Entre Fogo e asas escrita por ACunha


Capítulo 4
Um Motivo Para Ser Internada


Notas iniciais do capítulo

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Minha cabeça latejava. Eu quase podia ouvir meu coração batendo, mas depois de um tempo percebi que eram os bipes daquela máquina que conta nossos batimentos cardíacos. Qual é o nome dela mesmo? Ah, não importa.

Virei o rosto lentamente e tentei abrir os olhos. Sem sucesso. Fiquei analisando mentalmente os bipes agudos que a máquinha emitia. Meu coração estava normal. 

Uma pressão em meus dedos chamou minha atenção. Quando tentei abrir os olhos dessa vez, consegui espiar apenas por alguns segundos, e vi minha mãe sentada ao meu lado, com a cabeça baixa e olhos fechados. Se não soubesse que minha mãe não acreditava em Deus, eu diria que ela estava rezando. 

-Mãe? - tentei falar, mas minha voz não saiu. Tentei limpar a garganta. - Mãe... 

Ela levantou seus olhos e os fixou nos meus.

-Samantha! - suspirou aliviada e lágrimas caíram de seus olhos azuis. 

-Oi - respondi meio confusa. - Onde... estou? - tentei me levantar, mas meu corpo parecia pesar uma tonelada.

-No hospital, querida - ela disse chorando. - O acidente... 

-Espere - a interrompi, de repente ofegando. - Eu lembro do acidente. O que aconteceu... ? Onde está Ian? - perguntei urgente.

-Ele está... - ela hesitou, chorando mais um pouco. - Ele está em uma cirurgia. 

Meu queixo caiu. A expressão de horror em meu rosto não era nem um reflexo do que eu estava realmente sentindo.

-Mãe... - murmurei cautelosamente. - Ele vai ficar bem? 

Ela não respondeu, mas largou minha mão e enterrou o rosto entre as suas. Ficou chorando incontrolavelmente por alguns segundos, e eu fiquei observando enquanto minha mãe tremia com os soluços. 

Depois de uma eternidade, meu pai entrou no quarto parecendo abalado. Viu que eu estava acordada e caminhou até parar do meu lado. Pegou a minha mão e a apertou. 

Seus olhos pareciam fixos no nada, como se ele tivesse morrido de olhos abertos. Minha mãe o olhava ansiosamente, esperando boas notícias.

Boas notícias que nunca vieram.

-Ele não... - meu pai murmurou quase para si mesmo. - Não conseguiu. 

Mamãe desmaiou, e nem eu nem meu pai nos movemos para socorrê-la. Ela precisava descansar. Precisava ficar inconsciente por alguns minutos. 

Papai lentamente afundou em uma poltrona do meu outro lado. Ainda apertava minha mão, mas não tinha tirado o olhar perplexo do rosto. 

A máquina que contava meus batimentos cardíacos parecia um jogo de videogame, soltando bips incontrolavelmente, agudos e irritantes. Pensei em arrancar aquele aparelho de mim, e arrancar todos os outros fios que me mantinham sã e salva, e sair correndo para longe, até que este mundo e essa realidade assustadora ficassem para trás. 

Mas não. Não era possível.

E então, silêncio. 

O funeral de Ian foi planejado para ser um evento só da família, mas pessoas apareceram vindo do nada, e a casa se encheu de estranhos chorando pela morte do meu irmão. 

Algumas garotas da escola apareceram; meninas que nunca haviam falado comigo. Usavam saias pretas minúsculas, como se Ian fosse acordar do nada para apreciar suas pernas. Choravam todas abraçadas, apenas lamentando, e não fazendo nada para nos ajudar a superar. Kim estava no meio delas, e Molly também. Que surpresa. 

Líderes de torcida idiotas

-Pequena Sam - uma voz triste me assustou. Virei e tive que levantar a cabeça para ver o rosto de Collin. Isso foi meio segundo antes de ele me puxar para um abraço, e eu desaparecer no meio dos seus braços. - Sinto tanto por ele - sussurrou no meu cabelo.

Assenti, aceitando seu abraço. Eu já estava chorando o dia inteiro. Meu peito doía tanto que era difícil dizer alguma coisa. Mas tentei mesmo assim.

-Eu sinto tanta falta dele! - chorei no seu ombro. 

-Eu sei - ele afagou minhas costas para me reconfortar. 

-Ele ia ser eleito presidente de turma! - disse quase desesperada.

-Calma, Sam. Vai ficar tudo bem, eu prometo.

Concordei com a cabeça, querendo desesperadamente que ele tivesse razão. Que isso tudo fosse uma fase, e que daqui a alguns dias eu voltasse ao normal. Mas nada nunca mais ia voltar ao normal. Não enquanto meu irmão - e melhor amigo - continuasse morto. 

E não enquanto eu não admitisse que eu havia o matado. 

-Foi culpa minha - murmurei.

-O que? - ele se afastou para me olhar. - Do que está falando? É claro que não foi culpa sua!

-Foi sim - choraminguei. Passei as costas  das mãos nos olhos que nem uma criancinha e funguei. - Eu... sabia que ia acontecer. 

Ele me encarou como se eu fosse louca.

-Samantha - Collin disse lentamente. Quando ele dizia meu nome inteiro, não era um bom sinal. - Do que você está falando? - perguntou cauteloso.

Respirei fundo e resolvi contar a verdade, para que o peso saísse dos meus ombros e eu pudesse ser punida como merecia.

-Eu tive um sonho... - comecei em voz baixa. - Dias antes do acidente, eu vinha tendo sonhos onde eu e Ian estávamos no carro, e de repente um caminhão aparecia e nos batia. E era sempre o mesmo sonho, toda vez que eu dormia. Esse é o negócio comigo, eu tenho sonhos, e eles se realizam. Sempre se realizam. E dessa vez eu não fiz nada para impedir que acontecesse! - respirei, tentando recuperar meu fôlego. 

Collin me encarava de olhos arregalados. Estava pasmo. Grande surpresa. Agora mandaria que eu me tratasse em uma boa clínica psiquiátrica. 

-Mas de que adianta eu estar falando isso? - resmunguei para mim mesma e bufei. - Todos vão achar que enlouqueci. 

-Eu acredito em você - Collin disse lentamente, quase para si mesmo.

-Sério? - perguntei meio cética.

-Sim - ele assentiu. - Só não entendo porque não fez nada para impedir, se já sabia que ia acontecer. 

Suas palavras só me fizeram chorar mais.

-Não foi isso que quis dizer! - ele segurou meus ombros e me fez olhá-lo. - Quer dizer... Por que não nos disse nada antes? 

Suspirei e afundei no sofá da sala, que finalmente estava vazio. 

-Eu já tive problemas... antes... por contar meus sonhos para tentar impedir desastres de acontecer. Eu fui expulsa de minha antiga escola por isso. Desde então, tenho tentado ignorar os sonhos, mas eles continuam vindo, e me avisando do que vai acontecer. Acha que estou feliz por ter simplesmente deixado Ian morrer? - perguntei indignada comigo mesma. - Acha que não considerei parar de andar de carro pelo resto da minha vida? Quer dizer, eu meio que pensei que tudo isso era loucura, ou uma grande coincidência, mas depois disso... - funguei mais uma vez, abaixando o tom de voz. - Não vou mais deixar isso pra lá. 

-Ora, ora - ouvi a voz nasalada de Kim e então ela apareceu na minha frente, vinda do nada, com as mãos na cintura e um olhar acusador. - Quer dizer que você admite ter matado seu próprio irmão, Samantha Sparks? 

-O que?! - exclamei. Meu rosto ficou quente quando todas as pessoas presentes se viraram para me encarar.

-Você admite - ela continuou, sua voz subindo uma oitava. - Que sabia do que ia acontecer dias, até semanas antes do acidente? E não fez nada para impedir que seu irmão morresse? 

-Kim, você enlouqueceu? - perguntei cética.

-Não, não - ela balançou um dos seus dedos magrelos na minha cara. - Você sabe muito bem do que estou falando. Porque das duas uma: ou você é uma louca varrida que merece ser internada por alegar prever o futuro... Ou - ela deu um sorrisinho maldoso - é uma bruxa vagabunda que sabia que o irmão ia morrer.

A essa altura, todos na sala me encaravam. Alguns pareciam desconfiados, me olhando meio distantes, e outros, como Becca e Jason que haviam aparecido de  surpresa também, estavam pasmos demais com as palavras de Kim para dizerem alguma coisa. Olhei desesperada para eles. Becca juntou as sobrancelhas em confusão, e Jason balançou a cabeça negativamente.

-Samantha - a voz da minha mãe me surpreendeu. Me levantei rapidamente do sofá e vi que atrás de mim estavam meus pais. Eles pareciam abalados também, e pior, pareciam quase... com medo.

-Mãe - sussurrei lentamente. - Pai. Não é o que vocês estão pensando. Eu só...

-Você deixou Ian morrer? - minha mãe perguntou. Ela estava sofrendo tanto; eu não queria responder sua pergunta. E nem ela parecia querer uma resposta.

-A questão é: você sabia que ia acontecer? - meu pai foi direto ao ponto.

Eu abri a boca para falar, mas Kim me cortou. 

-É claro que ela sabia - ela deu um passo para frente, ficando cara a cara comigo. - Assim como sabia que o diretor da nossa antiga escola ia morrer; assim como sabia as respostas de todos os testes do semestre passado... Podem dizer o que quiserem, mas tem algo de errado com você, Samantha Sparks - ela apertou os olhos com lentes verdes e sorriu. - E se isso não é motivo para interná-la de uma vez, ou mandá-la para uma análise de laboratório, eu não sei o que mais seria.

Eu segurei o máximo que pude, mas quando Kim começou a falar em internação, as lágrimas voltaram aos meus olhos. Olhei para meus pais. Eles, por mais incrível que pareça, pareciam estar pensando na proposta de Kim.

-Não ouçam ela - pedi desesperada. - Eu sou a filha de vocês! Acreditem em mim! Eu não quis que Ian morresse; sim, eu sonhei com o acidente, mas não sabia que...

-Esses sonhos - meu pai me cortou. - Eles sempre se realizam?

Hesitei, sabendo da sua reação.

-Às vezes - menti.

-Desde quando você tem... isso? - ele não parecia saber que palavras usar. 

Suspirei derrotada.

-Desde os quatro anos - admiti. - Lembra quando o vôo da mamãe  atrasou quando ela estava voltando da Califórnia, depois de visitar a vovó? - ele assentiu hesitante, então eu continuei. - Eu sabia que ia rolar, por isso sugeri que ela levasse mais roupas. E lembra, quando eu tinha sete anos, quando você estava me ensinando a andar de bicicleta, que eu disse que não queria praticar no dia 11 de setembro de 2001, mesmo depois de você insistir tanto? É porque eu havia sonhado, na noite anterior, com o desastre que aconteceu naquele dia, e por isso sugeri que ficássemos em casa para assistir ao jornal. 

Alguém ofegou de surpresa. Não me importei em ver quem era, mas não fiquei muito feliz em estar assustando as pessoas com meu dom sobrenatural.

-E lembra... - continuei com um sussurro. - Quando eu sugeri que ligasse para saber como o vovô estava, dois anos atrás? 

Minha mãe arfou de horror e cobriu a boca com a mão.

-Isso foi um dia antes de ele morrer - terminei murmurando. - E um dia depois de eu ter sonhado com a morte dele. 

-Que tipo - Kim sibilou  - de aberração é você, Sparks? 

Não aguentei. Me virei e disse algo para Kim que estava guardando desde a semana passada.

-Kim - comecei, um sorriso lunático se formando no meu rosto. - Sabe aquele salão de beleza que você tanto adora? Onde, por acaso, você pinta seu cabelo de loiro e compra suas lentes de contato verdes? 

Molly, meio escondida atrás de tantas líderes de torcida, arfou e olhou para Kim com desconfiança. Várias loiras plastificadas fizeram o mesmo.

-Bom, pois é - continuei, ignorando os olhares tortos. - O salão vai fechar daqui a dois dias, porque é vagabundo demais para pagar o aluguel. E você - olhei fixamente para Molly, apesar de ela tentar se esconder. - Quando fizer trinta anos, seu cabelo vai começar a cair. E vocês dois - apontei para Jason e Becca que, partindo meu coração, pareciam prestes a ir embora dali. Apertei os olhos e segurei mais uma onda de lágrimas. - Vocês vão me abandonar na primeira chance que tiverem. Mas não se preocupem; vão se casar e ter filhos lindos. E você... - olhei para Collin ao meu lado. Ele arqueou uma sobrancelha na expectativa. - Ah, Collin... - suspirei de alívio ao ver que ele era o único que não me olhava desconfiado. Eu sorri. - Você vai conseguir comprar um carro.

Ele retribuíu meu sorriso. 

-Até que enfim - respondeu. 

-Tudo bem, já chega - meu pai me pegou pelo braço e me tirou de lá, apesar dos protestos de Collin. 

-Pai, está tudo bem. Aliás, já que estamos falando sobre futuro, o senhor vai ganhar aquela promoção no trabalho, e mamãe vai...

-Vou o que? - ela perguntou atrás dele. A essa altura estávamos no meu quarto, e meu pai havia trancado a porta.

Lembrei de um sonho que havia tido há alguns dias atrás, onde mamãe aparecia em uma cama de hospital, com um bebê ao seu lado, em uma espécie de berço transparente. Ela olhava para a criança com carinho. 

Dei um pequeno sorriso, e resolvi não estragar a surpresa.

-Nada, mãe - respondi. 

-Samantha - meu pai disse acidamente. - O que você fez? 

-Eu... - hesitei. - Sonhei com o acidente, e não disse nada. Eu sinto muito; e estou me odiando por isso, mas...

-Não sobre isso - ele balançou a cabeça impaciente. - Não acredito plenamente que tenha uma espécie de poder de prever o futuro. Mas se afirma que já sabia que seu irmão ia morrer, e não disse nada...

-Pai, eu não sabia que ele ia morrer. Eu só sabia que haveria um acidente, e...

-Não - ele levantou um dedo e fechou os olhos. Respirou fundo. Percebi que tentava se controlar. - Temos que conversar...

-Estou ouvindo - murmurei.

Ele olhou sugestivamente para mamãe. 

-Você está dizendo... - ela começou a perguntar.

-Sim - ele assentiu. 

-Do que estão falando? - perguntei impaciente.

-Querida... - minha mãe me puxou para sentarmos na minha cama. - Já faz um tempo que estamos pensando em... trocá-la de escola...

-De novo?! - perguntei surpresa. - Mas eu não fiz nada para merecer sair da escola.

-Não para outra escola, necessariamente - meu pai interviu. - Mas... para um internato.

Silêncio. Palpitações extremas do meu coração. Então, pânico.

-O que?! - gritei me levantando. - Vocês vão me mandar para um internato?! 

-Não decidimos ainda - minha mãe tentou me acalmar. - Só estávamos pensando...

-Conte a verdade logo, Eliza - meu pai a interrompeu. - Já assinamos os papéis. Decidimos quando Ian morreu. Não queremos você longe, minha filha, mas precisamos que você se adapte a um mundo diferente daquele que está acostumada. Aparentemente, essa escola está mexendo com a sua cabeça.

Pisquei, e foi como se enxergasse pela primeira vez a verdade que estava bem na minha cara.

-Não é só um internato, é? - perguntei amargamente. - É um reformatório. Para pessoas loucas. Porque vocês acham que eu fiquei louca!

-Não achamos... - minha mãe me puxou novamente para a cama, contra a minha vontade. - Não achamos que está louca. É só que seu comportamento não é normal...

-O que vocês sabem sobre o meu comportamento?! - explodi. - Vocês nunca prestam atenção à porcaria nenhuma que eu faço; e só ligam quando faço besteira! Tudo nessa casa só tinha a ver com Ian, e agora que ele morreu, querem se livrar de mim também? Para poderem chorar a morte do filho favorito? Bom, vou lhes dizer uma coisa, Ian era meu irmão, e meu melhor amigo, e eu sinto a morte dele também! Vocês queriam que fôssemos uma grande família feliz, mas não estão nem aí se a filha de vocês também sofre, e...

Tentei continuar falando, mas comecei a soluçar tanto que ficou impossível pensar, ou falar, ou enxergar. Minha mãe me abraçou e me balançou para que eu me acalmasse. Meu pai nem encostou em mim. Apenas deu meia volta para ir embora, mas parou na porta.

-Arrume suas coisas - ele disse friamente. - Vamos levá-la depois de amanhã. 

Então saiu do quarto e fechou a porta. 

E meu mundo virou de cabeça para baixo. 


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Notas finais do capítulo

Ficou meio melancólico demais, mas vou compensar. Digam o que acharam! Beijos ;*



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