Entre Fogo e asas escrita por ACunha


Capítulo 17
A Inevitável Verdade


Notas iniciais do capítulo

Muita. Calma. Nessa. Hora.
Sério, segurem seus corações agora. Eu mesma não aguento esse capítulo T.T Respirem fundo, e aproveitem ;)



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Levantei e puxei um jeans e um suéter do armário. Vesti tudo de qualquer jeito e fui calçando minhas botas já caminhando pela praia. Estava levando a minha mochila com algumas roupas e outros trecos, que nunca havia sido desfeita, e um dinheiro que tinha encontrado perdido na carteira. Mas não ia ser o suficiente. 

Correndo o risco de ser seriamente punida por forças maiores, e temendo o que Collin diria se soubesse, fui até o apartamento abandonado dos meus avós. Senti o remorso me atingir na porta, mas eu precisava fazer aquilo. Procurei dentro das gavetas, debaixo da cama, no armário, e não encontrei nada. Foi só quando achei o cofre de jóias de vovó que vi, no fundo, o bolo de dinheiro que eles guardavam para viajar no fim do ano. 

Desculpe, vovó. Pode fazer o que quiser comigo depois, mas agora eu preciso salvar vocês. E Collin.

Era tão a cara dele! Pedir perdão a Logan e implorar para que ele lhe dissesse o que quebrava a maldição, então poderíamos ficar juntos. Exatamente como eu tinha sonhado; e como eu tinha ignorado. Mas eu já tinha aprendido a lição sobre ignorar meus sonhos. E, se eu estivesse certa, Logan não perdeu a oportunidade de prender Collin no internato. 

O cara do táxi me cobrou apenas metade do dinheiro que eu tinha para me levar a Bluefield. Dei mais algumas notas para ele dirigir acima do limite de velocidade e correr o risco de ser pego pela polícia. Quer dizer, quem se importa? Se eu não chegasse a tempo, o mundo ia acabar. 

Eu sabia disso pelo outro sonho que estava tendo antes de acordar.  Novamente, de volta ao internato, e de volta à pequena reunião de Logan com seus amigos Caídos. Só que, dessa vez, a visão estava muito mais clara. Devia acontecer em poucas horas. Logan ainda falava com eles, lhes dando instruções. 

-E o que você pretende fazer quando ele estiver aqui? - um homem daqueles motoqueiros perguntou. 

-É, L. Como tem tanta certeza de que ela vai morder a isca? - Megan reforçou. 

-Ah, por favor - Logan suspirou e cruzou os braços. - Se pegarmos Collin, Sam vem junto no pacote. É apenas inevitável. 

-E, mais uma vez, por que ela é tão essencial para o plano dar certo...? 

-Porque... - Logan virou-se para Megan. Vi como seu rosto parecia cansado, e tinha olheiras profundas em baixo dos olhos. - A única forma de matar um anjo é se capturarmos a alma do humano que ele protege. Adivinha só? Collin é o anjo de Sam, e se eu tiver a alma dela, ele é destruído.

-E como exatamente você pretende fazer isso? – Megan estava entediada.

-Ela e o Cabeça de Vento estão... apaixonados – Logan disse aquilo quase como se fosse um fato curioso. – Ela certamente não deixaria que nada acontecesse com ele... 

-E por que você quer tanto destruir esse tal de Collin? – uma menina quase da minha idade perguntou. 

Logan suspirou para manter a calma. Seu rosto estava vermelho.

-Um anjo não é destruído com tanta facilidade – ele murmurou. – Mas quando um deles morre, os outros entram em guerra. E é exatamente por este tipo de guerra que estamos esperando.  

Foi mais ou menos aí que eu acordei. Muito assustada. 

O cara do táxi se chamava Ryan. Ele tinha um pouco mais de trinta anos, e devia ter duas filhas pequenas, pela foto que vi no seu retrovisor. O cabelo loiro ia desaparecendo debaixo de um boné branco sujo, e ele escutava um rock das antigas no último volume. 

-Pode abaixar um pouco? - pedi suavemente. - Estou com dor de cabeça.

-Desculpe - ele disse e abaixou o volume. - Não gosta de AC/DC?

-Não, eu adoro. Mas hoje não estou com cabeça para música.

-Hm... Sei... - ele deu uma boa espiada em mim pelo retrovisor e bufou. - Você não é uma daquelas meninas tentando fugir de casa, é?

-Não! - quase ri por ele pensar assim. - Eu pareço estar fugindo de casa?

-Com uma mochila furada e descabelada desse jeito? - ele apertou os olhos. - Eu diria que não está fugindo por não aguentar mais sua vida, mas certamente está com pressa de sair de Myrtle Beach. Acertei? 

Afundei no banco de trás, odiando ter mais uma pessoa para analisar minha vida.

-Sim - resmunguei olhando pela janela.

-Ótimo - ele pareceu satisfeito e não me perturbou mais, cantarolando algumas partes de Back in Black. Mas depois de um tempo, quando já estávamos longe da cidade, eu me incomodei com o silêncio. 

-Você sempre analisa a vida dos seus clientes? - perguntei para me distrair.

-Quase sempre - ele respondeu. - É uma forma de passar o tempo. No meu trabalho, precisamos de algo que faça o tempo passar mais rápido, se é que me entende. E às vezes você pode ter um criminoso no seu banco de trás e nem se dá conta disso. 

Eu ri. 

-Não sou uma criminosa. Pode relaxar. 

-Ah, eu sei. Você não tem cara de criminosa - ele sorriu. 

-Isso significa o quê? Eu pareço uma garota inocente da cidade, que precisa o tempo todo ser salva? 

-Não... - ele ficou confuso. - Só quis dizer que você parece o tipo de garota que faria qualquer coisa para alcançar seu objetivo. Como está provando ao fugir da cidade agora, seja por qual motivo for. 

Mordi o lábio. 

-Eu preferia se não falássemos sobre este motivo em especial - pedi. 

-Não estou pedindo que me conte nada - ele respondeu. - Apenas fale o que quiser falar.

Então eu falei. Aos poucos, contei a ele a minha situação, deixando de lado a parte dos anjos e demônios, das asas e do internato que pegou fogo. Contei apenas sobre meus pais, meu irmão que tinha morrido, como eu sentia a falta dele, como eu queria que ele estivesse ali. Disse o quanto eu quis um dia ser uma política de sucesso, pensando até na Casa Branca, mas desisti logo depois de tentar ser presidente de turma. E disse que Ian era perfeito para o cargo, e não eu. Contei a ele sobre minha primeira e última viagem à Disney, quando eu tinha treze anos, e quando Ian vomitou tanto que tivemos que voltar para casa. 

Falar de Ian me deixou mais calma. 

Depois, pedi que Ryan me contasse sobre a sua vida. Eu precisava ouvir sobre a vida de outra pessoa, para dar um tempo na minha. Ele em contou sobre suas duas filhas - Lauren e Eliza. Elas haviam acabado de entrar na escola, e reclamavam todo dia por terem que acordar cedo. Eliza queria ser uma estrela do rock, enquanto Lauren queria ser uma modelo de sucesso. Carreiras que eu nunca havia imaginado para mim. Ryan também me contou sobre a ex-esposa, Kate, que agora era casada com um empresário de sucesso e passava os fins de semana em Beverly Hills com as amigas. Mas disse que não se importava com quem Kate namorava; só queria saber das filhas e da nova namorada, Lindsay. Ela era a garota mais incrível que ele já conhecera, e tinha acabado de se mudar para Myrtle Beach, vindo de - pasme - Beverly Hills.

Era uma reviravolta interessante. 

E quando percebi, já estávamos passando pela placa de Bluefield, e o tempo havia voado. Pedi que ele desse meia volta e fosse mais para o leste, onde ficava o internato. Quando estávamos chegando, a quase um quilômetro de distância, o mandei parar. 

-Ryan - eu disse. - Obrigada por me trazer até aqui. De verdade, não tem ideia do quanto...

-Pode parar - ele sorriu. - Gostei de você. Tem algo especial em você, e um dia, se alguém lá em cima quiser, vamos nos encontrar novamente e eu vou descobrir o que é. Agora, para fora. 

Desci do carro e parei na janela dele. 

-Talvez eu nunca mais volte para lá - disse com a testa franzida. - Tudo depende do que vai acontecer esta noite... E digamos que o futuro já se pronunciou. 

-Nunca se sabe - ele abaixou o boné por causa do sol. - O futuro é uma caixinha de surpresas. Boa sorte, Sam. Seja lá o que for isso, boa sorte.

Sorri, me sentindo eternamente grata.

-Boa sorte com Lindsay - eu disse. Ele assentiu sorrindo e deu ré no carro. Antes que pudesse o perder de vista, eu gritei:

- Ryan! - ele olhou na minha direção. - Por favor, pela sua própria segurança... Seria bom se você se afastasse daqui o mais rápido possível. De preferência antes do pôr do sol. 

Porque depois, os Anjos Caídos vão dominar a área. 

Eu já havia estado muitas vezes no internato depois de ele ser destruído. Mas todas elas eram em algum sonho, e em todas elas as Sombras não podiam me ver. Era bem diferente de estar lá em carne e osso, e de poder ver quando elas se moviam na minha direção a ameaçavam se aproximar. Como quando eu via uma barata no chão, e pensava loucamente que, se eu corresse, ela ia me perseguir até o fim do mundo. Uma coisa asquerosa, nojenta, que na verdade não podia me fazer mal. 

Mas as Sombras podiam fazer mal. 

Mas elas não fizeram. Passei pelo pátio destruído, o salão destruído, e hesitei na porta da sala do diretor. A sala particular de Logan. Apesar de saber o que eu acabaria fazendo de qualquer forma, ainda sentia medo. Por mim, por Collin, e pelo resto do mundo. Medo do que poderia acontecer se meu plano de última hora não desse certo. Respirei fundo. E empurrei a porta destrancada com força.

Mantive meus olhos no chão. Não poderia agüentar encará-lo, em carne e osso, depois de tanto tempo. Cruzei os braços com força no peito, sentindo que ele já havia notado minha presença, e limpei a garganta.

-Antes de dizer o que eu vim dizer - comecei com um sussurro. - Posso perguntar uma coisa?

Eu podia ouvir o sorriso na sua voz.

-Pergunte o que quiser - Logan disse. Ouvir sua voz pela primeira vez em semanas, e não em um sonho, quase me fez querer olhar para ele.

-Se eu me entregar... - franzi a testa. - Vai fazer alguma diferença? Para Collin, quer dizer?

Ele fez uma pausa. 

-Não - respondeu por fim. Bufei e balancei a cabeça. 

-Então é isso. Se eu entregar minha alma a você... Collin vai ser destruído - engoli em seco.

-Sim. 

-E se eu não entregar... - dessa vez eu fiquei furiosa. Levantei o rosto e o encarei, determinada a não cair na influência que seus olhos tinham sobre mim. Mas eu não consegui. Todo meu interior se derreteu aos poucos quando o vi novamente. Ele era ainda mais perfeito na vida real. Ah, a mesma jaqueta de couro do sonho em que ele me beijou, o mesmo nariz arrogante e empinado que eu amava. 

-Se não se entregar... - ele continuou. Então sorriu, partindo meu coração. - Bom, Collin tem um prazo de validade, digamos assim. Ele ainda não é um anjo caído, mas vai se tornar um, se não estiver em determinado lugar, em determinado dia. E considerando que, até lá, ele ainda vai estar preso aqui, como está agora... Bom, Beatrice não vai ficar nada feliz quando ele não aparecer. 

-E se ele cair... - arregalei os olhos. -Ele se tornará um demônio?

-É. - O sorriso de Logan era radiante e diabólico. - Resumindo, querida, você não tem escolha. Ou você perde, ou... perde. Só terá que decidir qual seria um destino melhor para Collin. A eternidade como um demônio, ou como uma lembrança feliz nos seus sonhos? 

-Não acredito que esteja fazendo isso - fechei os olhos, engolindo em seco para não chorar. Não na frente dele. 

-Sinto muito - ele teve a coragem de dizer calmamente. - Mas a decisão estava tomada antes mesmo de eu cair. 

Abri os olhos, sentindo que poderia cuspir fogo a qualquer momento.

-Eu... - eu poderia concluir essa frase de diversas formas. Eu vou impedi-lo? Eu quero matar você? Eu odeio você?  Eu conheço você, e sei que nunca seria capaz de fazer isso? 

Onde eu já havia visto aqueles olhos? Acho que eu me lembraria daquele olhar que fez o sangue subir até meu rosto, e meu coração quase parar de bater.

A única coisa que eu consegui dizer foi:

-Eu me lembro de você. 

Logan parou de sorrir. De repente, ele não era mais aquele demônio louco pelo poder, que mantinha meu melhor amigo (e meu anjo da guarda) preso. Agora, ele era apenas... Alguém. Jovem demais para ser um homem, e maduro demais para ser apenas um menino. Alguém que eu conhecia muito antes de sequer saber que Collin existia. Muito antes de inventarem o telefone, a internet, antes dos carros, antes de tudo. 

-Você... lembra - ele sussurrou inseguro. Quase tímido, até. Se afastou um passo, como se tivesse medo que eu o tocasse, e apoiou as mãos na mesa. A mesa quebrada. 

-Você... - apertei os olhos. Minha vida literalmente passava agora, como um filme dentro da minha cabeça. Tudo que eu vi, tudo que eu aprendi, agora desaparecia quando eu começava a lembrar daquela vida. A minha primeira vida, a que mudou meu destino para sempre. 

Acho que eu estava em transe. Acho que estava tão concentrada em me lembrar das coisas certas que prendi a respiração. E fui ficando cada vez mais sem ar. Nunca havia experimentado fazer uma regressão, mas tinha lido sobre isso. Era de apavorar. Uma lembrança em especial atravessou minha mente como uma bala perfuraria meu cérebro. O mundo ao meu redor ficou turvo, e de repente eu não sentia mais minhas pernas. Logan me alcançou e me segurou em seus braços antes que eu pudesse cair. 

Eu nunca deixaria você cair, Samantha. 

Meu vestido branco subia lentamente com o vento frio do norte. O sol estava quase se pondo, e as ondas do mar se quebravam com um som melancólico. Mais a frente, eu podia ver o porto onde chegavam as embarcações com comida, pessoas e escravos. Papai tinha avisado para ficar longe do porto. Era perigoso, e eu sabia disso.

Caminhei descalça pela praia, em círculos, esperando por ele. Quando senti aquele calor conhecido, e duas mãos se fechando na minha cintura, nem pensei em hesitar. Virei-me e alcancei seu rosto com uma rapidez que o deixaria orgulhoso se ele não estivesse mais preocupado em me abraçar com força. 

-Faz uma eternidade - sussurrei contra seu peito. - Por que demorou tanto? 

Olhei seu rosto. As feridas da batalha já estavam quase curadas agora, mas uma charmosa cicatriz em forma de raio atravessava seu pulso. Ah, aqueles olhos negros. Era tão difícil achar alguém que tivesse a profundidade e a intensidade que os olhos dele tinham. 

-Só o que importa é que estamos prontos - ele sorriu, e meu coração se encheu de alegria. - Você está pronta, não está?

-Sempre estive. - Tomei suas mãos. - Para onde vamos? 

-Algum lugar do Egito, eu acho. Lá eles não poderão nos encontrar... - ele olhou para o mar. Seu cabelo longo e negro balançou com o vento. Seu nariz arrogante, de perfil, parecia quase esculpido. Toquei seu rosto.

-É tão perigoso assim? - perguntei preocupada. - Quem são estas pessoas que o ameaçam?

-Ninguém - ele respondeu rapidamente.  Hesitei.

-Devo falar com meu pai?

-Não - ele suspirou. - Desculpe, Selena. Não queria ter que fazer isso desta forma, mas...

Pus um dedo sobre seus lábios perfeitos.

-Está tudo bem - eu sorri. - Você sabe que eu faria qualquer coisa por você. Só queria que me contasse mais.

Ele sorriu, e seu rosto ficou corado.

-Eu... não posso, querida.

-Por favor? 

-Não vou cair na sua persuasão irresistível novamente. Sinto muito. 

Eu sorri, sabendo que estava sendo muito ousada, mas não conseguia evitar. Eu sentia que era capaz de fazer qualquer coisa perto dele. 

-Vai sim - o desafiei. - E você sabe. Não subestime minha capacidade, querido. 

-Ah, claro que não - ele pareceu ofendido. - Nunca subestimaria a sua capacidade de aterrorizar um pobre cidadão.

-Então, me conte.

Um suspiro resignado. Então ele me segurou pela mão e me guiou até a beira da praia. Com os pés molhados, ficamos assistindo ao pôr do sol no horizonte até que ele se sentisse confortável para falar.

-Você já viu minhas asas... - ele começou. Eu sorri radiante.

-Suas lindas asas negras - completei. 

-Elas não são tão lindas, acredite... - seu sorriso era meio sem graça. - Não se comparada às dos meus irmãos. 

-Irmãos? - franzi a testa. - Nunca me falou dos seus irmãos.

-Faz muito tempo que não falo com eles - ele murmurou olhando para o céu azul escuro. Então suspirou novamente. - Selena, eu sou uma pessoa má. Não sou digno nem de ser chamado de uma pessoa de verdade. Eu caí na desgraça eterna, e pensei que meu amor por você pudesse me redimir de todo mal que eu causei, mas acho que eu estava errado.

-Como pode estar errado? - minha voz era apenas um sussurro. - O amor conserta tudo. 

-Nem tudo. - Sua risada era amarga. - Algumas coisas não podem ser consertadas, meu amor. Infelizmente, eu sou a prova viva disso. 

Suas asas explodiram das suas costas, e mais uma vez fiquei maravilhada com a extensão delas. As penas negras refletiam a luz do fim da tarde.  Mas notei algo de diferente. Algumas - na verdade, muitas - penas estavam caindo no chão ao redor dele, caindo como se estivessem em decomposição. Mas em compensação, outras penas novas cresciam no lugar das que caíam. Mesmo assim, era de partir o coração, pois era como um pássaro ficava quando tinha uma asa quebrada. 

-O que está acontecendo com suas asas? - perguntei preocupada. 

-Eu não sei - ele respondeu assustado. - Mas estou com medo, Selena. Acho que eles querem se vingar... Acho que vão finalmente me punir pelo que fiz. Eu desafiei meus irmãos e irmãs, eu desafiei meu pai, e Caí do único lugar do universo de onde ninguém deveria querer sair. 

-Você apenas fez uma escolha - eu disse calmamente, e segurei seu rosto entre as minhas mãos. - Todos são livres para fazer escolhas. 

Ele respirou fundo para falar alguma outra coisa, mas resolveu ficar calado. Apenas ficamos nos olhando, em silêncio, por um momento.

-Eu escolhi você - ele sussurrou por fim, olhando em meus olhos. - A única coisa da qual eu nunca vou me arrepender é de ter amado tanto você. 

Fechei os olhos, aproveitando a sensação que as suas palavras me causavam. Seus braços se fecharam ao meu redor, e agradeci quando ele pressionou os lábios contra os meus. Minhas mãos se fecharam no seu cabelo negro e perfeito, e eu quis que o mundo congelasse naquele momento. 

Lembrei da primeira vez em que eu o vira, andando pelo mercado, parecendo perdido. E como eu sorri quando ele me perguntou algo em outra língua, e então se corrigiu em grego. E quando nos escondemos dentro do templo para conversarmos em paz, sem que minhas irmãs nos interrompessem. Lembrei do nosso primeiro beijo, depois do banquete oferecido pelo imperador, quando ele apareceu na janela do meu quarto para me desejar boa noite, e como eu fiquei assustada quando o vi empoleirado naquela árvore tão alta. 

E lembrei de quando ele me mostrou suas asas pela primeira vez, e eu soube que o amava ali mesmo. Sua história devia se tornar um livro. Triste, com um toque de desespero, e ainda romântico. Um anjo. Quem diria! Sempre me ensinaram a ser fiel aos deuses da minha cidade, mas eu não podia discutir com ele, e suas asas sem dúvida magníficas. 

Ele se afastou um pouco, mas logo voltou a me abraçar. Meio desesperado, como se eu pudesse ser levada com o vento a qualquer momento. Toquei o início das suas asas na costa, e sua respiração parou. Acariciei as penas macias, e encostei minha bochecha no seu ombro. 

-Eu te amo tanto - ouvi ele sussurrando. 

Meu coração explodiu de alegria. Nada neste mundo poderia me fazer amá-lo menos, nem o passado que o condenava, nem o que ainda estava por vir. Os seus irmãos e irmãs simplesmente não entendiam que anjos também podiam amar. 

-Eu amo você. Eu vou sempre amar você, não importa o que aconteça no futuro... - eu suspirei. - Lúcifer. 

Voltei ao presente. Com o coração na mão e as palavras na ponta da língua. Mas esqueci o que ia dizer quando vi os olhos de Logan me fitando. 

-Está bem? - ele perguntou, deixando transparecer sua preocupação.

Assenti, sem ter certeza do que eu devia fazer. Estávamos muito próximos um do outro, quando apenas segundos antes, eu estava o beijando, em alguma outra época, em algum lugar da Grécia Antiga. 

-Sam? - Logan disse novamente, dessa vez realmente confuso. - Com o que você sonhou?

Os cabelos estavam menores agora - ele devia ter cortado - mas ainda era o mesmo.

-Sam... Você está me assustando.

A pele estava mais pálida também. Quantos dias ele passou se escondendo dos seus irmãos e irmãs para não voltar para o inferno? 

-Eu... - eu podia sentir meus olhos arregalados. Perguntei a mim mesma como eu podia ter passado tanto tempo sem me lembrar daquela parte crucial do meu passado. 

-Sim? - Logan tinha a testa franzida.

Era isso mesmo? O que eu vou dizer está certo?

É claro que está. Apenas diga logo. 

-Eu amo você - sussurrei perplexa. - Eu sempre amei você. Eu me lembro agora.

Um silêncio terrível caiu sobre a sala. Pensei que Logan estivesse tendo um colapso nervoso, pois começou a tremer, e então se afastou de mim com um pulo.

-Você lembrou - ele disse quase com horror.

-Eu não deveria ter lembrado? - perguntei ainda assustada. - Por que não me contou antes?

-Eu não sou ninguém para lhe dizer como se sente, Samantha - ele sussurrou. - Isso era uma coisa que devia ter feito sozinha, de preferência antes que eu tomasse minha decisão.

Um pausa. 

-A forma como eu me sinto vai mudar sua decisão de matar todo mundo que eu amo? - perguntei lentamente.

Logan abriu a boca para dizer algo, mas respirou fundo e afundou na sua poltrona de couro. Cobriu o rosto com as mãos e quase arrancou os cabelos.

-Por que você faz isso comigo? - ele perguntou com raiva. - Por que me tortura tanto? Não podia simplesmente ter parado de reencarnar e me deixado em paz? 

Sem avisos, eu senti lágrimas rolando pelo meu rosto. Tentei engolir em seco, mas soltei um soluço baixinho. Logan ouviu. Ele levantou o olhar para mim e quase começou a chorar também.

-Por favor, Sam... Estou implorando... Não chore.

Virei para sair da sala, mas Logan foi mais rápido. Ele me puxou pelo pulso e me segurou com força nos seus braços. Abracei sua cintura como uma criança abraça um adulto, e senti que morreria se o soltasse agora. Senti que morreria se ficasse longe dele novamente, agora que lembrava do que havia acontecido naquela vida. Aquelas lembranças mudariam tudo daqui pra frente. 

-Logan - eu sussurrei contra seu peito. - Não acredito que tenha mudado tanto. 

-Eu não mudei - ele murmurou. - Eu só passei a tomar decisões que, na época em que nos conhecemos, pareciam inúteis. Agora, elas são o meu plano de vida. 

-Por favor. 

-Não faça isso comigo - Logan me abraçou mais forte.

-Então desista - pedi. - Deixe tudo isso para trás, se entregue e diga a verdade. 

-Eles vão me matar. 

Engoli em seco. 

-Você queria matar Collin - afirmei lentamente. 

Logan me soltou, e senti uma dor quase física com isso.

-Era... Parte do plano - ele murmurou sem me olhar.

-Você queria destruir minha alma para fazer isso. - Mais lágrimas ameaçaram rolar. 

-Não! - ele exclamou. - Nunca. Sam... Samantha... Selena... Eu não sobreviveria se algo acontecesse a você. A sua alma é a coisa mais preciosa de todo o universo para mim, e eu só... - ele limpou a garganta, desconfortável, e admitiu: - Eu só queria que ela pertencesse a mim. 

Meu peito ficou pesado, e o puxei pela jaqueta de couro para me abraçar novamente. 

-Você não precisa da minha alma - sussurrei. - Você tem meu coração, e todos os meus pensamentos, e todos os meus sonhos. Você tem a minha vida, L. Pode fazer o que quiser com ela, mas eu só queria que fizesse o que era certo. 

Logan se afastou apenas para tomar meu rosto entre as suas mãos e pressionar seus lábios nos meus, finalmente, depois de tantas vidas sem isso. Como no sonho, o puxei pela gola da sua jaqueta para mais perto, e suas mãos envolveram minha cintura. Por puro instinto, comecei a tirar sua jaqueta, e ele apenas sorriu, e então tiramos a sua camisa juntos. 

Suas asas negras se abriram, formando um círculo negro ao nosso redor. As penas ainda estavam gastas, e muitas caíram ao longo do chão. Mas isso não importava. Elas ainda eram magníficas, como eu me lembrava.  Meus dedos percorreram seus ombros largos, passearam pela suave curva das suas costas, e encontraram o início das suas asas. Envolvi as penas com as duas mãos, sentindo que estavam frágeis demais, e lembrei do que Miguel havia dito, parecia séculos atrás:

A única forma de matar um demônio é se arrancarmos as asas dele. 

Meus dedos congelaram.

É apenas uma questão de puxar... E matar. 

Logan parecia estar ciente disso. Na verdade, acho que ele sempre soube. Ele parou de respirar e ficou completamente rígido, congelado no lugar. Um movimento em falso, e suas asas seriam arrancadas, mesmo que sem querer. Saber que sua vida literalmente estava nas minhas mãos foi... 

Simplesmente não há palavras para descrever a sensação. 

Eu poderia ter o matado ali mesmo. Eu tinha esse poder, tinha tudo a meu favor. Todos me agradeceriam mais tarde; Beatrice ia me adorar por isso, a maldição seria quebrada e Collin ficaria livre para ficar comigo. Todos seriam felizes para sempre. Todos, menos eu. 

-Está esperando o quê? - ouvi Logan murmurando com sua voz grave no meu ouvido. - Puxe. Arranque minhas asas. Acabe comigo de uma vez. 

Fechei os olhos. Respirei fundo. 

E me afastei. 

-Eu morreria antes de matar você, L. - sussurrei com os olhos no chão.

-Você sabe que isso é impossível.

-Eu sei - sorri e levantei o rosto para olhá-lo. - Entendeu a ironia? 

Logan começou a rir, então ouvimos um barulho vindo lá de fora. Algo parecia ter explodido, ou coisa pior.

-Ah, esses Anjos Caídos - Logan revirou os olhos. - Desculpe, eu vou...

Outro barulho, dessa vez mais forte. Gritos de dor ecoaram pela sala, e então a porta foi brutalmente arrombada, revelando um Miguel nada feliz.  Ele tinha nas mãos a espada novamente, dourada e prateada ao mesmo tempo. Ao seu lado estava Anauel e mais dois anjos que não reconheci. Logan imediatamente se afastou e recolheu as asas.

-Miguel - disse sarcástico. - Ora, se eu soubesse que você vinha, teria arrumado um pouco a sala. 

-Deixe-a ir - Miguel ordenou, ameaçador, apontando para mim. Logan perdeu o ar sarcástico e ficou inexpressivo. 

-Ela não está presa - afirmou lentamente. 

Entendi que essa era a minha deixa. Eu deveria ir imediatamente para o lado de Miguel e sair dali com Collin o mais rápido possível. Mas eu não conseguia. Bom, era de se esperar que eu não conseguisse, não depois de lembrar de tudo e de beijar Logan daquela forma, e depois de ter a chance de matá-lo e recusar. 

Quando hesitei, Miguel me fuzilou com os olhos. Tentei buscar conforto em Logan, mas ele ainda estava inexpressivo. Resignada e inconformada, caminhei lentamente até parar ao lado de Anauel. Ele me envolveu com um dos braços e me tirou de lá.

Olhei uma última vez para Logan. 

Seus olhos estavam vermelhos. 


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Notas finais do capítulo

Ainda estão vivas? Sim, não? Se estiverem, que tal alguns reviews bem desesperados? Eu vivo por eles *-*
UHSUASHUAH, próximo capítulo, mais emoções. Aguardem. Beijos!