Pesadelo do Real escrita por Metal_Will


Capítulo 48
Capítulo 48 - Defeito




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"E agora, José?

 A festa acabou,

 a luz apagou,

 o povo sumiu,

 a noite esfriou.

 e agora, José?

 e agora, você?

 você que é sem nome,

 que zomba dos outros,

 você que faz versos

 que ama, protesta?

 E agora, José?"


 ~ Carlos Drummond de Andrade

Capítulo 48 - Defeito

 Poucos minutos depois, Aurora chega em casa saltitante e sorridente. Sua mãe estava na cozinha preparando o almoço. Obviamente, ela percebe a felicidade da filha.

- O que foi? Eu sei que é o seu aniversário, mas parece estar mais contente do que quando saiu.

- Ah, mãe! É que aconteceram várias coisas boas..olha só, ganhei esse livro do papai, depois comi uns biscoitos na casa da Brenda e depois....nossa, a senhora nem vai acreditar, conheci um aluno do professor que escreveu esse livro.

- Sério? Quem é?

- Um moço novo na cidade. Ele tem uns dezoito anos e também queria ser escritor, assim como eu. Ele teve que trabalhar e não conseguiu realizar esse sonho, mas deu para ver que gosta bastante de Literatura.

- Nossa...e o que ele faz?

- Vende bonequinhas. Como essa aqui.

 A mãe vê a gatinha que Aurora carregava e fica admirada com a beleza do trabalho. De fato, uma obra artística.

- Incrível. Ele fez isso sozinho.

- Sozinho. Não é demais?

- E quanto custou?

- Ele me deu de presente.

- Nossa...é muito bem feito mesmo. Certamente ele vai ganhar bem se vender coisas assim por aqui.

- Eu também acho. Eu o convidei para vir aqui mostrar mais do trabalho dele para as meninas.

- E ele aceitou?

- Ficou meio sem-graça por se considerar estranho, mas alguma coisa me diz que ele vem.

- Você acha?

- Sei lá. Intuição, talvez?

- Misteriosa você, heim? Bom, filha, está quase na hora do almoço. E a gente ainda tem muito o que fazer à tarde - diz a mãe dela, olhando para o relógio de cuco na parede da cozinha.

 - Com certeza - concorda Aurora. E, realmente, as duas passam um bom tempo à tarde arrumando os comes e bebes do aniversário. Quando o pai de Aurora chega vê boa parte da casa enfeitada, mas também chega a tempo de ajudar a pendurar mais algumas bexigas. Preparar a festa foi trabalhoso, mas não quer dizer que não tenha sido divertido. Na hora marcada para a festa, Aurora estava pronta, com um vestido azul combinando com novos sapatinhos e tiara. Usava um colar novo com sua boneca de gatinha amarrada. Não combinava muito com o resto da roupa, mas Aurora estava se sentindo bastante ligada a ela. Era como se fosse algum amuleto que a ligasse com José. Por fim, os convidados começam a chegar, entre meninos e meninas que eram seus amigos, incluindo, é claro, sua melhor amiga Brenda que, por sinal, foi a primeira a chegar.

- Que gatinha bonitinha! - repara a amiga - Foi presente também?

- Sim. Mas não sei se ele vem hoje.

- Hmmm. Quem é? Alguém da sala?

- Você não conhece - responde Aurora - É um rapaz novo na cidade.

- Novo? Ele vai estudar com a gente?

- Não! Ele é mais velho, tem dezoito anos. Trabalha vendendo peças como essa gatinha, que ele mesmo faz.

- Novo na cidade e mais velho? Aurora...você gosta de rapazes mais maduros, é?

- Não tem nada a ver! É que...é que ele passa uma presença tão boa. É apaixonado por Literatura assim como eu. Sabe o livro que te mostrei hoje de manhã? Foi um professor dele quem escreveu!

- Hmm...interessante - diz Brenda - Ele é de outra cidade?

- Pois é. Ai, mal vejo a hora de crescer e viajar bastante! Como devem ser as outras cidades? As outras culturas? Só olhando pelos jornais e lendo nos livros não dá para saber muita coisa.

- Entendo. Mas será que vale a pena?

- Como assim?

- Ah, Aurora...a gente tem tudo aqui, não tem? Será que você não consegue ser uma escritora aqui na cidade mesmo? Vivemos tão bem.

- Ah, Brenda...claro que eu amo esse lugar, mas quero muito ver o que tem lá fora.

- Lá fora, heim? - repete Brenda.

 Aurora achou a conversa estranha, mas como outros convidados estavam chegando, não deu muito para conversar sobre isso. No fim, a festa estava perfeita. Todos os convidados e pessoas queridas de Aurora estavam lá. Comendo salgados, bebendo suco e se divertindo. Era um ambiente agradável. A noite passou bem rápido e logo chega a hora de Aurora apagar as treze velinhas de seu bolo. Antes disso, ela observa em todos os cantos para ver se seu mais novo amigo não havia chegado.

- O que foi, filha? Já vou servir o bolo - fala a mãe, reparando que Aurora estava procurando alguém.

- Só estava vendo se o José não veio - balbuciou ela.

- Ah, ele deve ter ficado sem-graça de vir mesmo - disse a mãe - Vem. Vamos apagar as velinhas.

 Logo, Aurora estava na frente de seu bolo, cantando junto o parabéns e preparando-se para assoprar as pequeninas chamas que simbolizavam mais um ano de sua vida passando. Nessa hora, seu pai grita algo.

- Vai, filha, faça um pedido.

- Um pedido, heim?

- É. Pensa em alguma coisa e assopra.

 Aurora pensou bem e desejou sair da cidade algum dia. Feito isso, ela assopra as velinha satisfeita.

- O que você pediu? - perguntou Brenda, logo ali perto.

- Hihi. Dizem que se falar não se realiza.

- Nem para sua melhor amiga?

- Ah, você sabe, pedi para um dia viajar para outra cidade.

- Viajar? - pergunta sua mãe - Você quer mesmo ir para algum outro lugar, filha?

- Sim. Sempre quis conhecer novos lugares. Sempre te disso isso, mãe.

- Outros lugares - repete o pai dela - Não existem outros lugares tão bons como o nosso vilarejo.

- Como assim, pai?

- Você sabe o que falam das outras cidades, não sabe? Coisas ruins acontecem. Eles tem ladrões, bandidos e e pessoas más. Aqui você pode ter tudo que precisa, sem correr risco algum.

- Concordo com o seu pai, filha - diz a mãe - Por que você precisa sair? Não é tão bom viver aqui pacificamente com sua família e amigos?

 Todos da festa começam a olhar Aurora com simpatia. Ela fica sem jeito e não entendia muito bem o que tinha de errado com o seu desejo. Qual o problema de visitar outros lugares? Por que estavam tão interessados em mantê-la ali, no vilarejo?

- Fique sempre com a gente, Aurora! Qual o problema?

- E-Eu sempre vou amar todos vocês! - gagueja ela - Mas...mas eu tenho um sonho. E eu quero realizá-lo. Já tomei minha decisão!

 Nisso, ocorre um tipo de vento. Os convidados parecem ignorar isso, embora suas roupas farfalhem com o movimento do ar tanto quanto os cabelos de Aurora. Por um instante misterioso todos pareciam paralisados, até que o pai de Aurora quebra o silêncio.

- Então...essa é a sua escolha, filha?

- Sim. Eu te amo, pai, mas tenho os meus próprios sonhos. Um dia quero ser uma boa escritora e quero conhecer muitos lugares novos

- Se é a sua decisão, não podemos fazer nada - diz Brenda - Mas...se quer mesmo viajar, precisa sair daqui por si mesma.

- Hã? Mas é claro, Brenda. Eu mesma pegarei o trem um dia e viajarei para outro lugar.

- Não, você não entendeu, Aurora - diz uma voz conhecida. Aurora olha para trás e se depara com seu novo amigo José. Ele veio, enfim.

- José! Então...você veio mesmo. Que bom!

- Na verdade, eu só vim porque você fez a sua escolha.

- Hã? Como assim? Não estou entendendo o que está acontecendo...aliás, o que está acontecendo?

- Aurora, você diz que quer sair para realizar seu sonho, não é? E se isso fosse possível de fazer aqui mesmo? E se você pudesse se tornar a escritora mais famosa do mundo apenas produzindo textos no seu próprio vilarejo? Você aceitaria?

- Se eu pudesse...fazer isso aqui mesmo?

- E se você pudesse ter tudo, sem nunca sair desse lugar tão acolhedor e pacífico? Você sairia? Sua família, amigos e pessoas queridas estariam todas aqui, sempre te apoiando e te agradando. Por que sair daqui?

- Você me falando isso, José? Mas você mesmo é um viajante e...

- Apenas responda - fala José, com uma voz mais severa. Todos os outros conividados aguardavam a chegada dela - Esse lugar é perfeito! Você nunca iria sofrer aqui! Ainda assim desejaria sair?

- S-Sim - balbucia Aurora. Todos arregalam os olhos, com exceção de José.

- O que disse, filha? - pergunta a mãe dela, com voz tristonha - Prefere abandonar um lugar tão calmo para se aventurar em situações mais perigosas? Aqui você sempre será querida, sempre será amada e nunca correrá perigo! Por que quer sair? Por que quer tanto isso? Esse lugar é perfeito!

- Você ouviu sua mãe, Aurora - balbucia José - Esse lugar é perfeito...você concorda com isso? Dependendo da sua resposta, muita coisa pode mudar.

 "Dependendo...da minha resposta?", pensa Aurora. Nisso, ela sente a mesma sensação estranha novamente. A mesma pontada na memória. Como se já houvesse passado por uma situação parecida antes.

- Vai responder ou não, Aurora? - pergunta Brenda - Não acha que esse mundo é perfeito?

- Não - Aurora faz uma cara séria - Não! Não e não!

 Os convidados dão um passo para trás. Aurora continua exclamando negativas de forma firme.

- Esse lugar não é perfeito! Eu não estou em um paraíso...porque...por que eu não sou livre! De que adianta a segurança sem a liberdade?

- Então essa é a sua resposta? Esse lugar não é perfeito? - pergunta José - Então que lugar é perfeito?

- Talvez...talvez nunca possa encontrar um lugar perfeito - diz ela - Porque se tudo for perfeito, não teria graça! Preciso de desafios, preciso de obstáculos! Não existe história boa sem sofrimento!

- Sofrimento, heim? - continua José - E você já sofreu alguma vez? Já passou por alguma situação de dor?

- Que eu me lembre... - Aurora tenta puxar pela memória, mas não consegue se lembrar de nenhuma situação desagradável, desconfortável ou humilhante que tenha passado - ...espere...não consigo me lembrar...não consigo me lembrar de ter sofrido uma única vez...

- Se não sofreu nem uma única vez, esse deve ser o lugar mais perfeito para você, não acha? - fala José - Não acha incrível existir um lugar assim...

 "Eu...eu nunca sofri", pensa Aurora, refletindo sobre as palavras de José, "Quando paro e penso, é verdade...nunca passei por nada realmente sério nesse mundo. Como isso é possível? É mesmo possível ter um caso assim? Não me lembro sequer de ter lido uma única notícia triste no jornal. Apenas histórias tristes nos livros, mas parando e pensando, nunca vi nada que realmente fosse sério. Nem um crime. Nem um desastre. Não me lembro sequer de ter ouvido falar de alguém que tenha morrido..."

 - Vou repetir, Aurora. Não é incrível que exista um lugar completamente perfeito para você? Um lugar onde você possa viver protegida? Não acha?

- Não é...

 José observa a reação dela. Aurora começa a sentir a sensação em sua mente cada vez mais forte e finalmente se dá conta da situação.

- Não é incrível, porque...porque...PORQUE NÃO EXISTE! - grita ela - Esse mundo não existe! Eu não sou nenhuma Aurora! Minha mãe nunca foi ela...minha melhor amiga nunca foi essa esquisita...um lugar tão conveniente como esse nunca poderia existir de verdade.

 - Oh, que radical - fala José, cinicamente.

- É claro, agora tudo faz sentido. É um tipo de sonho, não é? Um sonho perfeito demais para ser verdade...se eu tivesse dito que concordava que era um lugar perfeito, vocês me manteriam aqui para sempre, não é? Mas por mais conveniente que seja, não é perfeito, porque não é real. Esse lugar não existe...e eu não sou porcaria de Aurora nenhuma! Essa é a verdade!

- Muito bem, Monalisa - diz José, sorrindo cinicamente - Achei que ia demorar mais para perceber uma coisa tão simples. Nos veremos de novo...

 O moço some no ar, assim como todo o cenário em volta. As pessoas vão se dissipando, o local vai sumindo e a mente de Monalisa vai voltando, voltando como se estivesse acordando de um sonho, mas nesse caso, foi algo muito mais profundo. Algo que, talvez, ela nunca pudesse ter saído.

- Ora, ora, até que foi rápido...menos de um dia - era a voz de Fábio, o pai de Monalisa e Mestre das Chaves.

- Pai? - diz Monalisa, abrindo os olhos devagar e se vendo na mesma casa de praia para onde Fábio havia lhe trazido - Então...eu consegui?

- Isso mesmo. Acho que agora...podemos conversar com um pouco mais de calma, não é?


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Notas finais do capítulo

E aí? Três capítulos de Pesadelo em uma tacada só para comemorar o feriado! Beleza, heim?
No próximo capítulo vamos entender o que foi o devaneio da Aurora e o que será a chave de desmascaramento do Labirinto. Logo, logo começamos o último arco da série no Labirinto Desvelado. Como será que vai ser? Ainda tem alguns capítulos pela frente, então fique esperto.
Até mais! ^^
PS: Se puder, dê uma força na minha nova história "Encrenca Shaolin". Só tem o primeiro capítulo, mas se puder ler agradeço (é só conferir no meu perfil).
Agora sim...até!



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