Batendo nas Portas do Inferno escrita por KAlexander


Capítulo 2
Capítulo 1 - Atravesse para o Outro Lado (Parte 1)




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A doce primavera, que nos cerca contra a vontade, impregnando o ar, tornando-o leve e perfumado. Eu o sentia entrando por minhas narinas, enchendo meus pulmões constantemente, purificando meu corpo. Deitado no telhado, eu aproveitava a bela estação que chegara tranqüila, observando a enorme Lua cheia que pairava no céu tão límpido, de um azul escuro e quase palpável. Naquela época eu havia me mudado havia pouco para minha residência em Angelino Heights, nos arredores de Los Angeles. Um belo lugar, onde as casas, assim como a minha, seguiam aquele antiquado, mas nunca rejeitado, modelo vitoriano. Eram todas casas de cores vibrantes e estruturas angulosas. Construções do início do século XX, onde os donos daquelas propriedades desejavam demonstrar o poder e o dinheiro que possuíam e podiam esbanjar. Pouco mais de um século depois elas resistiam ao tempo, tão esplendorosas quanto nos dias em que estavam sendo construídas.

Há quase uma hora eu subira pelo sótão e me aconchegara naquele telhado, com as mãos sob a cabeça, ao ar livre, sentindo a brisa morna que beijava meu rosto e esvoaçava inocentemente meus cabelos. As conversas dos que estavam na rua apenas de passagem, assim como a dos vizinhos ao redor, chegavam até mim como as marés na praia, indo e vindo constantemente, sem nunca se estabilizarem.

Eu quase podia flutuar e não conseguia lembrar quando fora a última vez que sentira tamanha tranqüilidade. Minha mente estava tão maravilhosamente silenciosa que era como estar debaixo dágua. Era perfeito! Tão perfeito que eu não conseguia cogitar que aquele momento pudesse, de fato, terminar por alguma obra humana.

Bem... obra humana.

Neste exato momento, em que eu realmente acreditava que poderia desfrutar de mais algumas horas de paz, um som, extremamente baixo, mas alto o suficiente para não ser apenas uma peça maldosa da imaginação, atingiu meus ouvidos, vindo direto do interior de minha casa. Fechei os olhos por alguns segundos, antes de dar adeus à serenidade. Com um suspiro pesado, levantei-me e pulei pela clarabóia.

Pousei suavemente no chão do sótão, empoeirado e abarrotado de caixas e velharias. Com exceção da luz lunar, que penetrava pela clarabóia, o local estava às escuras, mas foi fácil guiar-me até a escada em caracol que levava ao andar inferior. Finalmente no primeiro andar, segui cautelosamente pelo corredor extenso. Um silêncio total se alastrava, e minha tensão, causada pelo intruso que ousara invadir minha casa, além de me interromper, apenas agravava a ausência de ruídos. As cores vivas do papel de parede mal podiam ser vistas, devido à escuridão em que o corredor estava mergulhado. Espere... escuridão? Eu não me lembrava de ter apagado as luzes. Dei um risinho silencioso. Então ele gostava de jogar, este meu convidado... Pena ele não saber que sou um péssimo perdedor. Por isso encontrara uma ótima solução para este problema de ego...

Eu jamais perdia.

Cheguei à porta de meu quarto. Estava entreaberta, mas isto não era necessário para que eu soubesse que era ali que ele estava. Sua presença era muito nítida para mim, tanto quanto o seu cheiro, sua pulsação. Podia ouvir meu coração acelerar o ritmo, em expectativa, ao olhar o interior do cômodo que me era possível ver, através da fresta deixada pela porta. Eu estava mais do que pronto, apenas me segurando o suficiente para não pular no quarto como um felino enfurecido. Levei minha mão até a maçaneta e respirei fundo antes que um sorrisinho irônico escapasse de meus lábios. Um único pensamento sondando... Au revoir, mon ami*.

O que aconteceu em seguida se passou tão rapidamente, que dez segundos pode ser exagero de minha parte. Escancarei a porta com estrondo e, localizando meu visitante no canto direito, ao lado da janela aberta, corri ao seu encontro; segurei-o pelo colarinho da forma menos delicada possível e o ergui do chão, sem nem ao menos me dar ao trabalho de encará-lo, antes de arremessá-lo na cama, à distância. Seu corpo despencou pesadamente e, sem lhe dar chance de fugir, ou se defender, pulei sobre ele, prendendo seu tórax sob o peso do meu corpo, segurando seus pulsos nas laterais da cabeça antes de...

... Olhar diretamente para o seu rosto.

Eu sei que você gosta de uma boa briga, mas isto foi realmente necessário? Disse ele com um sorriso descaradamente divertido.

Olhos absurdamente escuros, quase negros com as pupilas dilatadas como estavam naquele momento; e cílios curvos que sombreavam ainda mais os olhos espertos de raposa. Os cachos claros na altura das orelhas estavam espalhados como um leque sobre a cama. E aquele maldito sorriso irônico, que tinha plena certeza de que eu não lhe machucaria nem mesmo se quisesse... Ele. Aquele que fora um pequeno teste...

Christian! O que diabos você está fazendo aqui?! Perguntei, subitamente furioso por ter causado aquele drama ridículo apenas para invadir minha casa.

Ótimo... É realmente ótimo que queira demonstrar todo o seu amor por mim de uma vez, mas seria bom sair de cima de mim primeiro e me dar as boas-vindas, não acha? Ele indagou, ainda sorrindo seu sorriso de raposa, embora estivesse tentando se soltar agora.

Levantei-me imediatamente e observei-o fazer o mesmo, embora com uma descontração que beirava o atrevimento. Mas não estava verdadeiramente irritado, apenas admirado com sua visita. Afinal, eu não o via há muitos anos. Mesmo assim, não demorou para que me acostumasse novamente com sua presença.

Christian era mais baixo que eu, de compleição mais delicada, o que fazia com que parecesse um adolescente. Ou um adolescente rebelde, de acordo com seus modos. Camisa para fora do jeans escuro e botas pretas mal-amarradas propositalmente. Aquilo o que costumavam chamar bad boy, os modernos. Enquanto ele rondava lentamente pelo quarto eu sorri inconscientemente ao vê-lo ali. A companhia dos seus sempre é um deleite inigualável.

Foi realmente difícil encontrá-lo. Parece que está se escondendo ele supôs, enquanto se aconchegava na poltrona de couro, próxima à janela.  Demorei meses para encontrar um rastro nítido sobre o lugar para onde você estava indo.

Gosto de mudar. Disse, dando de ombros, antes de sentar na beira da cama. Só por isso achou necessário invadir minha casa?

Você gosta de mudar, eu gosto de entradas triunfais. Christian explicou simplesmente, jogando uma perna sobre o braço do estofado; distraidamente, apanhou uma pequena ampulheta, que encimava a mesinha ao seu lado, e começou a brincar com ela, jogando-a de uma mão para a outra, sem prestar realmente atenção no que fazia. Você estava na Inglaterra no inverno, não?

Me cansei do frio. Respondi apenas. Eu sabia que no fundo estava profundamente grato pela presença de um igual, especialmente sendo Christian... meu Christian... Meu pupilo. Mas não era seu feitio me procurar...Tecnicamente, não era de seu feitio procurar ninguém. Não era por nada que eu não o via há quase cinqüenta anos. Ele se criara sozinho, necessitando de minha ajuda apenas para os ensinamentos mais básicos sobre como sobreviver longe dos meus cuidados. Christian fora encontrar e viver suas próprias aventuras, e eu simplesmente pude olhar à distância, como qualquer pai faria com um filho travesso que fora solto da coleira. Embora ele nunca houvesse necessitado de minha ajuda e, mesmo que necessitasse, ele não daria o braço a torcer. Resolveria seus próprios problemas através de seus meios.

Realmente achei que o encontraria com alguém comentou, fazendo malabarismos com a ampulheta. Mas você está tão só quanto um velho com um pé na cova, meu amigo. Isto é muito triste. Uma pena. Tudo bem que você seja, de fato, velho, mas não tem de agir como um. Sorte a sua que cheguei em boa hora.

A ampulheta girou no ar, antes que ele a pegasse sem esforço e sorrisse para mim.... Um demônio de feições assustadoramente angelicais. Peste...

Sorte ou azar? indaguei, erguendo uma sobrancelha.

Ora, não finja que não está feliz em me ver! Exclamou contente, o sorriso inabalável alargando-se ainda mais. Eu sou a sua melhor obra, seu desgraçado. Sou o único que tem a inesgotável paciência de ouvir seus devaneios e suas lamúrias sem tentar esmurrá-lo por causa do tédio.

Estou perfeitamente bem sozinho! Rebati, ofendido. Se causo tanto aborrecimento assim, por que estava tentando me encontrar há meses? Afinal, por que diabos você está aqui?

Christian abriu a boca como se fosse falar; seus olhos cintilaram por um segundo com o insulto que não estava acostumado a receber, principalmente de mim. Então, apenas se levantou, devolveu a ampulheta à mesinha e disse numa voz perfeitamente polida:

Não se preocupe. Não vou mais incomodá-lo.

E me deu as costas, indo em direção à porta. Eu não o segui a princípio, mas foi nesta pequena ação de criança mimada que percebi o que o trouxera até mim tão repentinamente. Eu fora idiota especulando seus motivos por me procurar, pois, assim como eu, e quase todos como nós, Christian é uma das criaturas mais orgulhas que já tive o prazer de conhecer. Ele jamais diria que o que o fizera me procurar era nada mais do que querer me ver, ou meramente saber como ou com quem eu estava.

Eu ri internamente antes de correr e encontrá-lo no fim do corredor. Segurei seu braço e ele parou imediatamente. Virou-se para mim e encarou-me interrogativamente ao ver o sorriso em meu rosto.

Christian... – Era um sussurro, e ainda assim que diria mais do que qualquer outra palavra. Tudo estava incluso... Que eu o amava, que sentira saudades todo o tempo em que ele se mantivera longe e que nada poderia ser mais prazeroso do que sua presença. Eu o abracei com força, apertando meus dedos contra seus cabelos. Fechei os olhos, permitindo-me viver aquele momento. Havia tanto tempo que eu não o tinha ao meu lado que era quase doloroso pensar em deixá-lo ir novamente. Seu idiota...

Cloud...  murmurou meu nome em meu ouvido, retribuindo o abraço com delicadeza. Você está ficando sentimental.

Ainda assim, senti o sorriso em sua voz, o que se confirmou quando o soltei. Pousei minhas mãos em seus ombros, sorrindo suavemente ao observá-lo. A pele lisa e tenra estava extremamente pálida; e tão frio... como se estivesse mal agasalhado em uma noite de inverno. Senti uma momentânea onda de orgulho me invadir ao absorver aqueles pequenos detalhes de sua aparência. Christian era uma bela obra prima, e eu a finalizara, por assim dizer. Eu lhe presenteara com aquela aparência luminosa; eu lhe dera aqueles sentidos absurdamente apurados e até mesmo aquelas pequenas e quase imperceptíveis presas, que agora ocupavam o lugar de seus caninos. Eu lhe dera o sangue negro.

Eu o transformara em vampiro.





****




Sim. Exatamente. Sou um vampiro. Surpresos? Assustados?... Excitados? Enfim, não tenho absolutamente nada a esconder. Por que teria? Chamem-me de monstro, se quiserem. Mas não escolhi esta condição. Não queria a eternidade como presente. Simplesmente fui escolhido para usufruir desta pequena dádiva. Isso foi há muitos anos, mas não quero prender-me ao passado. O presente é o que me importa, portanto deixem-me resumir a triste história de minha transformação.

Eu vivia em Londres no início do século XIX, e era apenas mais um jovem burguês de 24 anos. Um belo jovem burguês de 24 anos. Havia terminado meus estudos, me formado em advocacia para satisfazer meu pai. Ele realmente havia ficado extremamente orgulhoso de seu filho primogênito... Até descobrir que, tenho de admitir, eu tinha outras ambições, que em nada se assemelhavam com meus estudos para me tornar um respeitável advogado.

Eu queria me divertir e seguia o Carpe Diem* como filosofia de vida. Eu era jovem e aproveitar minha juventude, enquanto ela durasse, era meu único objetivo. Eu atravessava as noites em festas e bares desde que fosse convidado, e isto também não era um problema. Eu possuía certa fama e me orgulhava disso. Bebia, fumava, passava as noites nas casas de cortesãs e declarava amor eterno a tantas mulheres e homens  apesar de ser um grave crime naqueles anos remotos que nem mesmo me lembrava de suas feições.

Obviamente meu bom e respeitável pai queria morrer, ou matar-me,  ao ver o ser detestável em que eu me tornara aos seus olhos. Nós brigávamos dia após dia, ou melhor, noite após noite, sempre que eu chegava cansado e louco para desmaiar em minha cama. Era sempre a mesma coisa. Ele gritando, eu, bêbado, ignorando-o, e minha mãe tentando intervir...  Até o momento em que todos estavam exaustos demais para continuar as discussões e íamos, finalmente, dormir.

Até certa noite. Eu acabara de chegar de uma festa, o hálito cheirando a destilaria. Já havia passado da meia-noite há muito tempo e, em meu cérebro cheio de vinho, eu só conseguia visualizar meu quarto. Porém, mesmo com a desorientação causada pela enorme quantidade de álcool que fluía por meu sangue, percebi imediatamente que havia algo extremamente estranho quando adentrei em casa. Eu esperava os gritos quase histéricos de meu pai, sentado na sala, esperando por mim com a mesma frase; então, Cloud, seu bastardo, é isso?

Eu sempre ria com todo o escárnio possível, mas nada dizia. Simplesmente o ignorava. Naquela noite não seria diferente... Porém, apesar de tudo estar aparentemente no lugar, um silêncio que se instalara não era nem mesmo de longe comum. E as luzes... estavam todas apagadas.

Tentando trazer a sobriedade, de algum lugar possivelmente inexistente de minha mente, subi cautelosamente as escadas até chegar ao segundo andar. Como proteção eu possuía apenas uma simples faca de cabo dourado, que havia ganhado recentemente numa aposta. Não havia visto muita utilidade naquela pequena beleza afiada quando a ganhara. Por outro lado, quando a retirei de dentro do casaco ao chegar ao último degrau, agradeci profundamente ao tolo que ousara jogar cartas comigo há algumas noites.

O corredor não se encontrava diferente de todo o resto da casa. Completamente às escuras. Pela primeira vez em minha vida senti o que era o medo, a sensação desesperadora da vulnerabilidade, como se o ar estivesse avolumando-se, indo na direção contrária dos seus pulmões. O coração palpitando, bombeando o sangue que, mesmo quente, congela seus músculos e ossos, numa tentativa de avisar que algo está errado, de que você está em perigo. Sintoma natural de qualquer criatura viva, o instinto de sobrevivência.

Continuei caminhando, os olhos muito abertos na tentativa de captar qualquer mínimo sinal de movimento. Cheguei à porta do quarto de meus pais no final do corredor, um lugar com o qual não estava verdadeiramente familiarizado. Estava fechada, porém, com os dedos trêmulos, levei minha mão à maçaneta e girei-a cuidadosamente.

Estava fechada, mas não trancada.

Temeroso, adentrei o aposento sem iluminação. Estremeci com o frio que dominara o quarto; alguém esquecera a janela aberta e as cortinas esvoaçavam livremente, erguendo-se no ar, dançando como se o vento desse-lhes vida. Dando mais alguns passos, respirei aliviado ao constatar que meus pais estavam deitados, dormindo tranquilamente. Velei seu sono por alguns instantes com um sorriso suave. Finalmente cansou de me esperar, meu velho, pensei ao olhar seu rosto envelhecido. Eu nem ao menos percebia suas respirações, serenos que estavam. Mas... o que poderia ser...

Havia uma pequena mancha escorrendo por sua garganta, e toquei-a com a ponta dos dedos. Dei um passo para trás, de repente sobressaltado; estava absolutamente gelada, sua pele. Observei atentamente o líquido que agora se grudara aos meus dedos. Sangue... Havia sangue em meus dedos... escorrendo da garganta de meu pai... o sangue de meu pai...

Chamei-o num sussurro. Chamei os dois, sacudindo seus corpos levemente. Nada... Chamei-os de novo e de novo... até que o sussurro se transformou num grito de pânico, de incredulidade, assim como as lágrimas que escorriam de meus olhos. Eu tremia e chorava como uma criança, gemendo de desespero e dor. Eu caíra de joelhos ao lado da cama, o rosto enterrado nos lençóis; ouvi o som da faca, caindo no chão com estrépito quando a soltei inconscientemente, a fim de segurar o corpo morto de meu pai. Apenas a dor me movia e eu fiquei ali, só, chorando e sentindo o que alguém que nunca experimentou a perda pode compreender. O vazio em sua própria carne, a sensação de ter perdido um órgão vital. Mesmo que séculos já tenham se passado, eu ainda me lembro do quão dilacerado eu estivera naquele momento.

Horas ou minutos poderiam ter se passado. Eu ainda me encontrava jogado no chão, sem forças para chorar ou chamá-los à vida novamente. Apenas os meus gemidos solitários e quase imperceptíveis preenchiam o silêncio do quarto quando outro som se juntou àquela triste melodia. Um riso. Não era um riso de diversão ou nem mesmo de escárnio. Era apenas um riso de descrença. Ergui a cabeça imediatamente para procurar seu dono, levando minha mão à faca que jazia esquecida no chão. Vasculhando de um lado ao outro do quarto com os olhos turvos, encontrei um vulto saindo detrás das cortinas, que ainda dançavam ao seu redor. Ele continuava rindo, como um lobo saindo do esconderijo...

Como o som poderia ser tão belo e doce, se saía da boca de uma fera, eu não consegui compreender, mas tinha certeza de que aquela criatura não era humana apenas ao focá-lo por alguns segundos. Ele era muito alto e usava uma capa azul escura elegante; seus braços estavam cruzados enquanto ele se aproximava, andando com uma leveza admirável.

Eu me levantei num pulo e o encarei com firmeza, forçando os olhos na escuridão. Enormes olhos verdes escuros, muito incomuns, passeavam por minha figura; cabelos castanhos e longos demais, cascateavam soltos sobre os ombros descontraídos. Sua pele era como porcelana, e tudo em seu rosto parecia estar divinamente alinhado, as proporções tão perfeitas que me senti inferiorizado em minha normalidade humana. Mas havia algo que eu tive plena certeza de que ele, fosse lá o que fosse, exibia propositalmente; seu riso cessara e agora seus lábios estavam esticados num sorriso cintilante, deixando a mostra os dentes perfeitamente brancos e... sua marca. A marca da espécie maldita. As pequenas presas pontiagudas.

Eu já ouvira histórias, obviamente, mas nunca fora um amante da fantasia, e isto nunca passara de um mito clássico para mim. Mas estava ali a prova; diante de meus olhos a criatura sorria e caminhava, como se fosse um humano qualquer.

Cansou de chorar a morte de seus pais, garoto? Perguntou, o sorriso morrendo em seus lábios. Seus olhos eram letais e eu temi mirá-los diretamente.

Quem é você? Como entrou? Por que está aqui? Rebati como um tolo, engolindo o medo que teimava em consumir meus nervos.

Primeiramente, eu estava tendo uma pequena conversa com seus pais. Foi algo realmente proveitoso, como você pode ver disse indicando a cama com um meio sorriso,  mas ainda estou aqui por sua causa, compreende? Eu estava a sua espera.

Obviamente aquilo me chocou, pois se ele havia matado meus pais, e estava a minha espera, eu, muito provavelmente, seria o próximo. Aquele estranho sinistro seria a última coisa que eu veria. Mas o medo inicial estava se afastando, pois ele não era hostil. Na realidade, estava me seduzindo com seu tom. Ele falava pausadamente, e cada palavra possuía a entonação correta, com uma polidez que eu jamais sonhara em ter.

Por quê? Quis saber, verdadeiramente curioso.

Por quê?   Repetiu com notas de diversão. Ora, não me diga que não notou a semelhança.

Eu não havia me apegado a este detalhe, mas ele estava correto. Por mais estranho que pudesse parecer, nós éramos singularmente semelhantes. A mesma altura, o mesmo porte descontraído... Seus olhos eram como espelhos dos meus, cheios de curiosidade e indiscrição, tentando absorver tudo o que fosse possível um do outro. Este era eu. Embora meu cabelo não fosse tão longo, possuía a mesma cor e a mesma textura. Com algumas exceções, como a palidez extrema e as presas, éramos idênticos.

Ele riu de meu espanto e deu um passo em minha direção.

Bem, meu adorado Cloud, não é sempre que encontro alguém com o seu rosto... ou com o meu rosto. Creio que seria útil, para dizer o mínimo, tê-lo como um igual.

O que quer dizer? Perguntei, sem realmente compreender.

Eu não sou humano, e acho que você percebeu desde o momento em que me viu. Existem muitos outros como eu. Você talvez já tenha se deparado com eles, mas não os percebeu, pois estavam disfarçados. Ainda assim, eles existem. E, entre nós, há muitos inimigos. Ter um sósia pode ser muito útil; você poderia despistá-los facilmente para mim.

Por um segundo fiquei ali, parado, a mente trabalhando sobre o que ele acabara de me revelar. Até que, finalmente, compreendi abismado.

Você quer me usar como isca... murmurei, estarrecido. Minha mente trabalhava a passos lentos, e até mesmo a percepção de minha voz tornara-se uma tela de sonhos... Tão vaga...

Ele pareceu pensar por um segundo, muito tranquilamente.  Sim e não. Seria realmente uma lástima perdê-lo. E isca é um termo muito pejorativo. Digamos que você seria meu... disfarce, por assim dizer.

Foi por isso que matou meus pais? Perguntei finalmente; lembro-me que o ódio escorria por cada palavra lentamente pronunciada, mas era difícil absorver os fatos... O humano em mim não poderia crer nos acontecimentos, mas parecia-lhe natural que assim se expressasse. Tão instintivo...

Você tentaria ficar perto deles, tentaria voltar e isto seria um problema para nós. Especialmente para você. Falou prontamente, sem sombras de arrependimento, como se a vida dos dois ao meu lado, deitados na cama, houvesse sido um problema técnico que facilmente poderia ser resolvido.

Cloud, Cloud, Cloud... repetiu meu nome com uma compreensão que não esperei vir daquela criatura,  sei que deve ser doloroso. Eram seus pais, e este sentimento humano é natural. Laços de sangue? É assim que vocês dizem, não?

Ele se achegou ainda mais. Eu não o queria próximo a mim, mas não ousei me mover quando ergueu uma das mãos para tocar meu ombro, um gesto que deveria ser respeitoso, mas apenas me deixou paralisado. Eu podia ver claramente as sardas em seu nariz e as pupilas dilatadas. Uma corrente de ar varreu o quarto, provocando um arrepio em meu corpo que talvez não estivesse ligado ao frio...

Mas isto não será para sempre, acredite continuou. Apenas venha comigo e poderei mostrar tudo o que você nunca seria capaz de ver e compreender... Não sendo o que é agora.

... Humano eu sussurrei para mim mesmo. Não conseguia pensar, e, mesmo que tentasse, minha mente estava por demais atordoada com os acontecimentos. Estava assustado como uma criança perdida e me senti momentaneamente pequeno como uma. Eu não sabia o que fazer. A única coisa mais próxima ao coerente que eu conseguia pensar era o porquê de aquilo estar acontecendo comigo. O que havia de especial em mim? Eu não era nenhum nobre, e, mesmo que fosse, não era nem um pouco excepcional. Eu não queria ver nada que não pudesse ver como humano. Eu era feliz como humano. Talvez não estivesse naquele momento, mas o que se poderia esperar? Eu acabara de encontrar meus pais mortos... Isso era mais que suficiente para me deixar momentaneamente desorientado. E o assassino estava ali, me observando como se fosse um bom amigo prestes a me ajudar. E eu não tinha fé... Ah, os humanos e a fé... Como uma mão invisível, que apertamos quando aquelas de carne e sangue fecham-se e afastam-se.

Confesso que, relembrando, minha atitude seguinte foi absurdamente infantil. Mas, compreendam, eu era jovem e a maior parte das pessoas entraria em total pânico ao confrontar com eventos como aqueles. Digamos que eu simplesmente gritei com ele, dizendo que não o seguiria, que não me tornaria um monstro nojento. Disse para me deixar em paz e ir embora para o inferno de onde viera. Podem rir, eu compreendo. Foi o que o desgraçado fez. Riu, antes de segurar meus braços e me imprensar contra a parede. Seu rosto estava a centímetros do meu e sua voz era perigosamente baixa, fatal como o seu olhar, intensa como sua presença. Meu criador... De uma aura tão deslumbrante que é quase possível ignorar seu estado de morto-vivo, mergulhando em sua beleza...

– É apenas humano, Cloud... Não pode decidir. – gentilmente, a ponta de seu dedo escorregou com meu queixo, a respiração pausada estimulando minha pele. Tão sensual... Morte e vida espiralando em meus lábios secos. Poderia matá-lo agora, se não fosse a semelhança que temos, mas seria uma pena... Entenda que esta, e somente esta, é a sua utilidade... Ao menos por agora.

Eu não estava mais com medo. Eu estava categoricamente apavorado... Tentei me desvencilhar, berrar, acertá-lo, mas qualquer movimento era em vão. Ele me prendia com braços de ferro e quando senti seus lábios percorrerem meu pescoço procurando a jugular, soube que a luta estava perdida e deixei que fizesse o que viera para fazer. Ouvi seu risinho em minha pele quando notou a mudança em minha atitude.

Bom garoto... Elogiou, antes de fincar os dentes em minha garganta.

Arregalei os olhos com a dor que me atingiu, antes de sentir as pontadas em toda a extensão de meu corpo. Ah, a transformação! Isto é realmente um acontecimento inesquecível para qualquer vampiro. A ligação que se forma quando seu sangue, seu bem mais precioso, sua própria vida está sendo passada para o corpo de outra criatura... Essa intimidade incomparável e inigualável. Os corações pulsando como uma única vida, cada um concentrado no outro, um alimentando e completando o outro. É dolorosamente belo...

Creio que devo ter sorrido como um bobo, até o momento em que fui tomado pela tontura... Estava fraco e prestes a desmaiar quando ele me amparou e me carregou até uma cadeira. Minha cabeça girava e sua imagem escurecia e clareava em intervalos irregulares. Os furos em meu pescoço me pareciam crateras terrivelmente dolorosas, passado agora o momento do êxtase. Suas mãos seguraram habilidosamente meu pescoço antes que eu tombasse.

Estou morrendo...De olhos fechados, sussurrei numa voz tão frouxa e baixa que mal reconheci como minha.

Não se preocupe, Cloud ele afagou minha mente, murmurando em meu ouvido com suavidade. A morte será a última coisa a lhe atingir agora.

Senti algo escorrer para meus lábios entreabertos e, antes que eu pudesse impedir, senti o líquido salgado descer por minha garganta. Aturdido, procurei em vão a fonte. Era absurdo, mas eu tentei encontrá-la! Queria mais daquele líquido poderoso, que queimava e alimentava meu corpo fraco. Com uma velocidade inacreditável eu sentia sua energia fluir por minhas veias até as pontas dos dedos, preenchendo o vazio que fora causado pela perda de sangue com uma força abrasadora. Eu não podia suportar continuar acordado por muito mais tempo. Sentia que estava sendo puxado para um mundo de escuridão forçada, meus olhos se fechando e ardendo simultaneamente. Estava quase desacordado com a dor que me atingia em ondas constantes, quando, num relance de consciência, consegui murmurar:

Quem é você?

Não pude mais me segurar e senti quando me amparou com as mãos, para que não caísse como um boneco de trapos no chão. Seus braços se fecharam ao redor de meu corpo com firmeza, segurando meu peso morto. Ouvi sua voz em meu ouvido, desta vez aveludada e gentil, como se eu fosse um bebê que necessitasse de cuidados extremos.

Alec, garoto sussurrou, a uma escuridão de distância. Agora descanse. Tudo estará mudado quando acordar, assim como você. Especialmente... você.


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Notas finais do capítulo

1. Au revoir, mon ami: "adeus, meu amigo";
2. Carpe Diem: é uma frase em latim, e é popularmente traduzida para "colha o dia" ou "aproveite o momento". É também utilizado como uma expressão para solicitar que se evite gastar o tempo com coisas inúteis ou como uma justificativa para o prazer imediato, sem medo do futuro.



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