Entre Fogo e asas escrita por ACunha


Capítulo 5
Buraco Negro


Notas iniciais do capítulo

Desculpem a demora... Apesar de ninguém estar mandando review. Vamos lá, gente, a mão de ninguém vai cair '-'



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O dia seguinte foi pior; mas de certa forma, foi menos cansativo. Tudo que fiz foi ficar trancada no meu quarto, em um protesto silencioso quanto ao exagero dos meus pais, fazendo minhas malas e me livrando de roupas velhas. Eu realmente precisava dar uma geral no meu guarda-roupa. 

Minha mãe bateu à minha porta nove horas em ponto. Ela estava trazendo meu café da manhã. Ovos com bacon e leite com chocolate. Eu estava faminta, então devorei tudo em menos de cinco minutos. Ela talvez tenha percebido as olheiras sob meus olhos, já que não parava de me olhar. Mas, se percebeu, não disse nada. Parecia cansada também, como se não agüentasse nem falar sobre o dia anterior.

-Sam... - ela começou com a voz baixinha. - Você não precisa ir se não quiser.

Isso quase me fez engasgar. Respirei fundo.

-Eu tenho que ir - respondi devagar. - Se não for assim, vocês não vão confiar em mim. Não vão confiar na minha palavra. 

-Ah, minha filha...

-Eu sei, mãe - desviei os olhos pois não queria encará-la. Era muito mais difícil. - Só quero que saibam que, quando voltar do internato, ainda terei os mesmos sonhos, e ainda saberei o futuro. Não é algo que vocês possam consertar, ou tirar de mim, ou mandar outra pessoa tirar. É... um dom - fiz uma careta. - Não, é uma maldição.

Alguma coisa quebrando lá em baixo chamou nossa atenção. Parecia um copo de vidro caindo no chão. Depois houve um grunhido de frustração.

-Papai não parece muito feliz... - comentei sarcástica.

-Ele também não aprova as próprias decisões - mamãe suspirou balançando a cabeça. - Não está feliz com a sua ida.

-Então deveria ter cancelado ela quando teve a chance - resmunguei me levantando e voltando à minha mala. Uma vermelha desbotada que estava por aí desde que nasci. 

-Só queremos o melhor para você, querida... - ela hesitou, de repente olhando para as mãos. - Sabe, tenho tido uma sensação estranha. 

Arqueei uma sobrancelha.

-Tipo o que? Enjôos matinais e tontura? - perguntei com um sorrisinho secreto.

-Sim - ela respondeu confusa. - Como sabe?

Suspirei e me virei para encará-la com ternura.

-Mamãe... - disse com aquela voz que amoleceria ela. - Só me prometa uma coisa. Se tiver um filho novamente, hipoteticamente falando, é claro, coloque o nome dele de Ian. 

Ela franziu a testa surpresa e confusa.

-Um filho... de novo? - perguntou meio radiante, meio perplexa. Eu sorri com a certeza e alegria de um médico que dá a boa notícia ao paciente com a doença fatal que vai viver. 

-Só prometa - eu disse.

-Eu prometo - mamãe respondeu sem hesitar. 

-Vocês duas! - papai gritou lá de baixo, nos assustando. - Reunião na sala!

Reviramos os olhos juntas. Joguei as roupas que tinha na mão em cima da mala quase cheia e desci as escadas me arrastando literalmente. Papai nos esperava lá em baixo, com seus olhos de águia afiados e frios.

-Eu tenho... - ele hesitou engolindo em seco. - Boas notícias.

Reprimi um risinho sarcástico que eu sabia que me meteria em problemas.

-Que tipo de boas notícias? - perguntei com o mínimo de sarcasmo que poderia usar. Ele apertou os olhos para mim, mostrando que desaprovava minha capacidade de fazer pouco caso dessas coisas.

-Consegui uma bolsa para você - papai disse simplesmente. - Uma bolsa integral. No internato Virgínia's Black Hole. 

O encarei silenciosamente por mais de um minuto.

-Sério? - perguntei enfim, um tom cético se esticando pela minha voz. - Virgínia's Black Hole? Esse é o nome da escola?

-Querido, não tínhamos combinado que seria aquele outro? - mamãe interveio.

-Eu sei; mas aquele estava fora dos meus limites financeiros. Eles me ligaram hoje de manhã e me indicaram esse novo internato. Liguei para lá e me ofereceram uma bolsa integral de primeira. Não é ótimo?

Ótimo. A palavra ficou rodando pela minha cabeça como uma abelha presa em um pote de vidro; sem respirar, sem voar, e sem ter lugar para ir. Até que finalmente sucumbiu e morreu. E então eu perdi o controle.

-Não - afirmei lentamente para que minhas palavras penetrassem na sua cabeça. - Nada disso é ótimo. Como pode ser ótimo mandar a própria filha para um lugar chamado Black Hole?!

-Assim quem sabe você cresça - ele afirmou friamente. - E pare de contar loucuras como sonhos que prevêem o futuro. 

-Ah, então é isso?! É tudo porque vocês acham que eu estou louca? - eu estava perdendo a cabeça. 

-Samantha, deixe de ser dramática - ele respondeu baixinho, cortando minha histeria. - E agora volte a fazer suas malas. Amanhã bem cedo sairemos de casa.

Respirei fundo e tentei usar outra tática.

-Pai... - disse em um sussurro suplicante. - Não faça isso. Por favor.

Ele amoleceu um pouco. Suspirou frustrado e se virou completamente para encarar meus olhos.

-Eu preciso - ele sussurrou de volta. - Não é só uma questão de achar que você é louca; não que eu ache isso. Mas outras pessoas já começaram a comentar. Vamos admitir, esta é uma cidade pequena. Todos já sabem do incidente de ontem à tarde. Todos conheciam seu irmão, e... - ele franziu os lábios, sem saber o que mais dizer.

-Entendi - assenti compreendendo. - Deixe-me adivinhar. Fui expulsa da escola? 

Meu pai balançou a cabeça.

-Foi apenas advertida. Mas o diretor está, digamos, com medo de você. E prefere que saia antes que cause mais alvoroço. 

Bufei irritada.

-Ótimo - sussurrei quase para mim mesma. Pensei em dizer mais alguma coisa, uma observação sarcástica, mas desisti. Subi as escadas correndo e me tranquei no meu quarto. Mas não me permiti chorar nenhuma lágrima. Isso não era razão para chorar. Então eu pelo menos podia chorar um pouquinho mais por Ian não estar ali quando eu mais precisava dele. 

A Virgínia's Black Hole ficava à dez quilômetros de carro de Bluefield. O internato fora construído bem no meio de uma clareira da floresta. Desci do carro com a minha mala de mão e olhei para trás. Mato. Olhei para frente. Mato. E era assim para todos os lados que eu olhasse. Um infinito de verde claro, verde escuro, verde musgo, verde, verde, verde! 

Quis vomitar.

Meus pais me acompanharam até a entrada. O internato em si era todo preto, e reluzia sob a luz do sol, machucando meus olhos. Tinha dois prédios menores dos lados, e um bem no meio, o principal. No topo deste maior, havia uma estátua. Parecia uma criatura recurvada com asas longas e pontudas. Engoli em seco.

-Que tipo de louco coloca gárgulas em internatos? - perguntei baixinho para a minha mãe. Ela olhou para mim e balançou a cabeça, como se dissesse "Ah, Samantha, me poupe". 

Dei de ombros e continuei os seguindo até a recepção. Era uma sala enorme, com ar condicionado, o que me fez agradecer silenciosamente. Era completamente branca e clara, fazendo um grande contraste com o que vimos lá fora, e o chão era revestido de lajotas brancas e lisas. Ainda bem que eu estava de tênis; mas minha mãe ficou se equilibrando para não escorregar com seus saltos altíssimos. 

No meio da sala, cortando o ambiente ao meio, havia um balcão de granito circular, e uma única atendente sentada atrás dele. Ela parecia jovem demais para trabalhar em um internato como aquele; tinha rosto de coração corado e feições miúdas, e cabelo ruivo e repicado cortado muito acima dos ombros. 

-Olá - ela disse com um sorriso falso quando nos viu. - Sou Beatrice. Você deve ser a aluna nova, não é? - sem esperar resposta, ela continuou. - Aguardem só um momento. 

Percebi que seus olhos eram negros e brilhantes como a construção em que estávamos. Ela se levantou rapidamente e foi correndo até uma porta do outro lado da sala. Beatrice devia ter a minha altura, o que significava que era muito baixinha, e era toda magrinha e pequena. Não podia ter mais de 25 anos. 

Depois de dois longos minutos, ela voltou com alguns papéis nas mãos e outro sorrisinho falso nos lábios.

-Samantha Sparks. E vocês são o sr. e sra. Sparks, certo? - ela riu. Um som irritante e nasalado. - Já que já mandaram a matrícula, acho que não há mais muito a ser feito. 

-Bom, nós queríamos saber... - minha mãe começou, mas foi interrompida.

-Todas as suas dúvidas serão respondidas na sala do diretor. Agora, se me dão licença só por um minuto, vou mostrar a srta. Sparks onde é seu dormitório. Tudo bem assim?

Olhei desamparada do rosto de Beatrice pra meus pais. Então era isso? Acabou? Eles me deixariam assim sem mais nem menos? Sozinha em um internato fora do mapa?

-Não precisa fazer isso se não quiser - mamãe me lembrou pacientemente.

Meu lado teimoso se agitou. Ora, é claro que eu precisava. Era um desafio; eu já havia entrado nessa, e só sairia quando acabasse. Era o meu jeito. Precisava passar por isso ilesa, ou nunca seria levada a sério. 

-Ligo quando puder - eu sussurrei e me estiquei para abraçar os dois uma última vez.  Vi que minha mãe estava se controlando para não chorar e pedir para que eu ficasse, mas até ela entendeu que era uma questão de orgulho. Mas me surpreendi ao abraçar meu pai e ver que seu aperto era de ferro, quase como se não me quisesse longe.

-Pai - sussurrei. - Está me sufocando.

-Ah, desculpe - ele me soltou e passou a mão pelo meu rosto. - Eu amo você. Não se esqueça disso, apesar do que acontecer. 

Ah, ótimo. Eu não iria agüentar muito tempo sem chorar.

-Amo vocês - respondi com uma voz embargada. - Agora tenho que ir. 

Virei e corri para seguir Beatrice por um corredor estreito que ficava atrás do balcão. Ela não facilitou para mim. Andava rapidamente, como se quisesse correr mas não pudesse, até que saímos do primeiro prédio e passamos por um caminho coberto até o prédio esquerdo. 

-Este é o prédio dos dormitórios femininos - Beatrice explicou agora sem sorrir e em uma voz automática. - Aqui também fica o auditório e o salão de festas. 

-Festas? - perguntei interessada. Agora estava ficando interessante.

-Algumas celebrações que o diretor gosta de fazer. Eventos de natal, ano novo, Halloween... 

-Espera - parei de repente, me dando conta de algo crucial. - Passamos todos os feriados aqui?!

-Não, sua boba - ela revirou os olhos exatamente como uma adolescente da minha idade faria. - Vocês têm alguns dias para visitar suas famílias no natal e ano novo. Mas é só. Ah, é claro, tem as férias de verão. 

Suspirei aliviada e continuei a seguindo. Quando paramos na porta do edifício, ela de repente se virou e me encarou com os olhos semicerrados, como se estivesse cansada e entediada.

-Só um aviso antes de entrar no inferno - ela disse com a voz meio debochada. - Se tiver um celular melhor do que os dessas garotas, é melhor jogar fora. O mesmo vale para as roupas e sapatos. Se não jogar, é bem capaz de algumas delas roubarem suas coisas. 

Arfei sem acreditar.

-Está falando sério? - perguntei cética. -Claro que sim. E tente não arrumar briga e nem se meter em uma festinha particular logo no primeiro dia, ok? - dita a sua dica, ela se virou para continuar entrando no prédio.

-E o que acontece se eu fizer isso? - perguntei atrás dela. Beatrice respondeu sem se virar.

-Elas comem você viva

As garotas da Virgínia's Black Hole eram... Bom, eu só diria que Kim não sobreviveria um dia naquele internato. Passei por alguns quartos com as portas abertas, e vi interiores das mais variadas cores; todas, menos preto, cinza e branco. Elas pareciam agitadas também. De vez em quando, passando pelo corredor cor de rosa, eu ouvia gritinhos histéricos vindo de um dos quartos, seguidos de mais gritos. Mas, em geral, todas só pareciam patricinhas metidas. O que logo se provou ser mentira. 

-Este é o seu quarto - Beatrice apontou para uma porta pintada de vermelho sangue. - Só uma dica. Cuidado com a garota aí dentro - ela piscou e deu um sorriso sombrio, dessa vez verdadeira. Antes que eu pudesse dizer algo, Beatrice havia ido embora. E então eu estava oficialmente sozinha. Eu, a porta cor de sangue e minha mala velha e desbotada.

Respirei fundo e bati na porta. Percebi pela primeira vez que havia um som vindo lá de dentro. Alguma banda de rock arranhava sua guitarra em um solo que parecia não ter fim. Fiz uma careta. Adorava rock; só não esse tipo de rock.  A pessoa lá dentro pareceu relutante em pausar a música. Ouvi passos. Aquele som assustador que sapatos de salto fazem na madeira. E então a porta estava sendo aberta, revelando uma garota...

...Um tanto diferente. Ela tinha cabelo preto como uma mancha de óleo, longo e liso. Tinha um nariz empinado e lábios cheios pintados de vermelho. Seus olhos eram cinza, como os meus, mas muito mais maliciosos. O mais impressionante era a sua pele. Se eu já me achava pálida, aquela garota parecia estar morta.  E as suas roupas... Ela usava uma mini saia preta, botas pretas de cano longo e salto agulha, e em cima, nada além de uma blusa que parecia um espartilho vermelho e cheio de renda preta.  

-Quem é você? - perguntou.  Sua voz me surpreendeu. Imaginei que daquela garota sairia uma voz angustiada, hostil, ou no mínimo triste. Mas ela sorriu e falou aquilo quase com alegria, ou sarcasmo, ou algo entre os dois.

-Sua nova colega de quarto - sussurrei suspirando. O jeito que ela se apoiava na porta... era quase vulgar. 

-Ah... - ela me examinou dos pés à cabeça e assentiu. - Entre. 

Então abriu a porta um pouco mais e revelou um quarto: uma metade vermelha, a outra branca. A parte branca era minha, obviamente, mas a parte dela era surpreendentemente... Linda. Sua cama era dourada com detalhes pretos e vermelhos, e estava perfeitamente arrumada. Seu armário era cheio de figurinhas e rabiscos e bilhetinhos com lembretes, tanto que eu quase não podia ver a madeira clara por baixo. Em cima da sua escrivaninha havia um notebook vermelho fechado e vários CDs espalhados, de todas as bandas que eu era fã, e mais algumas. Paramore, Pink Floyd, The Pretty Reckless, Oasis, Coldplay... enfim. 

-Qual era o CD que você estava escutando? - perguntei de repente. 

-Ah... System of a Down. Muito louco, não é? - ela se sentou meio agachada na cama e sorriu. 

Dei um meio sorriso. Jason ia se dar bem com ela.

-Louco - repeti reprimindo uma vontade de rir. Olhei para baixo e vi suas unhas pintadas de vermelho escuro.

-E aí, quem é você? - ela perguntou se deitando de barriga para baixo para me olhar, e cruzando os pés no alto.

-Já disse; sou sua colega de quarto - a lembrei.

-Eu sei. Mas quem é você? Sabe; seu nome, sua idade, o que faz da vida...

-Ah - eu ri nervosamente. - Samantha Sparks. Tenho 16 anos, e... Bom, aparentemente meu passatempo preferido é assustar os outros - terminei com um sussurro.

-Ah... então é uma das maluquinhas - ela sorriu se divertindo. - Meu nome é Megan Lyons, mas pode me chamar de Meg. 

-Meg - repeti mais à vontade. - Tudo bem.

-E aí - ela se levantou e colocou as mãos na cintura. - Já que vai aderir ao nosso estilo de vida, que tal um passeio pelo buraco negro de Virgínia? 

-Você quis dizer Virgínia's Black Hole - a corrigi. 

-Ah, tanto faz - ela subitamente se aproximou e me puxou pelo braço. Ela tinha força. - Vamos. Venha conhecer algumas pessoas interessantes.


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Notas finais do capítulo

Tem mais emoção no próximo capítulo, prometo ;*



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