Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 16
A Raposa à Espreita


Notas iniciais do capítulo

Caros Leitores! Sinto muito pela demora!

Mas aqui estou com mais um capítulo! Irei postar com mais responsabilidade de agora em diante xDDD

Espero que gostem, comentem e, principalmente, opinem!

Boa leitura a todos!



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A Raposa à Espreita

            A saleta estava coberta por dois dedos de poeira, o cheiro de mofo cobria o pequeno cômodo como uma cortina de maus presságios, enquanto o vento tímido entrava pela janela, atiçando as cortinas e levantando uma pequena nuvem empoeirada. O silêncio era, provavelmente, a coisa mais viva no ambiente, pois o homem sentado na poltrona de couro cru, o único móvel da saleta, tinha uma expressão de morte, ou quase isso.

            As paredes estavam cobertas por um papel de parede branco encardido com estampas de flores e beija-flor, o que contrastava com o lustre de ferro escuro coberto de teias. A porta estava semicerrada, e dava no corredor da casa, até o momento, apenas um mistério.

            Sobre o seu colo uma lamparina de luz rala tentava, inutilmente, abraçar o cômodo, mas a escuridão era ainda mais persistente. A iluminação revelava o rosto cansado do homem. Magro, cabelos espessos e volumosos em uma cascata grisalha que chegava aos ombros. Seus olhos negros pareciam ainda maiores diante da pele flácida e macilenta como argila desbotada. Rugas brotavam das pontas de seus olhos e percorriam toda a extensão do rosto, como uma tatuagem em baixo-relevo.

            Suas mãos trêmulas agarraram a lamparina, erguendo-a na altura do nariz. Ganhou fôlego e, num sopro breve e frio, atiçou a chama. O crepitar suave e amarelo se converteu em uma chama arroxeada, emitindo uma luz gelada e sinistra. Até aquele momento o homem não parecia satisfeito em fazer o que estava fazendo.

            - Sr. Galahan – a voz esganiçada do homem foi direcionada a chama que, respondendo às palavras, rodopiou, emitindo uma fumaça negra e densa que ganhou o teto com uma rapidez extraordinária.

            A brasa recebera uma ordem e, em resposta, ela trouxe o intento do homem de aparência quase morta. A fumaça negra acima de sua cabeça se tornava cada vez mais volumosa.

            Ele não pôde quantizar o tempo exato, pois, naquele instante, a atmosfera se tornara atemporal, uma sensação de transe, em que tudo a sua volta parecia rápido demais, mas havia uma insinuação de completa imobilidade em cada movimento da nuvem, como se tudo estivesse estático, estagnado. Não teve chance de apreciar o momento único, pois a voz alertou-o.

            - Sanguinetti... Sanguinetti...

            O sussurro sibilante veio do nada, talvez das paredes, ou da própria fumaça que acabara de ser conjurada. Era difícil saber, uma vez que a voz era apenas um eco persistente que retumbava em cada centímetro cúbico de ar.

O homem engoliu em seco, reconhecendo o tom severo da voz já conhecida.

- Sr. Galahan... Ainda não consegui a chave que o senhor queria, mas...

            - Estou cansado das suas desculpas miseráveis, Sanguinetti – a voz ecoou, furiosa – estou fazendo tudo praticamente sozinho! Talvez eu tenha falhado em libertá-lo!

            - Não, meu amo! Não diga isso! Não falharei mais! – a voz do homem ganhou tons mais vivos, porém apavorados – farei como mandou. Eu prometo.

            Não houve resposta de imediato. Sanguinetti se deixou levar pela extasia do momento, sentindo-se maravilhado pela sensação trazida com a nuvem, porém apavorado com a ameaça de Northon Galahan.

            - Não importa... Pelo menos não ainda... Você descobriu qual Literadouro foi lacrado? – perguntou a voz.

            O homem pigarreou tentando recuperar um tom mais respeitoso e formal.

            - Sim, Sr. Galahan. Pertence a um estudante colegial de Manhattan. Aquele garoto que carrega o seu nome.

            Um suspiro contido revelou a frustração de Northon Galahan diante daquela informação.

            - Lacrado? Como isso foi possível? Você, ao menos, teve a decência de verificar? – a voz parecia interessada e igualmente irritada.

            - O cadeado de prata, mestre – gaguejou o homem - com as iniciais S.L... Fui à escola para verificar, e ele estava lacrado. Não há nada que o faça ceder...

            Houve um breve silêncio, onde toda a tensão atravessou a testa enrugada e suada de Sanguinetti.

            - Selum Literata. – a voz sibilante protestou - Provavelmente um artefato La Fay. Eu seria capaz de apostar meu passaporte para a Terra que Munphus está por trás disso... Aquele velho comedor de livros!

            - O que devo fazer, Sr. Galahan?

            - Nada, a respeito. Com certeza já perdemos esse Inspirado para aquele velho... Charlie Galahan... Uma triste perda...

            O tom de voz semi-oculto na voz de Galahan revelava que, de fato, perder aquele Inspirado era frustrante. Havia, inclusive, uma insinuação de preocupação paterna, como se Charlie Galahan e Northon Galahan partilhassem mais do que um simples sobrenome.

            De súbito, a voz de Northon recomeçou o diálogo:

- Você conseguiu prever o movimento dos Emissários?

            - Não, senhor... – o medo fora restaurado na voz de Sanguinetti – tem sido difícil, entenda. O Inspirado que conseguimos, Alexander Castle, ele... É um insubordinado! Fica evocando aparições a torto e a direito. Não me obedece!

            - Aquele moleque... – Galahan engasgou-se na própria fúria – assim que eu sair desse maldito Vazio, ele será o primeiro a sentir a minha indignação. E se não começar a fazer o seu trabalho, Sanguinetti... Você será o próximo!

            Sanguinetti tentou dizer, mas o medo travou suas cordas vocais, ele engasgou nas próprias palavras. Precisou respirar em silêncio, tentando recuperar o pouco traço de vida que sobrara em seus ânimos para continuar a conversa nada amistosa.

            - Ainda não deram por falta da Voz do Vazio, mestre? – perguntou Sanguinetti.

            - Claro que não, ou eu não poderia ter essa conversa com você, seu inútil! Qaaze ainda não sabe que eu a roubei – falou Galahan, mostrando-se muito orgulhoso – se eu soubesse o quão idiota são aqueles Guardiões, eu teria tentado isso muito antes.

            - Isso é bom, mestre. Muito bom – Sanguinetti arriscou um sorriso, mas desistiu quando percebeu que isso poderia lhe custar mais força de vontade do que poderia gastar.

            Houve mais um momento de silêncio onde, talvez, Galahan estivesse tentando recuperar o fio da meada, o ponto da conversa que tomaria rumos definitivos.

            - Você precisa encontrar um híbrido – avisou Galahan – você não tem muito tempo. Eu já tenho a Voz do Vazio, enganamos Zoakros com a “troca equivalente” e, se encontrarmos um mestiço, fruto dos dois mundos, antes da mudança de estação, conseguiremos a chave para despertar o Vazio... Mal posso acreditar do quão perto estamos!

            A fumaça começou a fraquejar, vencida pelo vento que começava a assoprar com mais força pela janela.

            - Preciso me retirar agora, Sanguinetti... Lembre-se precisamos de mais semi-vivos. Só assim o mestiço será eficiente. Preciso de mais aparições, não falhe dessa vez, Sanguinetti. Ou eu vou pulverizá-lo.

            A voz se dissipou com a fumaça, a chama roxa retrocedeu, retomando a cor alaranjada natural. Sanguinetti, aliviado, pôde respirar, percebendo os primeiros sinais de sua pele se corar novamente. Sua vida começava a ser restaurada.

            Houve um momento, um mísero e desprezível segundo, em que Sanguinetti desejou correr. Seus olhos revelaram uma luz de esperança que não tardou a extinguir, morta pela sua triste realidade. Ele estava preso ao impiedoso Galahan.

            Sanguinetti levantou-se da poltrona, caminhou até a porta e encostou-a, trancando logo em seguida. Caminhou pelo assoalho de madeira que rangia em resposta aos seus passos cheios de cautela. O homem agachou, levando as mãos ao assoalho. Seus dedos agarram uma tábua velha solta. Removeu-a, dando espaço a um pequeno compartimento secreto abaixo do chão. Enfiou sua mão magra dentro do buraco, tateou um bocado até encontrar o que procurava. Finalmente, depois de sua busca incessante, encontrou.

            Puxou, de dentro do buraco, um objeto quadrado e escuro. Era uma caixa forrada com couro preto, com letras impecavelmente escritas “Confissões do Andarilho do tempo” e, logo abaixo, a assinatura de Northon Galahan. As palavras escritas em vermelho brilharam imponentes, ainda que a luz fosse insuficiente para refletir qualquer objeto. 

            Sanguinetti removeu a tampa da caixa, e vislumbrou um pequeno maço de folhas amareladas com cheiro de antiguidade. Tateou algumas das páginas avulsas, em busca de seu próximo objetivo. Encontrou uma página marcada com os dizeres “Os Perigos Descobertos na Ducentésima Trigésima Sétima Viagem”. A data era marcada do século III, uma viagem feita ao passado pelo Andarilho do Tempo. Sanguinetti estremecia toda vez que encarava aquele amontoado de papeis, uma mescla de excitação e receio. Tudo o que estava escrito ali eram algumas das anotações detalhadas das viagens do viajante, mas era perigoso demais manipular tanto conhecimento sem sabedoria. Era tudo o que Hiker, o Andarilho do Tempo, havia confidenciado à Northon, na época em que esteve preso.

            Pegou, enfim, a parte que tanto queria. O subtítulo estava escrito em garranchos, mas ainda era legível. “O Despertar do Vazio, como fazê-lo?”.

            Sanguinetti começou a ler, absorto, embora já tivesse palavra por palavra decorada em sua mente.

            Hiker, o único capaz de viajar no tempo, me contou muitos segredos, coisas com as quais nenhum homem saberia lidar. Eu, é claro, tenho minha lucidez intacta, sei o quão valiosa são cada uma das informações.

            O Despertar do Vazio consiste, basicamente, em seguir uma linha lógica de passos, mas devem ser certeiros e impecáveis, ou todo o plano cairá por terra. Não apenas isso, como também, uma única falha pode resultar na condenação eterna daquele que tentar despertar o Vazio.

            Não preciso de muito, mas irei me arriscar demais. Não posso fazer isso sozinho, mas conheço alguns que podem me ajudar, muitas pessoas me devem favores. Farei promessas de grande poder àqueles que me apoiarem. Muito em breve será chegada a hora.

            O primeiro passo consiste, basicamente, em adentrar os domínios do Vazio. É a parte que mais temo, pois me confinar em um lugar tão asqueroso implica em deixar, do outro lado, uma pessoa de minha inteira confiança... O problema é que não consigo confiar em ninguém.

            O segundo passo é a abertura de Literadouros. Segundo Hiker, muito em breve os Literadouros serão lacrados para sempre, pois a lei que rege os mundos assim determinaria. Quando isso acontecesse, o Despertar do Vazio não poderia mais acontecer... Foi por isso que consegui extrair algumas verdades de Hiker. Existe um jeito, único e complexo, de se abrir um Literadouro. Será essa a tarefa daquele em que eu confiar.

            O Terceiro passo consiste em ludibriar os três Guardiões do Vazio. Segundo Hiker, existe uma antiga crença naquele lugar inferior. Segundo a lenda, os mares do Vazio são habitados por sombras vivas, conhecidas por “devoradoras de espaço”, e são obedientes àqueles que se mostram sagazes e astutos. No Vazio, Zoakros, Qaaze e Krak são os mais astutos entre todos aqueles seres inferiores. Mas se, de alguma forma, eu conseguir enganá-los, tirar alguma vantagem sobre o trio, as sombras serão subordinadas a mim. O que implica o quarto passo.

            Para o quarto passo, preciso de semi-vivos. Os guardiões são tutores dos semi-vivos, criaturas parecidas com zumbis que nascem inexplicavelmente, simplesmente brotam da terra como batatas. As sombras podem viajar pelas frestas dos Literadouros e pelo imaginário dos Inspirados. Com isso, posso mandar semi-vivos para o mundo convencional.

            O quinto passo também só pode acontecer se o quarto acontecer do forma ideal. Aquele a quem eu confiar deverá encontrar um híbrido, um mestiço concebido da mistura entre dois mundos. Ele é a chave.

            Hiker me disse que muitos Literadouros abertos poderiam colocar em risco o equilíbrio entre os mundos. Acho que sei o que fazer com isso.

            Hiker se recusa a me contar o resto. Ele tem duvidado de minhas intenções nesses últimos dias. Acho que vou me livrar dele.

                                                                                  Northon Galahan.

            Sanguinetti encarou as palavras escritas com uma letra impecável. Era uma caligrafia bela e delicada, como se escrita por mãos hábeis de um escrivão experiente medieval. Focou sua atenção em uma lista, a tão esperada. Hiker, O Andarilho do Tempo, acabara revelando segredos perigosos que, nesse momento, Galahan estava trilhando.

            A lista estava intitulada “Coisas Que Ninguém Nunca Deve Fazer”. Havia uma viva ironia naquelas palavras, que sobreviveram o passar dos séculos. Sanguinetti deixou os pensamentos se ajustarem em sua mente.

            Northon precisava das sombras, mas, para isso, foi preciso enganar os três Guardiões, o que, obviamente, já fora feito. Os semi-vivos já haviam sido providenciados, pensou o subordinado. Com isso, faltava apenas o híbrido, o fruto da mistura entre seres de espaços diferentes. 

            Não havia mais nada escrito. A folha estava rasgada pela metade, privando Sanguinetti de conhecer todos os outros passos para se abrir o Vazio. Sabia que Northon escondia muito mais do que queria revelar. Não conseguia entender porque Galahan insistia em atacar aparições usando as sombras. Havia muito mais do que seu mestre queria revelar. O mais intrigante era o jovem Charlie Galahan. Qual era o seu papel em toda a trama minuciosamente elaborada por Northon, Sanguinetti não sabia, mas temia não significar uma coisa boa para sua própria existência. Pior, a maneira como Northon havia ludibriado os três Guardiões era um segredo que o próprio Galahan reservava a si mesmo. Uma mente ardilosa como a de Northon era algo a se preocupar.

            Sanguinetti ainda estava absorto em pensamentos, no momento em que aconteceu...

            BUM!

            Num estrondo, a porta da saleta se abriu, de forma nada sutil. Ela se desprendeu das dobradiças como se engolfada por um tufão de ar violento, sendo arremessada, arrebentando na parede. Sanguinetti saltou para trás, apavorado, diante do ataque surpresa. Encarou, lívido, um vulto negro que se mantinha imóvel no portal. Prendeu a respiração, enfiando as folhas com discrição na caixa e recolocando-a no buraco do assoalho. Estava esperando o próximo ataque.

            - Você é um cagão, Sanguinetti – uma voz jovial e debochada saiu da boca do vulto.

            A figura se aproximou, permitindo que o pouco brilho da lamparina exibisse o rosto do recém-chegado. Era um garoto de seus vinte anos, com cabelos louros espessos que reluziam diante da luz da chama. Seus olhos eram negros como a própria escuridão, seu rosto quadrado era a moldura ideal para lábios finos e hostis, um nariz curvo e orelhas ligeiramente maiores. As sobrancelhas eram apenas fios louros discretos sobre o contorno dos olhos.

            Sanguinetti não tardou a reconhecer o garoto.

            - Alexander! Seu insolente!

            O homem atirou a tábua do assoalho contra o garoto. Alexander nem ao menos se moveu, simplesmente apontou para o objeto com o dedo indicador, fazendo a tora de madeira estremecer no ar.

            Já não era mais uma tábua. Em seu lugar estava um lenço de cor amadeirada que pousou suavemente sobre os pés do garoto.

            - Você é um imbecil, Sanguinetti. Sabe muito bem que precisa fazer muito mais do que isso se quiser me acertar.

            O garoto deu uma gargalhada, divertindo-se com a frustração do homem ajoelhado no canto da saleta. Alexander tocou na porta aos estilhaços e, rapidamente, ela se refez. As farpas retornaram aos seus lugares, como agulhas costurando os cantos da porta, enquanto a maçaneta se restaurava no ar, desamassando o metal e retomando o brilho original, assumindo, depois de pronta, o seu lugar na fenda do extremo da superfície de madeira. Reformada, a porta dançou até o seu posto original, prendendo-se nas dobradiças. Estava como nova, inclusive limpa.

            Sanguinetti ainda não havia se acostumado com as habilidades do Inspirado prepotente. Obteve o controle sobre o elemento de forma muito rápida, comandando com maestria os minerais, a madeira e a rocha. Era uma arma poderosa.

            - Vejo que você falou com o tal Galahan... – murmurou Alexander, abaixando-se para segurar a lamparina e, com curiosidade, encarava a luz da pequena chama.

            - “Tal Galahan”... Quanta insolência. Você não tem ideia do que ele é capaz, seu delinqüente!

            Alexander soltou um riso debochado, nem mesmo se deu ao trabalho de replicar. Assoprou a chama da vela e, como num salto ensaiado, a brasa saltou de seu posto, girando no ar como uma espiral de fogo, quicando no assoalho e pousando no canto da sala. A chama estremeceu, aumentando o calor, até, finalmente, assumir a forma de uma grande fogueira, que consumia o papel de parede e as tábuas mofadas do chão.

            - Não seja imbecil! – gritou Sanguinetti, atirando-se contra o buraco no chão e puxando a caixa para perto de si – não podemos perder isso! Sr. Galahan ficaria encolerizado!

            Alexander revirou os olhos, entediado. Dr. Sanguinetti não aceitava tamanha insubordinação de um jovem inexperiente, mas não tinha nenhum recurso bom o suficiente para repreender um Inspirado rebelde. Um dos maiores defeitos de Northon, seu criador, foi não ter lhe concedido nenhum atributo significativo.

***

              Pela janela empoeirada, os olhos âmbar e astutos de uma pequena raposa assistiam à discussão dos dois indivíduos. Havia algo de racional e extraordinário naquela criatura, algo que não existia em nenhum outro ser de sua espécie. A raposa saltou do beiral da janela e correu em disparada pela floresta, sumindo de vista ao ser engolida pela noite.


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Notas finais do capítulo

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