Entre Fogo e asas escrita por ACunha


Capítulo 2
Real Demais




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O pesadelo começou. Ian estava me ensinando a dirigir, estávamos no carro. Estávamos rindo alto e fazendo caretas um pro outro. Foi então que aconteceu. Dobramos uma esquina quando um caminhão apareceu quase colado à frente do carro, e eu gritei. Meu irmão dobrou violentamente para o lado, fazendo o caminhão atingir somente o seu lado. Bati a cabeça com força em alguma coisa, e tudo ficou escuro.

Acordei arfando loucamente, e estava ensopada de suor. Algo naquele pesadelo havia despertado um antigo sentido premonitório que estava a muito tempo enterrado, mas tentei não ligar. Era só um sonho.

Não que isso alguma vez tivesse significado alguma coisa.

Olhei para o relógio. Ainda era cinco da manhã. Voltei a me jogar na cama, mas logo percebi que não voltaria a dormir. Joguei os lençóis de lado e fui tomar um banho quente e demorado. Depois me enrolei na toalha e voltei ao meu quarto.

–Acordou cedo, Sam - Ian me cumprimentou no corredor. Estava apenas com um roupão de banho e calças de moletom. Eu não ficava exatamente me gabando do meu irmão, mas tinha que admitir: ele era bem bonito, e todas as minhas amigas eram a fim dele. Seus cabelos cor de areia eram lisos e caíam nos olhos, e tinha olhos azuis como o mar. As garotas babavam quando ele participava de competições de natação, o que devia significar que também era bem sarado, mas isso não é coisa que uma irmã repare.

–Tenho que dar um bom exemplo nessa casa - respondi brincando. Ele bagunçou meu cabelo molhado e se trancou no banheiro.

Vesti algo simples para a segunda semana de aulas; calças jeans desbotadas, uma blusa sem mangas preta e branca e minha jaqueta de couro favorita. Resolvi não usar meus All Star no primeiro dia; eu precisava dar uma variada. Em vez disso calcei uma sapatilha preta brilhante e desci para tomar café.Ian havia colocado algumas torradas em um prato para nós, o que aceitei sem hesitar. Comemos em silêncio e deixamos os pratos na pia. Era a nossa rotina.

–Eles vão acordar ou... - perguntei apontando para cima, onde nossos pais dormiam.

–Disseram que trabalharam até tarde, e preferiam que usássemos o meu carro - Ian respondeu dando de ombros. Assenti sem dar muita importância. Era normal que nossos pais ficassem dormindo enquanto íamos para a escola.Pegamos nossas coisas e simplesmente fomos embora.

Eu estudo na Bluefield High School há dois anos, desde que entrei no ensino médio. Minhas amizades lá se limitam ao meu grupo de estudo da aula de inglês, que consiste em cinco pessoas, e alguns amigos do meu irmão, que já está no último ano. Ele não queria que eu me sentisse excluída, e me ajudou muito nos últimos anos, desde que fui expulsa da minha última escola.

É; você leu direito. Eu fui expulsa. Não pichei o muro da escola, nem botei fogo no laboratório de ciências, nem nada disso. Eu só disse que o diretor da escola ia morrer, por causa de um sonho que eu havia tido. Só isso. E depois os alunos começaram a me chamar de louca, e os inspetores investigaram se aquela afirmação era uma ameaça ou só um delírio muito forte de uma garota perturbada. Quando eu insisti que ia acontecer, e ninguém podia fazer nada para mudar aquilo, o diretor ficou com medo e me expulsou.

Mas isso não impediu que, no dia seguinte, ele fosse assassinado por um grupo de mafiosos no bar favorito dele e da esposa. Bom, quem mandou não ouvir o delírio de uma garota perturbada?

Eu tinha passado o resto daquele ano estudando em casa, e refletindo sobre o que havia acontecido. Como um sonho podia ter me dito o futuro? Como eu tivera essa premonição de que o diretor ia morrer? Mas isso logo passou, e eu entrei no segundo grau, o que me distraiu muito. O único que acreditou em mim quando eu disse que meu sonho ia se realizar, eu não sabia como, mas ia, foi Ian. E eu era eternamente agradecida por isso.

–Trouxe dinheiro? - ele perguntou quando estávamos no estacionamento da escola.Mordi o lábio, fazendo uma careta.

–Esqueci - admiti.Ele riu e pegou sua carteira, tirando uma nota de cinco dólares e me entregando.

–Como se diz? - perguntou brincando.Tomei a nota das suas mãos e saí do carro.

–Valeu, Bon Jovi - gritei por cima do ombro e ri comigo mesma enquanto corria para dentro da escola. O apelido era novo, mas tinha tudo a ver.

Guardei minhas coisas no armário e caminhei até a primeira aula do dia. História. Meus amigos me enxergaram e acenaram sorrindo, mas eu não retribuí com o mesmo entusiasmo. Sentei em uma das cadeiras do fundo e me inclinei para falar com Kim.

–Terminou de digitar o trabalho? - perguntei a ela.

Seus cachos dourados se balançaram como molas quando ela se virou e fixou seus olhos verdes em mim.

–Tenho cara de nerd? - perguntou acidamente.

Suspirei. Kim era insuportável, e infelizmente estava no meu grupo. Seguia todas as regras básicas para ser a perfeita garota popular: namorava um gato do time de futebol, usava as roupas mais descoladas e mais vulgares, fazia as unhas de três em três dias e vivia no shopping com as amigas plastificadas. Mas eu sabia, por conhecê-la a minha vida inteira, que seu cabelo dourado na verdade era preto como carvão, e seus olhos verdes haviam sido comprados em uma farmácia de esquina, e precisavam ser regados com soro fisiológico toda noite.

Eu só não esfregava isso com prazer na cara dela porque Kim era a única que havia estudado comigo na antiga escola, e sabia da história do diretor. Então, eu não falava para todos que ela era completamente artificial, e ela não espalhava que eu tinha um passado de paranormal.

–Não, mas era a sua função - a lembrei calmamente.

Ela jogou o cabelo dramaticamente para o lado e me passou um pen-drive rosa.

–Alguém tem que fazer o trabalho - deu um sorriso superior e voltou a conversar com Molly, sua seguidora fiel e ruiva.

–Ei, Sam - alguém cutucou minhas costas. Virei e vi Becca sorrindo para mim, seus óculos de armação vermelha e tortos e seus brincos de argola balançando. - Como foi ontem?

–Do que está falando? - perguntei a ela.

–O Luke! Ele te ligou quando você estava no telefone comigo! E aí, o que ele disse? - ela estava super ansiosa.Suspirei novamente.

–Ele ligou errado - disse desanimada.Seu sorriso desapareceu e ela assentiu triste. Depois deu de ombros, parecendo se recuperar.

–Bom, ele já tem namorada mesmo - me lembrou apontando para Kim. Eu ri e balancei a cabeça. A aula começou e nos ajeitamos em nossos lugares.

Estávamos estudando lendas e mitos, e o trabalho da semana era apresentar um trabalho sobre alguma criatura lendária. A maioria da sala escolheu vampiros porque, fala sério, era o tema mais fácil da atualidade. Alguns outros escolheram lobisomens, outros escolheram sereias, e nós fomos o único grupo que escolheu falar sobre anjos.

Sério, anjos.

A escolha não foi minha, pois eu havia faltado no dia. Não sei quem foi o louco que escolheu falar sobre esses mensageiros de Deus, mas acabou acontecendo. Não que eu não fosse católica e não acreditasse nessas coisas, mas não havia muito que falar sobre anjos, a não ser que eram seres celestiais com asas de penas brancas que ajudavam as pessoas e transmitiam mensagens a elas. Não tinham sexo e assumiam a forma que quisessem, e muitas poucas pessoas já haviam visto um anjo de verdade, porque sua existência imaterial não podia ser vista na Terra. Eram imortais e não precisavam dormir nem comer para repor suas energias. O mais famoso deles era, claro, Lúcifer, por ter desafiado Deus e caído, se tornando um demônio.

Eu sei, o Google é demais.

Mas enquanto falávamos sobre isso na frente da turma toda, o professor estava com cara de poucos amigos, entediado, suspirando, e olhando o trabalho de outras pessoas. Estávamos perdendo de dez a zero para o trabalho dos vampiros, que tivera até sangue de mentira. Como eu pressentia uma nota baixa vindo na nossa direção, me esforcei ao máximo, e as mais estranhas coisas começaram a sair da minha boca.

–Anjos também podem ver a nossa aura - me peguei dizendo de repente, mesmo sem ter lido nada sobre isso na internet. - E é assim que sabem o que estamos sentindo. E podem ler nossos pensamentos, e colocar sugestões na nossa cabeça sobre o que fazer em determinada situação. Alguns deles, como os anjos da guarda, se comunicam diariamente com os humanos a quem foram destinados, e aparecem em seus sonhos.

–Sério? - perguntou o professor. Parecia mais interessado. Isso me animou.

–Sim - sorri. - E não podemos esquecer dos anjos caídos, é claro. O mais famoso é Lúcifer, mas vocês já conhecem a história dele. Dizem que era o anjo mais belo e mais forte de todos, mas muito orgulhoso, e por isso se recusou a reverenciar o homem, que era completamente imperfeito. Então caiu, junto a mais um batalhão de anjos caídos, e o anjo Miguel trancou todos eles no inferno, os transformando em demônios. Mas o que muitos não sabem é que Lúcifer não caiu somente por ser orgulhoso e egoísta.

–Não? - Kim perguntou confusa. Até ela estava interessada.

–Não - eu estava perdendo o controle das minhas palavras. Mas sentia um sorriso se estendendo pelo meu rosto, e aquilo me assustava, mas também me deixava eufórica. - Ele também se apaixonou. Por uma humana. E caiu para ficar com ela, e os dois foram felizes... Até que o anjo da guarda dessa garota se intrometeu e o tirou de perto dela, então Deus castigou Lúcifer e o transformou em demônio, assim o separando de sua amada. - Algo fez meu peito se apertar dolorosamente, mas continuei falando. - Lúcifer, tomado pela dor e pelo ódio, jogou uma maldição em todos os anjos. Todos aqueles que caíssem, por qualquer motivo, se tornariam demônios e seus servos eternos. E assim, a maldição foi selada, e todos os anjos caídos presentes na Terra foram para o inferno.

De repente, um soluço chamou minha atenção. Molly, a ruiva antes mencionada, estava chorando incontrolavelmente no fundo da sala, segurando um lencinho do papel e secando os olhos borrados de rímel.

–E isso conclui o nosso trabalho - Becca disse antes que mais alguém começasse a soluçar como um bebê. Fomos aplaudidos loucamente, e então o sinal tocou, anunciando o final da aula.

–O que... foi aquilo? - Jason me perguntou assim que saímos da sala. Soquei seu braço brincando, para dizer que estava tudo bem.

–Google - menti. Mas meu sorriso o convenceu.

–Se eu gostasse de internet, eu visitaria esse site - disse solenemente, me fazendo gargalhar. Jason era um tipo de punk amigável, que tinha o cabelo preto todo na cara e um piercing na sobrancelha. Se vestia sempre de preto, o que não ficava nada mal nele, e era branco como papel. A única coisa que tinha cor no seu visual eram seus olhos azuis que pareciam ter luz própria. Era revoltado com o mundo inteiro, principalmente com a internet, pois ele achava que destruía nossos cérebros e nos deixava burros, o que não deixava de ser verdade... em alguns casos. No início, eu era meio a fim dele, pois nós gostávamos das mesmas coisas e ríamos muito juntos. Mas depois percebi que Jason nunca seria mais nada do que um grande amigo. Isso foi logo depois de ver o jeito que ele olhava para Becca.

–Se você arranjasse um e-mail, não teríamos tanto problema em nos falar - Becca disse chegando por trás de nós e ficando na ponta dos pés para beijar a bochecha dele.

–Uma das maiores invenções da humanidade foi o telefone, meu amor - ele respondeu, mas estava vermelho como um tomate.

Eu ria com a cena, mas então senti um calafrio. Olhei ao redor, jurando que, se procurasse bem, veria um par de olhos negros me analisando. Mas só encontrei Luke beijando Kim com tanta intensidade que meu estômago revirou.

–Tudo bem, até o almoço - me despedi deles. Becca e Jason acenaram e saíram andando de mãos dadas pelo corredor.

O resto do dia se passou normalmente, menos na aula de Biologia, no último horário, quando eu acidentalmente dei uma cochilada no laboratório. Então novamente eu estava dentro do carro de Ian, rindo com ele e brincando, cantando alto e fazendo caretas, e novamente aquele caminhão estava lá para atrapalhar tudo. Quando ele nos atingiu, senti a pancada na cabeça dessa vez ficar mais forte, quase como se fosse real.

Minha cabeça girou quando levantei e vi o professor me encarando de cima, com o livro aberto em suas mãos, seu rosto vermelho de raiva.

–Quer compartilhar seus sonhos com a classe, srta. Sparks? - perguntou tentando controlar seu sarcasmo.

–Não, obrigada - respondi sorrindo sem graça. Ele bufou, mas se afastou.

No resto da aula fiquei tentada a dar mais uma cochilada, mas lembrei do sonho e resolvi que seria melhor esperar e ter uma crise em casa.


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Notas finais do capítulo

E aí? :D



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