Batendo nas Portas do Inferno escrita por KAlexander


Capítulo 3
Capítulo 1 - Atravesse para o Outro Lado (Parte 2)




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E foi assim que me transformei. Não foi algo extremamente complexo. Mas confuso. E, como podem perceber, eu não queria, embora tenha me entregado. Na noite que se seguiu acordei em um quarto desconhecido, na área mais afastada da cidade; era um lugar relativamente aconchegante, e Alec estava lá. Sim, ele estava correto. A transformação me permitiu ver o que eu jamais poderia ver como humano. O mundo, os objetos, a natureza e as pessoas, sobretudo as pessoas, tudo reluzia, chamejava aos meus olhos, como se antes houvesse uma camada de poeira espessa sobre o que me cercava, ou como se eu fosse parcialmente cego.

Eu fora curado.

Naquela mesma noite, seguinte a minha transformação, eu constatara que ser parte da noite, ser um bebedor de sangue, era um milagre. Mas não seria se eu continuasse ao lado de Alec. Queria iniciar minha jornada sem interrupções e Alec tinha a mera intenção de me usar, para despistar seus inimigos – percebi isto quando o abandonei para explorar o mundo. Permaneci ao seu lado apenas para compreender e aprender a viver como um vampiro. Aprendi que deveria beber sangue todas as noites, pois era extremamente jovem, mas que com os anos essa sede abrasadora diminuiria consideravelmente. Aprendi que a única coisa que poderia me matar verdadeiramente seria a luz direta do Sol e que me passar por humano não era algo realmente difícil, especialmente porque os próprios humanos não eram muito perspicazes quanto a observação de seus “semelhantes”. Entretanto, o que mais me encantou, por assim dizer, foi a habilidade de captar a presença de outros vampiros à distância. Era simplesmente incrível! De onde quer que eu estivesse eu poderia captar quem estava se aproximando apenas com meus sentidos, que agora eram assustadoramente desenvolvidos. Mas darei uma demonstração deste adorável poder em breve.

O importante é que em duas semanas já havia aprendido o suficiente para abandonar Alec. Eu o odiava, entendam; ele assassinara meus pais apenas para me ter por completo ao seu lado, simplesmente por termos a maldita semelhança física que para ele era tão importante. Nutria por ele um sentimento absurdamente mortal e poderia tê-lo matado antes de deixá-lo, mas sabia que não era forte o suficiente para tal façanha. E, por outro lado, eu estava curioso e uma noite antes de abandoná-lo lhe perguntei como me escolhera e como havia me conhecido.

Lembro-me de estarmos em sua casa quando lhe perguntei isto. Alec tinha o hábito de desaparecer certas noites e voltar apenas pouco antes do amanhecer. Eu o esperara em casa, ignorando a sede para poder vê-lo uma última vez. Quando finalmente chegou, estranhou que eu não houvesse saído para caçar, mas não me questionou. Eu era uma criatura de hábitos estranhos como ele costumava dizer. Também não me questionou quando lhe abordei sobre o que estava me incomodando desde minha transformação.

Sua resposta foi muito simples, para ser franco. Alec contou que estava em Londres há poucos meses e que ter um pupilo, um “filho” com quem pudesse partilhar a compania nunca fora algo primordial desde que deixara sua vida humana. Até o momento em que me conheceu. A semelhança entre nós o abismara, porém, principalmente, o encantara. Alec havia me visto pela primeira vez na elegante casa de uma de minhas cortesãs favoritas e, desde aquele momento, começou a me seguir. Apesar de sermos absurdamente parecidos fisicamente, com o passar do tempo Alec notou que até mesmo nossas personalidades eram semelhantes. Nenhum de nós estava realmente preocupado com o que aconteceria em dois dias ou em dois anos. O presente, o que estávamos vivenciando era importante. O momento era crucial e deveria ser devidamente aproveitado. Assim como ele, meu amor pela vida era imensurável e isto o surpreendeu tanto que ele se vira na obrigação de me trazer para o seu mundo.

Alec precisava de mim e confessou isto com uma facilidade que jamais vi em qualquer outro vampiro. Foi então que, sem mais poder se conter, matou meus pais e me transformou sem pensar ou hesitar. Porém, foi sua atitude seguinte que me espantou mais do que qualquer coisa que ele já dissera ou fizera. Lembro-me com clareza que ele estava sentado em uma poltrona a uma distância educada, e quando terminou de responder minha pergunta passou a fitar sonhadoramente a Lua através da janela levemente embaçada. Os grandes olhos, assim como os meus, exibiam o brilho de pensamentos infinitos, quando, lentamente, ele se voltou para mim, em pé próximo à porta de meu quarto, e sorriu placidamente.

– Você possui um espírito livre para decidir, Cloud – suspirou Alec, o rosto perfeito se tornando ainda mais belo com a graça de seu sorriso. Sua voz soava docemente, preenchendo o aposento como uma poesia. Por mais que eu o detestasse, o abominasse como jamais pensara que poderia abominar qualquer criatura viva, simplesmente não podia ignorar algo tão formidável como sua beleza. – Eu tornei imortal esse coração indomável para que, assim como eu, ele pudesse desfrutar por mais tempo de sua selvageria.

Suas palavras ainda pairavam em minha mente quando ele se levantou e se dirigiu até seu próprio quarto. A noite lá fora esmaecia rapidamente, trazendo aos poucos a luz da manhã. Alec estacou quando chegou à porta e, me olhando por sobre o ombro, falou sutilmente:

– Eu lhe proporcionei os meios. Cabe a você decidir quais serão os fins.

E, me olhando uma última vez com algo que poderia ter sido amor, caso não estivesse vindo de quem estava vindo, Alec me deu as costas e fechou a porta atrás de si, deixando-me ali, imóvel enquanto refletia sobre suas palavras.

Na outra noite, constatei que estava só logo que acordei. Sem perda de tempo, juntei os poucos bens que possuía e deixei Alec e minha adorada Londres. Parti com as últimas palavras de meu criador e com a consciência de que Alec sabia que não poderia me manter ao seu lado. Mais um pequeno ponto em comum entre nossa personalidade que ele muito provavelmente percebera. Tanto ele quanto eu presamos nossa própria liberdade, nosso direito de ir e vir, de ser e fazer o que nos passar pela mente sem interrupções a partir do momento em que houver um objetivo formado. E, desde o momento em que eu despertara para minha nova existência, meu objetivo principal fora me livrar de Alec. Subordinação não é uma palavra adequada ao nosso vocabulário.

Desde a minha saída de Londres posso dizer que nunca houve um dia em que me arrependi de ter deixado Alec e partido para o mundo. Ele me esperava de braços abertos, pronto a me acolher e ensinar. Tantos acontecimentos que, se não fosse por esta mente imortal, eles já teriam sido perdidos e levados pelo tempo indócil. Citarei aqui os mais importantes ao longo das páginas, entretanto, como lhes disse, o que me interessa é o presente. O que aconteceria logo após a chegada de Christian em minha casa.

Talvez não seja algo óbvio, mas a visita inesperada de Christian me proporcionou uma felicidade imensa, desmesurada, algo que eu não experimentava há tanto tempo que eu poderia passar horas a fio ouvindo as histórias dos lugares por onde ele havia passado, as pessoas que havia conhecido, as coisas que havia aprendido. Eu desejava, não, mais do que desejar, eu necessitava saber tudo sobre ele, desde o momento em que havia decidido seguir um caminho oposto ao meu.

Um dia após sua chegada, decidimos caçar juntos. Anos atrás, quando vivíamos juntos, havíamos tornado isto um hábito. Eu o convidara e ficara muito contente em saber que os velhos costumes não haviam morrido. Estávamos no centro caótico e frenético de Los Angeles, eu dirigindo tranquilamente com Christian sentado no banco ao meu lado, observando a rua aparentemente comum, porém não comum o suficiente aos seus olhos. Nem mesmo aos meus.

Poucas coisas podem ser comparadas com a caçada. A experiência estimulante de buscar e agarrar uma criatura viva. Talvez não pareça muito, mas este conceito em breve será mudado. E numa cidade como Los Angeles o que nós procurávamos existia em abundância. Era como caçar ursos próximos à uma colmeia. Uma espécie de regra da natureza selvagem a qual pertencem os humanos, eu diria. E, como era esperado, não demorou muito para que o sinal chegasse até nós.

Vi o meio sorriso de Christian quando quebrou o silêncio do carro ao dizer:

– Ouviu isto?

Vi em seus olhos a empolgação, a vontade quase incontida de sair do carro e percorrer o caminho até o que ele almejava por sobre os telhados das casas e dos prédios que nos cercavam. Vi a fome agoniante que marcava seu rosto marmóreo.

Assenti de leve com a cabeça antes de parar o carro defronte a uma loja, as portas fechadas àquela hora da madrugada. A rua estava relativamente quieta e escura o suficiente para incitar Christian a satisfazer seu desejo. Indiquei a porta do carro e disse, instigando-o:

– Vá em frente. Estou vendo que está com fome. Você está quase se parecendo com um monstro, sabia disto? – e ri, embora houvesse um fundo verdadeiro em minhas palavras. Havia olheiras escuras em suas pálpebras e sua pele parecia ter se colado de uma forma nada saudável aos músculos da face. Sua palidez era quase fantasmagórica e, caso cruzasse com um humano, não tinha dúvidas de que o pobre coitado correria na direção contrária à de Christian. O que me levou à uma dúvida que foi pronunciada antes que eu pudesse me conter: – Há quanto tempo não se alimenta, Christian?

– Seguir seu rastro não é algo que eu possa chamar de fácil, Cloud – admitiu ele me olhando de soslaio. Era quase absurdo, para não dizer cômico, como ele conseguia ter tanta confiança em si mesmo, mas me controlei para não rir. Conhecendo-o como eu o conhecia tive certeza de que isto causaria uma irritação disparatada de sua parte. – Não tive tempo para caçar com a frequência que gostaria.

– Hum... Entendo – disse apenas antes de continuar. – Bem, então pode ir. Eu o encontro em alguns minutos.

– Mas e você? – Indagou com ironia, uma das sobrancelhas claras erguidas. – Você não dá as costas a um tipo como este.

Suspirei de impaciência. Era realmente tão difícil compreender algo de tamanha simplicidade?

– Você precisa mais do que eu.

Christian me fitou por um segundo, primeiro com suspeita, depois com uma forçada compreensão antes de assentir e sair do carro batendo a porta. Só, no interior do automóvel, eu o observei através do para-brisas andar na calçada, as mãos no bolso do jeans como qualquer jovem. Rapidamente dobrou a esquina e desapareceu de vista. Sem mais poder me utilizar da visão, senti sua presença se afastando com uma rapidez cada vez maior. Ele estava correndo, a velocidade aumentando a cada segundo, impulsionada pela fome que o consumia. Lhe daria algum tempo para desfrutar do momento com privacidade então, sem pressa, saí do carro, acionei o alarme e comecei a andar pelo mesmo caminho pelo qual Christian havia percorrido.

Um disparo. Um disparo seguido por um grito de mulher. Era isto o que havíamos ouvido, não muito distante de onde estávamos. Exatamente o que procurávamos quando a fome é demasiadamente grande. Monstros, assassinos como nós, aqueles que espalham o terror sem clemência ou misericórdia. Estas criaturas de sangue impuro são as melhores, com as quais adoramos brincar exatamente como elas brincam com suas vítimas mortais. Aterrorizar aqueles que se acham maus, aqueles ínfimos seres humanos sem valor aos olhos da sociedade, é um hobby que adquiri desde minha transformação. Diferentemente de outros de minha espécie não sinto prazer em matar inocentes. Não posso dizer que nunca o fiz; isto seria uma mentira descarada. Sim, já matei inocentes, mas não sinto orgulhoso em dizê-lo. Eram pobres mortais que acabaram cruzando meu caminho por um acaso terrivelmente maldoso do destino em um momento de puro descontrole. Isto aconteceu com uma frequência maior do que gostaria de admitir nos meses que se seguiram a minha partida de Londres. Eu era um jovem vampiro descobrindo meus poderes e minhas fraquezas, completamente sozinho, vagando por terras e países desconhecidos, repleto de suspeitas, desconfianças e perguntas sondando minha mente inconstante e insone. Por vezes eu me assemelhava a uma criança órfã e impulsiva, e essa impulsividade me levou a atos como esses.

Estava refletindo sobre isto enquanto caminhava por aquela rua desconhecida e desinteressante em sua escuridão. Já haviam se passado alguns minutos desde que Christian desaparecera. Em seu caso já era mais que suficiente. Parei onde estava e olhei ao redor. Havia uma casa simplória ao meu lado; nenhum som vinha de seu interior. Completamente vazia. Com uma último olhar ao redor escalei facilmente a fachada alta da casa. Num instante estava correndo pelos telhados, me concentrando nos sons e nos cheiros, por mais sutis que fossem. Poderia captar a presença de Christian rapidamente se me utilizasse de minha habilidade de encontrar outros vampiros com a mente, mas isto realmente exigia muita energia. Recuperá-la sempre é uma questão de horas quando se está em estado de inanição, como eu estava. Caçar nestas condições não era algo aconselhável. Portanto, decidi usar o método mais difícil, porém mais seguro.

O cheiro de Christian era recente e o segui, indo em direção ao norte. Bem, não seu cheiro propriamente dito – nós estamos tecnicamente mortos, logo não podemos exalar odores, - mas o aroma suave de seu perfume, um rastro vívido que o vento trazia enquanto eu corria e saltava, meus pés batendo com precisão e ruídos abafados nos telhados. Sentia-me revigorado respirando o ar noturno, minhas roupas se enfunando com a velocidade, por vezes erguendo os olhos para o céu enluarado e sorrindo.

Liberdade! O que pode ser melhor do que esta sensação pura e indescritivelmente excitante? Esta felicidade simples e inexplicavelmente complexa para ser descrita por palavras humanas?

Mas fui distraído de meus devaneios. Estava muito próximo agora. Quase podia adivinhar os movimentos de Christian baseados nos sons que produzia. Mais alguns metros até finalmente encontrar o local. Uma casa. Um belo lugar, embora comum. O portão baixo, de ferro, estava aberto. Eu estava do outro lado da rua, ainda nos telhados, observando tudo do alto. Tudo parecia tranquilo e silencioso daquela perspectiva. Mais uma noite comum a não ser por um possível assassinato. Saltei em direção à calçada, o vento erguendo meus cabelos antes de pousar com naturalidade no chão. Um carro passou por mim, as lanternas proporcionando luz momentaneamente antes de desaparecer ao longe. Atravessei a rua, passei pelo portão e subi os degraus da entrada antes de abrir a porta. Entrei na casa muito cautelosamente antes de fechar a porta atrás de mim. Segui pelo hall antes de subir imediatamente pelas escadas que levavam ao andar superior. Gemidos baixos vinham de um dos quartos. Hum... cheiro de sangue...

Passei pelo corredor contendo a ardência que começava a consumir minha garganta; cheguei ao último quarto e parei no batente da porta, tentando compreender a cena caótica que se passava em seu interior. Uma mulher jovem estava encolhida num canto e sua aparência simplesmente me chocou; seu rosto estava banhado em lágrimas e ela parecia aterrorizada enquanto gemia baixinho. Primeiramente achei que estava abraçando o próprio corpo, mas, ao olhar com atenção, vi que o chão ao seu redor estava brilhando com o sangue que escorria de seu braço. Ela tentava estancar o sangramento apertando o ferimento. Quando deu por minha presença apenas uma palavra saiu de seus lábios trêmulos. Ajude-me.

Seus olhos vagaram para o centro do aposento e, se é que era possível, ela me pareceu ainda mais apavorada. Pude compreender o porquê imediatamente. Christian. Christian com os lábios grudados ao pescoço de um homem que parecia quase desacordado, os lábios frouxos e semiabertos enquanto ele apertava seus braços com força o suficiente para lhe quebrar os ossos... Não duvidei que ele já houvesse feito isto ou pior.

O cheiro de sangue era quase insuportável, impregnado no ar, em cada canto, entrando em meus pulmões e me torturando lentamente. Eu podia sentir o gosto daquele sangue, luminoso e tão intensamente vermelho naquele quarto escuro. Eu podia ouvir seu fluxo no corpo da pobre mulher, o coração disparado pelo pânico, as batidas vigorosas do órgão incansável apesar do ferimento. Como eu queria pular naquele pescoço delicado e penetrá-lo com minhas presas...

Com um esforço doloroso desviei minha atenção da mulher e vi Christian afastar os lábios da pele do homem antes de soltá-lo. Seu corpo se estatelou no chão à sua frente, caindo num ângulo repulsivamente distorcido; como eu temia seus braços estavam quebrados e, embora eu mesmo já houvesse feito algo semelhante, aquele tipo de cena nunca é agradável aos olhos. Ouvi Christian respirar profundamente; ele piscou algumas vezes, apertando os olhos como se estivesse momentaneamente cego. Estava se recuperando do êxtase. Seus lábios estavam úmidos e levemente rubros com sangue. Olhou para o cadáver à sua frente com repulsa antes de se virar para mim com um leve sorriso.

– Um pouco de ação sempre é bem-vinda, mas isto – disse indicando o quarto ao redor, - era a última coisa que imaginei encontrar esta noite.

– O que diabos aconteceu por aqui? – Perguntei, franzindo o cenho para a bagunça desordenada de móveis virados e para a mulher ainda no canto. Não nos olhava mais, talvez com medo – o que era perfeitamente compreensível; encarava os próprios joelhos com os olhos vidrados; não chorava mais. Estava em choque.

– Pelo que pude deduzir nós nos intrometemos em uma briga de casal, Cloud. – Informou-me com um risinho de diversão.

– E o homem? – Quis saber.

– Estava completamente bêbado. Tentou matá-la a tiros, mas não havia balas suficientes – e indicou-a com a cabeça. – Ele tem uma pontaria muito ruim, mas conseguiu fazer estragos suficientes.

– Posso ver. – Concordei em voz baixa. – Temos que ir embora. Logo a polícia estará aqui.

– Sim – ele concordou. – Pude ouvir um vizinho chamando a polícia a alguns minutos.

– E o corpo? Não pretende deixá-lo aqui, pretende? – Indaguei subitamente preocupado. Christian nunca fora muito cuidadoso e abandonar um corpo completamente exangue não era algo que eu descartaria tratando-se dele.

– Não se preocupe tanto. Vou me livrar dele ainda hoje. – Sorriu inocentemente para mim antes de se voltar para a mulher. – Mas antes...

Christian passou por mim e, com muito cuidado para não se sujar com o sangue que se espalhava pelo chão, ajoelhou próximo à pobre criatura encostada na parede e tocou seu rosto delicadamente com uma das mãos. Soube exatamente o que estava fazendo apenas pelo tom imperioso de sua voz, embora estivesse extremamente baixa. Os olhos da mulher estavam fixos nos dele, mas agora ela estava completamente embevecida por sua voz, assentindo como um zumbi a cada frase pronunciada.

Ele a estava hipnotizando, outra habilidade muito útil que vem com o dom vampiresco. Implantar falsas realidades nas mentes de mortais que casualmente ouvem ou veem mais que o necessário sobre nós é sempre de extrema importância. Somos parte da fantasia, pertencemos ao mundo sombrio e belo da literatura gótica, de filmes que entretêm milhares de amantes do esplendido mundo dos mitos. E assim devemos permanecer. Invisíveis para a tolerante e condescendente humanidade.

Ouvi o som de sirenes à distância, mas que se aproximavam rapidamente. Um segundo mais tarde Christian afastou a mão do rosto da mulher, que tornou a encarar o nada, e se levantou. Aproximou-se de mim e, respondendo à minha pergunta muda, disse:

– Disse a ela que seu marido fugiu quando ela o avisou que chamara a polícia. Ordenei que se esquecesse de nós.

– Ótimo – suspirei. – Agora, se não se importar, podemos? – Indaguei indicando a porta.

– Como desejar – murmurou com uma falsa circunscrição, que me fez sorrir e olhar para o alto, antes de se voltar para o homem abandonado.

Apesar de todo o estardalhaço que causara, pensei enquanto Christian o puxava para si com indisfarçado nojo, aquele era apenas um homem insignificante, pequeno e malcheiroso. Já me alimentara de muitas figuras que eu ousaria até mesmo chamar de ilustres, homens e mulheres que pensavam ter o mundo aos seus pés, tão sinistros quanto eu próprio, até mesmo piores em certas ocasiões... Mas aquele homenzinho era meramente ridículo. Imaginei o quanto Christian se divertira assustando-o antes de finalmente tomá-lo para si.

Com seu fardo macabro no ombro, ele passou por mim e saiu do quarto. Fiquei a olhar para a mulher; era como um pequeno animal ferido e indefeso, e, por um segundo absurdo, tive pena de sua figura desolada. Por um segundo absurdo, quis protege-la e ajuda-la... Quis envolve-la em meus braços e reconforta-la, dizer que tudo estava bem...

– Cloud? – Veio a voz interrogativa de Christian do corredor para me despertar de meu momento de insanidade. – Você vem ou não? Ou... não me diga que decidiu matar a mulher!

Com um último olhar para o quarto saí para encontra-lo imóvel no topo da escada. Sua expressão era um misto de incredulidade e diversão incontida, as sobrancelhas unidas e os olhos luzindo enquanto esperava minha resposta. Sabia perfeitamente que Christian tinha a consciência de que eu não era dado a assassinatos incoerentes.

– Deixe de ser idiota e vamos embora daqui – resmunguei irritado andando em sua direção.

Rindo como uma criança birrenta, Christian desceu as escadas aos pulos, os braços do homem balançando sinistramente em suas costas com o movimento. Tive o ímpeto de manda-lo parar imediatamente com aquela brincadeira, mas tive certeza de que isto seria mais um estímulo para piorar a situação.

Dirigimo-nos para a cozinha, encontrando lá uma porta que levava aos fundos da propriedade. Saímos da casa e, em questão de segundos, estávamos de volta aos telhados. Por vezes eu lançava um olhar para Christian, me seguindo alguns metros mais atrás. Radiante não era o suficiente para descrever sua aparência; sua pele adquirira um lindo e suave tom rosado, e a tensão que antes a fome impunha nas finíssimas linhas de expressão em seu rosto havia se desvanecido por completo. Havia um sorriso brando e permanente em seus lábios, agora tomados por um rubor intenso; seus olhos escuros haviam se transformado em poços de luz, ocultando a arca de mistérios que era a sua alma.

Este era o poder do sangue, que operava em seu corpo como um antídoto para a doença da inanição. Humano... era quase um humano que eu via ali, saltando pelos telhados como um gato selvagem, carregando o que sobrara de seu jantar no lombo.

O sangue que eu necessitava naquele momento. E, talvez por perceber isto, pouco tempo após sairmos da casa, Christian me chamou.

– Cloud?

– Sim?

– Não precisa me acompanhar. Posso me livrar disto sozinho. Você precisa caçar. – Afirmou ele, sem parar de correr.

Eu não queria deixa-lo sozinho, mas tive de admitir que ele estava com a razão. Eu precisava caçar. Urgentemente.

– Tem certeza que dá conta disto? – Provoquei-o, me referindo obviamente ao cadáver do homem que ele ainda carregava. Tivemos de saltar de um telhado para uma rua e correr pelo asfalto, antes de tomar impulso e voltar a subir nos telhados.

– Cloud, por que nós não fazemos o seguinte: eu me livro do corpo e você pode ir se...

– Está bem, está bem! – Interrompi-o rindo; diminuí o ritmo até parar e me voltar para ele. Seus cabelos estavam bagunçados pelo vento, o que apenas intensificava sua aparência rebelde, o que, por algum motivo, aumentava seu encantador ar adolescente. – Esperarei você no carro, no mesmo lugar. Não vou demorar e espero que você faça o mesmo.

– Estarei lá antes do sol nascer, isto é um fato. – Disse, piscando um olho irreverentemente antes de me dar as costas e prosseguir sua corrida. Observei-o ao longe até desaparecer com um sorriso bobo e inconsciente nos lábios. Era engraçado saber que aquele garoto presunçoso e irritante era uma das únicas criaturas que caminhavam sobre a Terra que possuía o poder de burlar minhas defesas, de despertar em mim aquela chama de felicidade espontânea e casta. Contudo eu conhecia a natureza de Christian e possuía a ciência de que logo ele partiria; por mais que eu estivesse repleto de alegria com sua presença, simplesmente não podia me deixar levar por meu amor. Deveria estar preparado para o momento em que partisse... Novamente...

Com este pensamento tomando boa parte de minha mente instável tentei captar sinais de vida aleatoriamente ao meu redor. Minha fome era enorme e sentir o cheiro do sangue fresco e quente da mulher no quarto fechado apenas aumentara a dor em minha garganta. Fechei os olhos onde estava, no alto de um prédio relativamente baixo e humilde. Pude ouvir o ruído tranquilo das respirações dos que dormiam despreocupadamente, alheios ao admirável e sedutor caçador que se postava sobre suas cabeças. Então a ideia se manifestou imediatamente diante de meus olhos; eu tentei, acreditem, eu realmente tentei repeli-la, porém a inanição, mais uma vez, berrou em minha mente e, desta vez, não pude ignorá-la.

Me amaldiçoei pelo o que estava prestes a fazer. Sinceramente, era uma atitude atípica, mas... bem, eu já fizera algo semelhante no passado. E ninguém sairia machucado. Pelo menos não permanentemente.

Luxúria por sangue.

Quem pode nos culpar? O desejo incontrolável que nos move para a morte de nossa alma imortal que atravessa as dores dos séculos, sempre impiedoso. Vítimas? Não, nunca fomos nem o seremos. Algozes? Tampouco. Testemunhas... Bem.... o júri ainda está para decidir. E ele não tem pressa de determinar.

Respirei fundo antes de me postar na beirada do prédio e olhar para baixo. Uma bela queda para qualquer um, definitivamente. Bem, eu sempre fui uma criatura pretensiosa então “qualquer um” não se aplicava ao meu estilo. Pulei com inegável graça e pousei no asfalto com um baque mudo, minha mão de dedos pálidos no chão a minha frente. Levantei-me, passei os dedos pelos cabelos para tirá-los dos olhos e, altivo, comecei a caminhar. Passei por algumas ruas silenciosas antes de finalmente encontrar o que me despusera a procurar. Um jovem surgiu de uma rua lateral e, sem me notar, continuou caminhando apressado a uns vinte metros à minha frente. Um jovem saudável e cheio de vida. Dei um pequeno sorriso de deleite. Perfeito.

Continuei seguindo-o em silencio, escondendo-me de suas vistas com facilidade. Não parecia ser muito inteligente, constatei. Andar desacompanhado àquela hora da noite numa cidade como Los Angeles era, de longe, uma das coisas mais estúpidas que alguém poderia fazer. Vestia-se muito bem, e comum não combinava com seus modos pelo pouco que pude concluir àquela distância. Decididamente ele não estava acostumado a andar só; seus passos eram incertos embora tentassem ser firmes e olhava para os lados como se a qualquer momento algum monstro fosse se materializar da escuridão e atacá-lo. Humor negro, eu sei; não me culpem por isso, é a força do hábito.

Então, de repente, ao remexer nos bolsos da calça, acabou por derrubar algo que reconheci como documentos ou dinheiro. Desajeitado, o rapaz se curvou para apanhar os objetos. Foi minha deixa. Em um segundo me postei ao seu lado, curvando-me para, educadamente, ajudá-lo a recolher seus pertences.

– Ah! – Ele exclamou, assombrado com minha presença repentina, erguendo o rosto para me encarar.

Lentamente, para não apavorá-lo ainda mais, apanhei sua identidade e li o nome ali escrito.

– Desculpe-me se o assustei – disse em minha voz mais aveludada, um sorriso confiante ao encará-lo.

Era curioso... Aquele rapaz não era mais do que uma criança em um corpo de adulto. Me fitava com indisfarçado medo, mas havia uma interesse tão inocente naqueles olhos amendoados que cada vez mais aumentava seu ar infantil, que me deixara pasmado. Os lábios pequenos e cheios estavam entreabertos; seu rosto, sem traços firmes, delicado e doce demais para isto, estava começando a suar frio. Eu quase ri de sua reação, mas tive certeza de que se fizesse um movimento mais amplo que o normal ele correria sem pensar duas vezes, e eu teria de assumir uma postura pouco cordial.

Com lentidão, estiquei minha mão para devolver-lhe seus documentos. O garoto piscou, engoliu seco e passou a língua entre os lábios róseos; olhou para mim e em seguida para os documentos que eu estendia-lhe, antes de apanhá-los com os dedos trêmulos.

– O-obrigado – agradeceu o garoto. Uma voz tão meiga e suave quanto sua aparência infantil. Não contive o sorriso que se formou em meu rosto. – Você me assustou.

– Me desculpe novamente. – Murmurei. – Você parece estar perdido.

– Eu estou bem! Não estou perdido! Eu... – mas o que ia dizer em seguida se perdeu, pois, pela primeira vez, percebi, ele estava prestando atenção em mim, nos detalhes de minha natureza que se sobressaíam devido à falta de sangue. Eu não queria causar nenhum mal àquela criança perdida; contudo, não podia mais esperar. Sentir o aroma doce e pungente que vinha de seu corpo, ver o rubor na pele tenra e captar o calor macio que chegava até mim... Estava tornando-se insuportável.

E, antes que o garoto pudesse dar um passo ou simplesmente pensar em correr, eu o prendi em meus braços, num abraço do qual jamais poderia escapar. Àquela proximidade, senti as mínimas mudanças em seu corpo com o meu ataque. Sua respiração, já acelerada, tornou-se desigual; seu coração disparou no peito, que subia e descia incontrolavelmente, uma bomba prestes a explodir com tamanha força. Uma força que me chamava e atraía-me para si, hipnotizando meus sentidos dolorosamente afetados.

Mais cedo ou mais tarde ele deixaria escapar um grito, portanto tapar a boca de minhas vítimas era um velho hábito; eu o adquirira logo após perceber o estardalhaço que elas causavam, especialmente em um espaço tão curto de tempo. Pressionei meus dedos em seus lábios pequenos com força, mas ainda assim procurando controlá-la. Eu queria machucá-lo o mínimo possível, talvez por ser uma criatura tão frágil, talvez por ser tão jovem... Entretanto, o que importava é que não tinha o desejo de causar-lhe qualquer dor que fosse. Mas havia algo anormal...

O garoto estava imóvel. Sim, absolutamente quieto em minhas mãos, permitindo-me fazer o que quer que fosse com ele. Suava frio e tremia incontrolavelmente, mas inda assim permanecia inerte em meus braços. Por Deus o que havia de errado com ele!? Todos os outros antes haviam berrado e esperneado, lutado por suas vidas, mas ele não... Ele havia se entregado...

Assim como eu.

Toda aquela situação estava me atormentando, desvirtuando minha mente e minha concentração para um mundo que já não mais existia. O mundo em que eu ainda era humano, e Alec me tomava como seu contra minha vontade. A angústia assolou-me de repente e, num segundo de fúria, perfurei seu pescoço pálido sem hesitar. Seus músculos se retesaram com a pontada de dor tão conhecida minha; a respiração falhou... e o sangue irrompeu dentro de minha boca ressequida. Deixei que descesse e irrigasse cada sôfrego vaso sanguíneo, se espalhando e formigando até atingir a pele com sua insigne força, acendendo em mim a chama da vida que ele comportava.

Meu coração batia mais lentamente que o seu, que se apressava em me alimentar com seu alento. Eu apertava os olhos e o leve ruído de minha respiração, carregada pelo esforço de sugar aquele líquido valioso, enchia meus ouvidos. Eu tinha de parar. Tinha de parar ou mataria o garoto, tudo o que eu não ambicionava e, tenho de admitir, temia. Com um esforço incomensurável, obriguei-me a afastar os lábios de sua pele maculada.

Naturalmente, vi ao afastá-lo, segurando-o pelos ombros, ele tornar-se macilento; seus olhos castos estavam preenchidos pelo medo, mas também, e principalmente, pela dúvida. O que é você, o que está fazendo comigo? ...Na realidade, enquanto o observava com uma tristeza crescente, percebi finalmente o que havia naquele lindo garoto que me encantara. Nada mais simples do que o seu olhar. Aquele olhar... era o mesmo que fitar um bebê. Seus olhos dóceis estavam sempre carregados de inocência, porém, simultaneamente, eram cheios de uma malícia e uma curiosidade infantil, desejando captar até o mais insignificante detalhe do mundo reluzente à sua volta. E nada parecia ser entediante diante de seu ponto de vista... tudo possuía um valor incrível e deveria ser estudado...

E, no momento, o rapaz exercia sua fascinação sobre mim. Por mais que estivesse amedrontado, simplesmente não se permitia desviar a vista de mim, pulsando com seu sangue. E, sem mais poder suportar ser estudado daquela maneira, soltei-o e deu alguns passos cambaleantes para trás. Meu cérebro pareceu estar girando por alguns segundos com este movimento; era a simples ação do sangue, circulando impaciente por meu organismo antes sedento. Pousei as mãos nos joelhos e baixei a cabeça, procurando me acalmar, ou, mais precisamente, acalmar meu corpo. Respirei fundo, sentindo o ar preenchendo meus pulmões com força, antes de erguer o rosto e deslizar os dedos por meus cabelos. Eles sempre voltavam de encontro ao meu rosto, as mechas lisas caindo na altura do queixo; no entanto era um trejeito charmoso, e eu simplesmente não conseguia abandoná-lo.

Voltei a observar o rapaz, limpando o suor que brotava acima de meus lábios e sorri amargamente. Eu tinha de acabar imediatamente com aquilo. Eu precisava sair dali, ir embora o mais rapidamente possível. Por quê? Bem... Pelo simples fato de que eu estava quebrando a Regra de Ouro dos mortos-vivos. Minha regra... Contudo, eu acreditava que todos, ou ao menos os minimamente sensatos, deveriam segui-la.

Eu estava me envolvendo com uma vítima. Eu estava me permitindo ter sentimentos por aquele pobre filhote assustado e perdido. E a última vez que isto acontecera, o final fora Christian... Christian pálido e impedido de voltar a ver a luz do dia.

E, com esse surto de memória acordando-me para a realidade, dirigi-me resoluto até o garoto, que voltou a tornar-se imóvel, e segurei seus braços; mesmo inerte senti seu corpo estremecer quando o toquei novamente. Ri com a ação involuntária, mas ao mirar diretamente seus olhos alarmados, procurei tornar-me o mais intenso possível.

– O que é você? – Ele sussurrou com uma voz fraca e assombrada.

– Eu sou humano. – Afirmei com um tom claro e imperioso. Eu podia ver os efeitos de minha voz em seu rosto e em seu olhar vidrado. Era agora nada mais do que meu pequeno zumbi. – Apenas humano, e nada anormal aconteceu esta noite. Nada. Você agora irá para casa sem desviar do caminho. Entende o que estou falando?

Um segundo depois ele piscou, absorvendo a informação, e assentiu uma vez.

– Ótimo. – Disse por fim. Soltei seus braços e me afastei. Ele permaneceu parado, contemplando o vazio. Completamente hipnotizado, pensei com tristeza. Pouco tempo depois olhou para os lados, como se estivesse se recordando de onde estava; então me deu as costas e começou a andar, aumentando o espaço entre nós, apático. Não demorou muito para que desaparecesse de vista. E, sem mais nada a fazer naquela rua mal iluminada e vazia, também parti.



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