elmo das trevas. Como alguém mais poderia se esgueirar para dentro da sala do trono e roubar o raio-mestre? É preciso estar invisível.

Ficamos os dois em silêncio até que Luke pareceu se dar conta do que dissera.

- Quero dizer... é mais um motivo para Zeus desconfiar de Annabeth, mas sei que não foi você, Annie, você nem sabia que era semideusa quando o raio foi roubado! Sei que você nunca faria isso.

Nessa hora, ouvimos um barulho muito forte vindo de dentro da loja.

- É melhor vocês irem ver o que foi aquilo - disse Luke. - Escute, está usando os ténis voadores? Eu me sentiria melhor se soubesse que lhe serviram de alguma coisa.

- Ah... ahn, sim! - Tentei não soar como parecer um mentiroso culpado. - Sim, foram úteis.

- É mesmo? - sorriu. - Serviram e tudo o mais?

A imagem começou a falhar. A névoa começou a dispersar.

- Bem, cuidem-se aí em Vegas - gritou Luke, a voz ficando mais baixa. - E diga a Grover que dessa vez será melhor! Ninguém será transformado em pinheiro se ele apenas...

Mas a névoa se foi, e a imagem de Luke desapareceu, deixando a mim e a Annabeth com cara de dúvida. Definitivamente, precisávamos falar com Grover.

Ficamos em silêncio mais alguns instantes, até que Grover apareceu, vermelho como um pimentão.

- O que aconteceu, Grover? Está tudo bem?

- Está sim é que eu... hã... não vi a garçonete vindo e bem... nós trombamos e caímos no chão só que... hã... o vestido dela subiu até a cintura.

Eu olhei para Annabeth e, imediatamente, começamos a gargalhar. Eu ri tanto que minha barriga estava doendo, Annabeth tinha lágrimas nos olhos. Quando conseguimos parar de rir, Grover disse;

- Não teve a menor graça.

E aí nós caímos na risada novamente. Dessa vez até Grover riu.

A senhora que nos atendeu trouxe nossos pedidos, e quando ela saiu rimos mais ainda.

- Nossa, vou ter pesadelos com o que vi por muitos anos. – Grover disse, voltando a rir.

Eu engasguei com a bebida quente, e dei um olhar significativo para Annie, perguntando “Eu conto ou você conta”. Ela respondeu com um olhar mortal, ou seja, “Você conta e sem discussões”. E aí eu contei, não é, fazer o que.

- Grover, Luke e Sophie nos mandou uma mensagem de Íris enquanto você estava lá dentro. – Falei.

- Sério? E está tudo bem lá no acampamento, aconteceu alguma coisa? – Ele perguntou, assumindo um ar mais sério, o que era difícil já que sua rala barbicha estava cheia de farelos da torta.

- Bem... nada de mais. Só que alguém vazou a história completa da briga dos deuses, e agora os campistas estão tomando partidos dos pais. Atena está apoiando Zeus, mas Afrodite, Apolo e Ares estão apoiando Poseidon. Os outros ainda não tomaram partido, mas isso está deixando Quíron louco, ele tem que separar brigas a cada cinco minutos.

- Isso é mau, muito mau. Basta termos que nos preocupar com uma guerra entre os deuses, agora temos que pensar nos filhos que resolveram se meter. Bom, enfim...  Eles falaram mais alguma coisa?

- Aah... bem... – Olhei para Annabeth, que me encorajou bastante (sentiu a ironia?)- Ele pediu para dizer que... dessa vez ninguém será transformado em pinheiro.

Grover baixou os olhos, e tenho certeza que ele se segurava para não chorar.

- Grover... olha, se não quiser falar sobre isso agora tudo bem, mas acho que nós deveríamos...

- Não, tudo bem – Ele me interrompeu. – Mais cedo ou mais tarde vocês iam descobrir mesmo.

Ele tomou um longo gole do cappuccino antes de prosseguir.

- Como você sabe, Percy, uma meio-sangue de oito anos de idade perambulando sozinha pelas ruas da cidade não teria chegado muito longe sozinha. Zeus me guiou até Thalia, e com ela estava Luke, na época com dez anos. Os dois haviam fugido de casa, e estavm morando nas ruas, se arranjando como podiam. Para minha surpresa, eram fantásticos combatentes de monstros, mesmo sem treino.

Ele respirou fundo, estava com os olhos marejados.

- Eu devia escoltar Thalia até o acampamento - disse ele, fungando. - Somente Thalia. Tinha ordens estritas de Quíron: não faça nada que atrase o resgate. Sabíamos que Hades estava atrás dela, entende, mas eu não podia simplesmente abandonar Luke. Achei... achei que conseguiria levar os três até um lugar seguro. Foi minha culpa as Benevolentes nos alcançarem. Eu fiquei paralisado. Fiquei apavorado no caminho de volta ao acampamento e peguei alguns desvios errados. Se tivesse sido um pouco mais rápido...

- Pare com isso - disse Annabeth. – Tenho certeza que Luke não culpa você.

- Ela se sacrificou para nos salvar - disse ele, desconsolado. Sou culpado pela morte dela. O Conselho dos Anciãos de Casco Fendido disse isso.

- Só porque você não deixou Luke para trás? - disse eu. - Isso não é justo.

- Percy tem razão - disse Annabeth. – Ele não estaria a salvo no acampamento se não fosse por você, Grover. Não estamos nem aí para o que diz o conselho, sabemos que a culpa não é sua e ponto.

Grover continuou soluçando, suas mãos tremiam.

- É a minha sina. Sou o mais fraco dos sátiros, e encontro os dois meios-sangues mais poderosos do século, Thalia e Percy.

- Você não é fraco - insistiu Annabeth. - Tem mais coragem do que qualquer sátiro no mundo. Cite outro que se atreveria a ir para o Mundo Inferior. Aposto que Percy está muito contente por você estar aqui agora.

Ela me chutou na canela.

- Sim - falei, o que teria feito mesmo sem o chute. - Não foi por sina que você encontrou Thalia e eu, Grover. Você tem o maior coração entre todos os sátiros. Você é um buscador natural. É por isso que é você quem vai achar Pan.

Senti que toquei em um ponto fraco dele, que à menção de Pan já começou a sorrir. Já mencionei que o sonho de todo o sátiro é conseguir uma licença de buscador para ir atrás de Pã, o Deus perdido? Pois é, digamos que Grover tem certa... Obsessão por isso.

Grover estava começando a se animar, mas aí a coisa ficou feia.

Vindo em nossa direção, nada menos que quatro cães infernais.

E acredite, eles não estavam trás de nossas tortas de palmito.