Kaleidoscope - Um Mundo só Seu escrita por Blodeu-sama


Capítulo 6
Cap. VI – Jogos de Etiqueta Sentimental


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo. O nome desse capítulo foi baseado na musica SENTIMENTAL na onigokko, do the GazettE. Não sei bem qual musica encaixa nesse capitulo, as musicas do Uruha, do Kai, do Ruki e do Shou podem ser escutadas nessa ordem. Link no profile.



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Uruha tinha consciência que devia estar sonhando. Afinal, provavelmente não existiam camas de hotel com quilômetros de distância... existiam? Ele não podia ter certeza, em meio ao sonho. Só que estava lá, deitado, nu e sentia na pele os lençóis de seda refrescantes causando-lhe arrepios. Acima dele, o céu azul, sem nuvens, parecia parado como em uma fotografia. Ou como uma pintura. Uma pintura quebrada. Não, não era uma pintura quebrada, era um quebra-cabeças... mas havia alguma coisa que não estava parada naquele céu. Um grande dragão dourado voava acima dele, fazendo piruetas e brincando alegre com o ar.

Quando o dragão chegou perto o bastante, ele pareceu sorrir para Uruha. Tinha olhos azuis, como o céu. Talvez fossem mais esverdeados que o céu. Eram bondosos, de qualquer maneira... Uruha gostava daquele dragão, gostava de estar ali, observando-o brincar alegre pelos céus. Dedos suaves deslizaram pela sua barriga nua, mas Uruha não se virou para ver quem era. Não importava. Ele sabia quem era... Um barulho estridente encheu o ar calmo e Uruha franziu o rosto. O dragão dourado parecia se afastar, enquanto as peças de quebra-cabeças do céu despencavam por sobre os lençóis de seda quilométricos, deixando buracos negros no lugar.

Ele tentou se erguer, chamar o dragão de novo, mas a mão que antes lhe acariciava parecia empurrá-lo para a cama, prendendo-o, sufocando-o e ele não podia ver o rosto do dono daquela mão. Ele não podia virar o próprio rosto e o barulho estridente enchia o ar, junto com a escuridão cada vez maior e a sensação de estar caindo em um abismo, trevas fundas, cada vez mais fundas...

Uruha abriu os olhos de uma vez, para logo em seguida fechá-los de novo, sentindo as retinas queimarem com a claridade repentina. Estava enroscado nas cobertas, os braços meio presos em volta do corpo e demorou uns bons trinta segundos para conseguir se livrar da própria cama. O barulho irritante de uma buzina entrava pela janela meio aberta e o loiro cobriu o rosto com o braço enquanto se erguia e expunha o rosto sonolento ao vento fresco de começo de inverno.

- TORA SEU BASTANDO INSACIAV... ah...Hiroto-san – havia um profundo desgosto em sua voz.

- Você ainda estava dormindo?! Come on! Eu tenho que te deixar no Circe em dez minutos!

Uruha fechou a janela de uma vez, pensando seriamente em ignorar o Fiscal e voltar a dormir. Deus, como estava cansado! Se não fosse pela cadeia... Aquele idiota metido a machão do Tora lhe dera um certo trabalho no dia anterior. Uruha tirou o pijama e olhou para o próprio corpo no espelho que tinha pendurado atrás da porta de seu quarto; e xingou novamente o moreno de vários nomes bem pouco apropriados notando as varias marcas roxas maculando sua pele cor de leite. Havia marcas de mordida em suas coxas! E um chupão particularmente embaraçoso no pescoço, que nem meio quilo de maquiagem poderia esconder. Pelo menos fora a última vez. Ele e Tora haviam concordado que não voltariam a fazer sexo descompromissado por um longo tempo. E Uruha era quem estava particularmente feliz com a idéia.

Tora conseguia ser um verdadeiro animal na cama. Um tigre selvagem.

Vestiu uma calça jeans larga e uma blusa de lã de gola alta, para esconder aquele bendito chupão, penteou os cabelos e passou na cozinha, dando um beijo na bochecha da mãe e enfiando uma torrada na boca.

Hiroto não desligara o carro e mal Uruha se jogou no banco da frente, ele arrancou, dirigindo tão perigosamente quanto um agente da lei poderia dirigir numa segunda de manhã.

- Quem é Tora? – perguntou, casualmente, freando bruscamente na frente de um sinal de trânsito.

Uruha, pouco se importando com o quão perto haviam passado daquele poste lá atrás, virou-se para o fiscal com um olhar meio sonolento, meio irritado.

- Que gosto tem a “massa italiana” do Shou?

Hiroto deu ombros, pisando mais uma vez no acelerador.

- Eu tenho que perguntar. Preciso averiguar se você se encontra com traficantes ou qualquer outro tipo de gente-problema.

O loiro riu pelo nariz, voltando a olhar pela janela.

- Ah sim, e eu iria lhe contar voluntariamente! Mas pode apostar que ele não presta. Está quase recebendo licença pra advogar pelo governo ou algo assim.

- Hum, advogado é? Você parece não gostar muito dele.

- Ah, eu não nego que ele tem lá suas qualidades – respondeu Uruha, fechando os olhos e passando os dedos sobre o tecido jeans, onde sabia que havia uma marca particularmente feia. – A principal delas é o carro – completou e Hiroto riu, falando depois de alguns segundos.

- A massa dele tem gosto de sola de sapato. E dá vergonha sair com ele na rua, com todas aquelas roupas douradas da era disco. Mas ele é um cara gentil, quando estamos sozinhos.

Porém Hiroto parou de falar quando estacionou em frente ao prédio alto e azul claro, vendo o mencionado em questão parado em frente as portas de entrada, conversando com uma outra pessoa, um cara loiro e meio atlético, usando uma blusa sem mangas mesmo com o frio que fazia.

- Vamos, desce logo, eu não preciso descer e levar você a porta como se fosse uma criança todos os dias – disse e Uruha balançou a cabeça negativamente, abrindo a porta.

Porém, quando Hiroto fazia menção de pisar fundo outra vez, fugindo dali, Uruha se debruçou sobre a janela.

- Por que Pon?

- Você quer ser preso?! – perguntou num tom de voz meio exasperado, vendo que Shou virara o rosto em direção a eles.

Uruha se afastou do carro, com os braços erguidos em rendição e rindo debochadamente. Hiroto deu um jeito de sumir em dois segundos, não sem antes lançar um olhar sério ao secretário vestido de prateado no alto da escadaria e ao homem com quem ele conversava.

O loiro entrou para mais um dia de martírios e trabalho escravo, tentando se lembrar do sonho que tivera. Parecia que havia um dragão...

-

Naquele sábado, quando Kai chegou ao Circe para passar mais uma manhã ajudando o amigo, encontrou Uruha num estado de mau humor memorável. Era de se esperar que com o passar das semanas, ele se acostumasse à rotina, mas a cada dia ele parecia odiá-la mais e uma vez chegara a pedir para alguns de seus obscuros amigos arrumar para ele um atestado médico, que conseguiu enganar bastante bem Hiroto. Pelo menos na primeira vez. Já fazia, segundo as contas de Kai, um mês exato.

- Faltam cinco! Cinco inteiros!!! Eu não... cof... suporto mais esse lugar.

Uruha estava novamente coberto de pó, naquela saleta abafada e minúscula, abarrotada até o teto de pastas. Quando não estava limpando banheiros, ele tinha que ficar ali, organizando dia após dia todos aqueles arquivos médicos pelo nome do paciente, limpando o pó que se formara por cima das caixas e se entediando até enlouquecer também. Era pior que prisão! Sua sorte, se é que ele poderia ousar chamar assim, é que a faxineira finalmente voltara das férias e o dia anterior tinha sido seu último com os esfregões, luvas de borracha e sobretudo com aquele macacão laranja ridículo. Mas ele ainda estava na letra K.

No fundo, sabia que estava demasiadamente estressado. Mas havia um outro tipo de frustração por trás dessa primeira, uma que ele não estava nem um pouco a fim de admitir. Na verdade, desde aquela última vez com Tora, ele não havia se encontrado com mais ninguém. Geralmente chegava exausto demais em casa para conseguir se arrumar descentemente e sair; e quando não estava cansado o bastante, seu torturador particular, chamado vulgarmente de pai, o fazia trabalhar ainda mais.

Uruha já não tinha mais nenhuma fonte de renda independente. Nem mesmo o dinheiro que ganhava trabalhando na feira e por isso era obrigado a pedir para o progenitor, que não contente com a punição que o filho já recebia do governo ainda o obrigava a trabalhar por mais algumas horas fazendo gráficos e porcentagens no computador. E só então o senhor Takashima se dignava a liberar alguma ajuda financeira ao filho mais novo.

Uruha sentia a irritação correr pela pele como faíscas, enquanto enfiava de qualquer jeito uma pasta amarelada com a etiqueta Kumidori Tadashi dentro de uma caixa meio torta. Ele sentia que precisava simplesmente voltar a ser ele mesmo, fazendo sexo com pessoas que acabara de conhecer ou simplesmente andando pelo centro lotado de pessoas de Chinatown(1), fazendo as carteiras delas deslizarem silenciosamente para dentro de sua bolsa. Ele precisava de um pouco de ação.

- Pensa bem, Uruha, é isso ou a prisão.

- Você hoje está particularmente inútil, Kai.

O moreno riu. De fato, estava apenas encostado ao batente da porta, conversando com Uruha enquanto esse estava sentado no chão, usando apenas calças jeans e uma camiseta branca justa meio suja de poeira, rodeado por pastas e caixas. Como um gigante no meio de uma mini-cidade.

- Afinal, o que é isso tudo? – perguntou, sem dar qualquer indicação de que iria ajudar naquela manhã.

- O que você acha? As fichas completas dos loucos e retardados que freqüentam e freqüentaram isso aqui desde que foi construído. Tem exames médicos, receitas de remédios tarja preta e relatórios de psiquiatras, desenhos e cartas que eles mesmos escreveram e coisas assim. Tudo tremendamente chato.

Mas Kai havia se aproximado e pegado uma das pastas, abrindo-a ao acaso.

- Não é legal você ficar chamando eles de retardados, Uruha. E isso parece interessante pra mim – ele sorriu e virou a pasta para o maior poder olhar o conteúdo - Olha só, essa garota desenhou borboletas. Parece bem normal.

Uruha apertou os olhos para ver melhor.

- São peixes. Peixes voadores em cima de uma cidade.

Kai voltou a olhar, então exclamou um “Ah...” fraco e voltou a ficar em silêncio, por alguns instantes.

- Escuta, Uruha, você precisa de alguma coisa? Porque eu tenho que voltar sabe, estou fazendo hora extra de sábado na lanchonete. Por causa dos médicos.

Uruha, com a testa franzida em concentração, perguntou sem olhar para o amigo.

- Como é que a Baachan está?

Kai suspirou e deu um sorrisinho tímido, olhando para os próprios pés.

- Não muito bem...

O loiro largou o que fazia e olhou para o amigo, vendo-o morder o próprio lábio inferior. Aquilo o preocupou. Kai nunca, nunca mesmo perdia o bom humor. E Uruha realmente gostava da velhinha. Como mal conhecera a própria avó, sempre a chamava de Baachan e ela parecia gostar disso. Ela era tão alegre e falante quanto o próprio Kai e era dela também que o moreno herdara o talento com as panelas. Porém era uma velhinha esperta, que adorava soltar frases ambíguas e insinuantes quando Uruha estava lá, como se ela soubesse como a vida dele era... pouco ortodoxa. Ela conseguia constrangê-lo às vezes e Uruha raramente se constrangia. Mas da última vez que fora vê-la, ela estava mais magra e mais pálida, deitada em sua cama com um pequeno romance bobo no colo. Frágil demais, na opinião de Uruha.

- ...Ela vai melhorar – disse com uma voz muito mais firme do que sua própria crença nisso. Kai assentiu, meio hesitante.

- Bem, ela já tem noventa anos... e sempre teve coração fraco, você sabe. Agora que eu paro pra pensar nisso, é quase um milagre que até pouco tempo atrás ela ainda estava trabalhando e andando por aí com aquela bolsa enorme de palha que ela levava pra todo lugar...

O moreno soltou uma risadinha baixa e Uruha sorriu um pouco.

- Ah, a Baachan é forte e teimosa. Você ainda vai ver ela sair de casa com aquela bolsa de palha muitas vezes.

E embora notasse que o moreno ainda não estava completamente tranqüilo, Uruha ficou um pouco mais aliviado ao ver o sorriso largo voltar à face dele.

- Ela mandou convidar você para o almoço de Natal. Você disse que seus pais vão para a casa da Tieme então acho que não tem problema, certo? Eu vou cozinhar dessa vez.

- Nah, eu vou acabar sobrando lá. A Akemi-san não esta muito feliz comigo desde... aquilo.

- Ah, mamãe desistiu de tentar consertar você desde quando a gente tinha quatorze anos e ela pegou você colocando laxante na coca-cola daquele cara que me derrubou no futebol. Vaaaaamos, a Baachan vai ficar contente com você lá – Kai o encarou com um olhar pidão.

O loiro agora tinha no rosto um olhar meio indignado, meio maroto. Lembrar de coisas como aquela história do laxante eram estranhamente tranqüilizador, de uma maneira meio sádica, ele admitia.

- Ele quebrou a sua perna naquele jogo, sem razão nenhuma. Se ao menos você estivesse com a bola... – Kai revirou os olhos, Uruha sempre usava aquela desculpa. – Se a Baachan quem convidou, eu vou sim.

Quando tornou a se virar, havia um sorriso ainda maior no rosto do moreno.

- Ela vai adorar. Ela gosta de se divertir as suas custas, você sabe.

Uruha estreitou os olhos e sorriu de forma cruel.

- Espere só até eu deixar escapar para ela sobre sua nova paixão... hey! Crianção – resmungou o loiro quando Kai apenas corou tão profundamente quanto possível e saiu andando acenando o dedo do meio a guisa de ‘tchau’. Ir embora era o único modo de fazer Uruha parar de falar tanta besteira sem fundamento...

O loiro bufou e voltou a olhar para as pastas e caixas, acabando de colocar o último arquivo de letra K e puxando para junto de si o porta-arquivo de letra M. Foi quando o acesso de tosse (aquele pó ainda o mataria!) passou que ele viu uma pasta que lhe chamou atenção, em meio a varias outras. Era uma das mais amareladas e mais cheias, e a pequena aba lateral trazia em letras quadradas e impessoais o nome Matsumoto Takanori.

Aquele rapaz o intrigava. Não que gostasse dele, era só mais um esquisito do lugar, mas ele sempre parecia tão... tão... Uruha não conseguia achar uma palavra que descrevesse bem o que via quando olhava para o garoto. Ela não falava com Uruha, esquivava-se de estar com ele, mas às vezes, sem motivo aparente, Uruha sentia o menor lhe puxar a manga da blusa e empurrar uma peça de quebra-cabeças em sua direção. E então, por alguns momentos, Uruha parecia entrar no mundo dele e toda a frustração e irritação ficavam do lado de fora.

Às vezes Uruha se perdia nas imagens complexas do jogo, nos pequenos fragmentos se tornando uma coisa só e se pegava sorrindo. Então o secretário irrequieto e saltitante chamado Shou, ou Hiroto-san ou mesmo o enfermeiro Nao – com sua cara de filhote de cachorro e a sua irritante mania de tentar ser gentil e agradável – chegavam; e o mundo real voltava a existir num piscar de olhos e com ele todos os problemas normais de uma pessoa sã. Uruha sentia que devia agradecer por isso. Mas não sentia vontade alguma de agradecer.

Ele esticou o pescoço para ver o corredor através da porta aberta. E quando não viu ninguém, recostou as costas em uma estante e abriu a pasta na primeira página. Era uma ficha de dados pessoais simples, com nome, nome dos pais, data de nascimento...

- De jeito nenhum que ele é só seis meses mais novo que eu! – murmurou sozinho. – Ele parece ter dezoito anos...

Porém não se ateve muito a esse detalhe. Logo abaixo estava o diagnóstico, datilografado na folha antiga. Síndrome de Asperger, diagnosticada quando ele tinha três anos, por um psiquiatra chamado Jiujirou Kouza. Uruha virou a folha com cuidado, passando por cópias de exames que ele não entendia, até um relatório feito em uma letra inclinada e antiquada, aparentemente escrito pelo próprio doutor Kouza.

“Takanori Matsumoto, masculino, Sindrome de Asperger, cinco anos.

Faz hoje dois anos desde o início da terapia. Takanori apresenta progressos significativos, em se tratando de uma criança. O desenvolvimento da fala permanece normal e o desenvolvimento cognitivo é, como esperado, acima da média. Ele demonstra grande habilidade musical, em especial ao piano. A mãe relatou hoje que ele parece fazer contato visual mais freqüente com as pessoas da família e eu mesmo pude testemunhar em nossa última seção uma genuína gargalhada. Que me perdoem os que vão ler esse relatório além de mim, mas fiquei realmente feliz ao ver o garoto demonstrar um sentimento com a facilidade de uma criança sem SA.

Quanto ao...”

O loiro virou a página, pensando. O Ruki de cinco anos parecia bem melhor que o Ruki atual. Nas páginas seguintes, encontrou mais relatórios parecidos, com palavras animadoras do médico. Frases como: “Ele parece ter tomado consciência de sua própria debilidade em demonstrar emoções e nota-se um esforço por parte do paciente de racionalmente tentar superar tal dificuldade” e “Takanori encontra-se num estágio tal de consciência de si mesmo que, para estranhos, ele pode aparentar ser ‘tão normal quanto os outros’, em suas próprias palavras”, e ainda “Ele parece contente com a idéia de ter um apelido diferente e pediu-me para chamá-lo de Ruki a partir de hoje. Devo acrescentar que isto é esperado aos quatorze anos de idade em qualquer adolescente de desenvolvimento mental regular”. E em meio a esses relatórios, alguns desenhos se destacavam. Uruha notou que geralmente representavam rostos e expressões diversas, de extrema alegria a tristeza visível, mas nenhum rosto era inexpressivo. E ele desenhava extremamente bem.

Então os relatórios de repente se tornavam bem mais sombrios.

“Takanori sofreu um choque além de suas capacidades com a morte dos pais. Ele parece ter se fechado como uma casca de noz desde o dia do enterro. Evita contato visual, conversas, até mesmo assuntos que antes lhe despertavam interesse extremamente vívido, como a música, não mais lhe agradam. Creio que não devesse ser posto sob tutela de um rapaz tão jovem como o sócio das empresas Matsumoto, Saga-san. Mas ele demonstrou uma maturidade e uma praticidade exemplares diante dos arranjos jurídicos necessários e parece afeiçoado ao paciente, além de ter sido oficialmente nomeado em testamento como responsável por ele em caso de morte dos pais. Creio ser melhor esperar que Takanori se recupere por si só. Não há nada que possamos fazer no momento”.

De acordo com a data no início da página, aquilo ocorrera quando Ruki tinha quase dezoito anos de idade. A partir daí palavras como “depressão pós-traumática” e “mundo particular” apareciam bastante e os desenhos, mais escassos, agora mostravam pessoas geralmente nuas, de rosto escondido nas sombras, frágeis. Teias de aranha se tornando tecidos. E estranhamente, cartas de baralho. Sempre o mesmo naipe, um nove de copas. Uruha leu um relatório inteiro do doutor Kouza sobre o fato de Ruki apresentar extrema dificuldade em se concentrar no mundo ao redor, quando estava fazendo alguma coisa como tocar ou estudar. Pelo que tinha entendido, era como se ele se focasse tanto em um pedaço do mundo, que todo o resto simplesmente desaparecia para ele. O que antes parecia um progresso, como a capacidade de racionalizar comportamentos emocionais, agora era um tipo de obsessão também. Ruki vivia ansioso por corresponder as expectativas de normalidade.

Uruha virou a página e notou que aquele relatório tinha uma letra diferente, assim como os seguintes. Uma letra mais corrida, mais atual. Datava de cerca de um ano e meio atrás e era assinada por um psiquiatra chamado Akira Suzuki. Uruha achava que já tinha ouvido esse nome pelos corredores uma vez, mas não tinha certeza.

“Takanori é um quatro intrigante e ao mesmo tempo um pouco desesperador no que se refere à psicologia moderna. Pelo que li em sua ficha médica, antes do falecimento dos pais ele parecia bastante integrado a sociedade, mas o que vejo a minha frente agora é algo bem mais complicado. Ele havia se isolado do mundo exterior com a morte dos pais, mas com o recente falecimento de seu antigo terapeuta ele de fato parece ter desenvolvido um grau de autismo maior do que o que foi diagnosticado inicialmente. Creio que a culpa foi do fato de ter encontrado ele mesmo o corpo do doutor Kouza, em tal estado lamentável.

Ele apresenta também uma nova obsessão, por coisas em pedaços. Não há maneira de descrever melhor, já que seu interesse vai de mosaicos a vitrais de igrejas, passando por quebra-cabeças e estranhamente, caleidoscópios...”

- Queriiidoooo! Sua hora de almoço já pass... oh dear, você não pode ficar lendo a ficha dos pacientes!

Uruha, ao ouvir a voz afeminada e meio nasalada entrar repentinamente na sala, havia fechado a pasta com força, fazendo algumas folhas soltas voarem. Olhou com um certo desprezo para Shou, aquela coisinha saltitante ridiculamente vestida. O loiro rapidamente recolheu as folhas soltas e as enfiou de qualquer maneira na pasta, tencionando se livrar logo da nova companhia, mas Shou havia se sentado sobre uma caixa, os joelhos juntos e os dedos entrelaçados próximo ao queixo. Olhava com uma mistura de meiguice e pena para Uruha.

- Deixe-me adivinhar... é a ficha do Ruki-san.

O loiro abriu um pouco os olhos, meio espantado, então confirmou com a cabeça, entregando a pasta ao outro, que apenas a guardou com cuidado no devido lugar. Então Uruha perguntou, meio na defensiva, já que não gostava e não confiava naquele cara.

- Como você soube?

- Ah dear, eu vi você com ele. Montando quebra-cabeças quando aquela coisa fofa do Nao resolve dar uma esticada nas pernas. Pobrezinho daquele enfermeiro! Ele praticamente não tem folgas! Mas quem é que ousa contrariar o Saga-san?! Não, o diretor é um homem rígido. Ninguém diz olhando aquele rosto bonito. Ele é jovem também e já tem metade da cidade nas mãos. Mas enfim, eu acho que você gosta dele.

Era um pouco desconcertante ouvi-lo falar. Uruha não sabia se era por causa no excesso de sentimentalismo e rapidez, ou se era porque naquele dia em específico, Shou estava usando uma calça colada de estampa de oncinhas e botas prateadas.

- ...Eu não gosto do garoto! – exclamou por fim. – Eu só gosto de quebra-cabeças.

- Oh, claro que gosta... – o tom sarcástico fez toda aquela irritação elétrica voltar e Uruha disparou a queima roupa.

- Você praticamente lambe o chão que aquele idiota do Hiroto pisa!

- Ah sim, eu o amo – respondeu com simplicidade. Tanta simplicidade que Uruha não sabia o que dizer.

- E-ele claramente não está nem aí...

- É, eu sei. Mas eu o amo, de qualquer modo. Então eu faço o que faço de melhor para ver se consigo conquistar o coração dele.

- Macarrão? – perguntou Uruha, irônico. Shou riu-se, fazendo um gesto de pouco caso com a mão. Os olhos azuis acinzentados dele brilharam.

- Eu ajo como um raio de sol! Ah dear... você não entende. Você acha todos nós ridículos, mas o que você não percebe é que nós apenas prestamos atenção aos nossos corações.

Então Shou se levantou em um pulo e deu um beijo estalado na bochecha de Uruha antes que ele pudesse se esquivar.

- Mas logo você vai perceber. Eu sei que vai – e bateu de leve na caixa onde guardara a ficha de Ruki.

Uruha demorou uns bons trinta segundos para reagir, tempo no qual o saltitante Shou já havia desaparecido outra vez pela porta. Só então ele fez uma careta de nojo e limpou a bochecha com as costas da mão, resmungando enquanto se levantava.

- Bicha maluca...

oOo

(1) Antes que alguém me linche viva, essa fic se passa em Yokohama, capital de Kanagawa. E lá existe uma Chinatown bem grande e bem lotada.


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