Entre Fogo e asas escrita por ACunha


Capítulo 3
Apenas Um Grave Acidente




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Ian me esperava no estacionamento da escola, encostado no carro e girando as chaves nos dedos. Seus amigos faziam uma rodinha ao seu redor, e riam de alguma piada que eu havia perdido. Quando eu me aproximei, Collin, meu melhor amigo, um jogador de futebol grande como um urso loiro, abriu um sorriso e levantou a mão. Seus olhos pretos cintilavam.

–Como vai, pequena Sam? - perguntou sorrindo. Eu revirei os olhos e bati na sua mão.

–Já disse que é só Sam - resmunguei baixinho.

–Quando você crescer vai ser só Sam - ele riu.

–Já tivemos essa discussão, Collin. Eu não vou mais crescer... - comecei a dizer, mas ele tapou minha boca sem aviso.

–Então vai ser sempre a Pequena Sam - ele deu uma piscadela e então, me surpreendendo, beijou rapidamente o topo da minha cabeça.

–Tá bom, pode parar de azarar a minha irmã, cara - Ian socou seu braço de brincadeira, e ele se afastou. - Vamos, baixinha.

Nos despedimos dos amigos de Ian e entramos no carro. Um silêncio confortável se estabeleceu no caminho para casa. Olhei rapidamente para Ian, que estava tirando o cabelo dos olhos, e tive um rápido flashback do meu sonho.

–Você devia cortar esse cabelo - eu disse sem pensar. - Ou vai acabar nos metendo em um acidente por não enxergar.

Ele riu.

–Não confia na minha visão de águia? - perguntou fingindo estar ofendido.

–No que eu não confio é na sua autoconfiança - retruquei.

–Hum... - ele pensou. - Então é melhor eu não fazer isso...

De repente, ele largou o volante e tapou os olhos com as mãos. Eu gritei e tentei agarrar o volante por impulso, vendo o carro ir na direção errada, para fora da rua. Mas Ian me deteu e tomou o controle novamente, nos colocando no caminho de volta para casa.

–Nunca mais faça isso - o alertei bem séria.

–Relaxa, maninha - ele bagunçou meu cabelo. Tinha um sorriso relaxado em seus lábios. - No dia em que eu bater esse carro, os anjos vão descer à Terra.

Um calafrio irracional passou por todo o meu corpo, e eu olhei para a janela para disfarçar. As árvores balançavam loucamente com o vento forte.

–Não seja exagerado - pedi cautelosamente.

–Por quê? - ele provocou. - Tem medo de anjos?

–Cale a boca.

–Tem? - ele pressionou.Respirei fundo e o encarei intensamente, querendo fazer seu cérebro derreter só pelo poder da mente.

–Não - afirmei calma e lentamente. - Mas isso não quer dizer nada.

–É, tem razão - ele olhou novamente para a rua e pareceu pensar. - Eles ainda podem puxar seu pé à noite, e sussurrar coisas em seu ouvido...

–Cale a boca! - exclamei novamente. Ian riu e parou de falar.

Chegamos em casa e fomos direto para nossos quartos, já que nossos pais estavam no trabalho. Tentei me concentrar em fazer o dever de geometria, mas aquele sonho ficava ameaçando voltar, mesmo eu estando acordada. De repente, no silêncio do meu quarto, eu podia ouvir o carro freando loucamente, e a luz do caminhão vindo na nossa direção, e Ian xingando baixinho, e então eu segurei minha garganta para não gritar.

–Samantha! - ouvi minha mãe gritar lá em baixo, me assustando e me fazendo pular. - Jantar!

Suspirei e deixei a caneta em cima da mesa. O cheiro de bife mal passado já estava presente desde a escada, e se intensificou quando cheguei à sala de jantar. Meus pais, Eliza e Tom Sparks, estavam colocando a mesa juntos; uma cena rara de se ver, por isso fiquei admirando. Minha mãe, alguns anos mais nova que meu pai, tinha longos cabelos negros, assim como os meus, e os mesmo olhos azuis de Ian. Era mais alta que eu por apenas alguns centímetros, mas ainda era baixinha. Era toda pequena e magrinha, que nem uma fada, e tinha a pele levemente bronzeada típica da Califórnia, que era onde ela morava antes de conhecer meu pai e se mudar para Virgínia.

Já meu pai era completamente o contrário. Era branco como papel, o que apenas eu tinha herdado, e tinha cabelos loiros e ondulados, que agora desbotavam meio grisalhos nos lados. Era muito alto, e conservava seu rosto sem falhas: o nariz grande e reto, a boca cheia e vermelha e os olhos cinza, assim como os meus. A genética não falha nem um pouquinho.

–Ian - minha mãe chamou calmamente.

–Já estou indo, mãe - ele gritou de algum lugar lá em cima.Sentei na ponta da mesa, onde era meu lugar habitual, e comecei a me servir, sendo impedida logo depois por um olhar de repreensão do meu pai. Sorri me desculpando e esperei até que Ian chegasse.

–Como foi na escola? - minha mãe perguntou delicadamente.

–Ótimo - respondi sem dar muita atenção.

–Ganhei o debate para presidente da escola - Ian anunciou orgulhoso.

–Que ótimo, meu filho! - mamãe se animou.

–Muito bem, garoto - papai lhe deu um aperto de mão orgulhoso e sorriu.

Continuei comendo. Ian era o favorito dos meus pais; eu já sabia disso desde os seis anos, quando ele ganhou uma bicicleta de natal e eu ganhei um fone de ouvido de avião. Minha mãe se desculpou dizendo que talvez o Papai Noel estivesse cansado demais para fazer mais brinquedos, mas o que muitos não sabiam era que, a essa altura, eu já fazia alguma idéia de que aquele velhinho gordo com roupa vermelha era uma ideia maluca do sistema capitalista, criado para fazer pobres pais gastarem dinheiro a mais com seus filhos.

Bom, eu não ligava. Ian era mesmo o garoto perfeito; tinha as notas perfeitas, era perfeitamente educado, sabia jogar todos os esportes já inventados e era bom em tudo que lhe dessem para fazer. E ele ainda era modesto. Merecia esse tipo de atenção. E eu? Eu levava bomba em tudo que envolvesse números, eu vivia em encrenca por não aceitar as coisas como elas são, dizia coisas sem pensar que acabavam magoando outras pessoas, e, para coroar, tinha sonhos que previam o futuro. Eu meio que merecia ficar no escuro.

–Terminei - anunciei me levantando da mesa e levando o prato para a cozinha.

–É a sua vez de lavar a louça - Ian me lembrou, me seguindo com mais pratos sujos.

–Nem pensar; tenho que terminar meu dever de geometria - fui logo falando.

–Qual é, eu tenho que terminar de organizar meu último discurso da campanha - ele me lembrou.

–Caramba, isso nunca vai acabar! - fingi reclamar.

Ele me empurrou de brincadeira para a pia e colocou um pano em minhas mãos.

–Eu lavo e você seca, para ser mais rápido - propôs.Inclinei a cabeça para o lado e apertei os olhos.

–Gosto do seu jeito de pensar. Feito - apertamos as mãos rindo e começamos a trabalhar em silêncio. Aquele tipo de silêncio que dizia que nos conhecíamos bem demais para precisar preencher o tempo com perguntas desnecessárias. Ian, talvez, era a única coisa que me reconfortava naquela família. Ele era o único que me entendia; apesar de dizer que nunca iria me entender.

Às vezes eu pensava que minha vida era perfeita só por ter um irmão como aquele, mas então os sonhos voltavam, e o pensamento ia embora.


No dia seguinte foi a mesma coisa da véspera. Eu acordei ofegando por causa de um sonho que eu não lembrava, apesar de ter sonhado com ele três vezes antes. Coloquei alguma roupa confortável e desci, tomei café com Ian e fomos embora. No meio do caminho, Ian, sem avisos, pegou um desvio.

–É um atalho - ele explicou sorrindo. Apenas dei de ombros, concordando com a sua urgência em chegar logo na escola. Estávamos muito atrasados.

Em um certo momento, eu parei para escutar a música tocando no rádio e quase chorei.

–Meu Deus, o que eu fiz para merecer ouvir isso?! - reclamei me inclinando para mudar de estação.

–Não, deixe onde está - ele tirou minha mão rindo. - Eu gosto de country; você não?

–Prefiro cortar minhas orelhas - afirmei lentamente para que a mensagem penetrasse na sua mente.

–As orelhas ou os pulsos? - perguntou brincando. Meu queixo caiu.

–Vai se arrepender por ter dito isso, Sparks - prometi.

–Ah, é? - ele riu e olhou para mim, o cabelo loiro cobrindo totalmente seus olhos. - Como?

Dei um peteleco na sua testa.

–Ai! - ele reclamou. - Muito maduro da sua parte.

–Não me interessa - dei outro peteleco no seu ombro, e mais outro na sua bochecha.

–Pare com isso, Sam! - ele gritou, mas estava rindo.

–Qual é! Vai perder para a Pequena Sam? - perguntei rindo. Ele começou a dirigir com só uma mão e com a outra fez cócegas em mim. Eu ria incontrolavelmente quando uma sensação de Deja Vu tomou conta de mim.

Parei de rir imediatamente, rápido o bastante para gritar para Ian olhar para frente, mas não rápido o bastante para impedir o caminhão de virar bem na nossa cara.

Ian jogou o carro violentamente para a direita, e a frente do caminhão atingiu sua porta. Eu engasguei com um grito preso na garganta, mas o impacto foi tão grande que me jogou para trás, me fazendo bater a cabeça com muita força. Lutei para me manter acordada, mas o mundo ao meu redor já girava. Procurei desesperadamente pela mão de Ian, que eu sabia que me reconfortaria, e assim que a encontrei, a apertei com força e caí na escuridão.


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Notas finais do capítulo

Digam o que acharam! Beijos ;*



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