Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 17
Os Doze Emissários


Notas iniciais do capítulo

Mais uma vez, acabei demorando para postar. Sinto muito, pessoal. O Cursinho tem me tomado tempo, mas não me esqueci da história, muito menos irei deixar de escrevê-la.
Espero que apreciem esse capítulo xD

Boa leitura!!



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Os Doze Emissários

            Quando ele, finalmente, acordou, estava na cabana de Tharsos outra vez. Levou um tempo para conseguir abrir os olhos e entender o que estava a sua volta, assimilando o amontoado de cores e sons começavam a fazer sentido ao seu cérebro. A garota ruiva estava sentada ao seu lado. Havia um olhar cansado em Helena, um ar preocupado, mas ela se empenhava em não demonstrar. Pyrah estava a um canto da sala, completamente inexpressiva.

Charlie teve um vislumbre de lembranças. Recordou o momento em que fora apanhado pelo dragão, o instante em que as patas do animal cravaram sua pele. Não se lembra de sentir dor, o que era um alívio, mas sentia-se usado pelo leprechaun. Fora jogado em uma jaula para enfrentar um dragão, munido apenas com uma moeda e um poder que não sabia usar. Charlie logo concluiu que o resultado era previsível. Ficaria surpreso com ele mesmo se pudesse sair daquele lugar por si só. Lembrou-se de ouvir um grito, uma voz feminina esbravejando “entoa”, enquanto o dragão era forçado e despejar o garoto no chão. Depois da queda, não houve nenhuma outra fagulha de pensamento, até finalmente acordar na cabana.

Charlie sentiu a textura da palha que lhe servia de leito acomodar seu corpo suavemente, uma sensação agradável, se comparada à impressão que ele tivera antes, quando a pele parecia ter sido desgarrada dos ossos com a força animalesca do dragão. O rapaz varreu por completo suas lembranças e pensamentos, o que lhe concedeu a chance de ouvir os gritos ao fundo, facilmente reconhecidos como os gritos de Munphus.

            - Como foi fazer uma idiotice dessas, Tharsos! Colocá-lo de frente a um dragão? Ele mal consegue romper um único nó, como espera que ele enfrente aquele monstro?

            - Hey, não me culpe. Eu não o joguei na jaula, ele foi com as próprias pernas!. Aliás, ele conseguiu repelir o fogo. Não se preocupe, ele não vai virar petisco de dragão, velho amigo.

            - Não me velha com essa de “velho amigo”, seu anão patife e miserável!

            - O que foi que disse? – Tharsos socou alguma coisa – Como se atreve? Anão? Era o que me faltava!

            Charlie fechou os olhos, tentando afastar as vozes, mas eram irritantes demais para serem ignorados.

            - Não adianta se fingir de morto – brincou Helena – eles sempre discutem.

            Charlie abriu os olhos por completo, encarando Helena. A garota acabara de cobri-lo com um fino lençol cor de creme.

            - Se eles continuarem gritando, não vou precisar fingir de morto – queixou-se Charlie, enfiando a cabeça debaixo do lençol.

            Helena riu. Pegou uma caneca cheia de um estranho líquido fumegante e entregou ao rapaz.

            - São ervas cultivadas pelo próprio Tharsos. Fará muito bem a você.

            Charlie fez menção de se levantar, mas, diante do esforço, sentiu uma fisgada nos ombros. Ele notou uma fina camada vermelha se formando sob as ataduras que envolviam seu tronco, assim que o lençol escorregou para baixo.

            - Merda... Dragão ordinário.

            - Eu sei – Helena removeu uma atadura – deixe-me trocar isso.

            Quando a garota removeu os curativos Charlie percebeu que tinha três buracos pouco abaixo dos ombros, mas podia jurar que deveriam ser maiores.

            - Tharsos é talentoso em medicina – comentou Helena, percebendo a surpresa de Charlie – precisava ver como estava antes.

            Helena trocou as ataduras, passou uma pasta amarelada nas feridas e, repousando sobre a úlcera duas folhas amareladas que lembravam as de uma parreira, colocou uma nova atadura, limpa com um perfume leve de xampu.

            - Charlie... – Helena olhou para trás, Pyrah estava ocupada vagando em seus próprios pensamentos – ela tem algo com isso?

            - Não. – Charlie falou prontamente – ela se ofereceu a me ajudar, mas aquele nanico ordinário não deixou.

            - Preciso te contar uma coisa – ela disse – mas não aqui.

            - Vamos para outro lugar, então – ele pediu – acho que posso me levantar sem problema.

            Helena hesitou por um segundo, mas cedeu quanto teve certeza que o amigo estava em condições.

            Charlie levou algum tempo, mas conseguiu caminhar até a parte o exterior da cabana. Atravessaram a pequena porta dos fundos e alcançaram o jardim exótico do leprechaun, onde as gotas de água salgada e o cheiro de mar chegavam sem impedimento. Charlie e Helena sentaram-se próximos a uma pequena parreira, onde as uvas ainda exibiam tons de verde. O rapaz sentiu a ferida se retesar por baixo das ataduras, a início tentando reprimir o uivo de dor, mas não conseguiu por muito tempo. Ainda que o ferimento estivesse razoavelmente estabilizado, a dor era insuportável e, por vezes, o garoto gemia pateticamente, corando logo em seguida quando Helena vinha ao seu amparo.

Já haviam tomado uma boa distância enquanto os outros permaneceram na cabana. Helena conduziu Charlie até o fim da cerca, onde podiam ver as ondas se quebrarem sobre o rochedo de pedras porosas.

            - Charlie... Preciso que tome cuidado com Pyrah... – Helena foi direta, sem rodeios. Sua voz estava cheia de ânsia.

            Charlie fitou a garota, a princípio surpreso.

            - Ela não me parece ser perigosa, Helena. Era, inclusive, me parece tão...

            - Encantadora? – replicou Helena com voz de desdém – é claro que parece! Faz parte daquela natureza repugnante.

            Charlie a fitou, confuso.

            - O que quer dizer com isso?

            Helena pensou bem no que dizer. Não sabia, ao certo, como começar, mas, pela sua expressão, não parecia ser nada fácil. Manteve-se em silêncio por um breve segundo, como se degustasse as palavras, tentando encontrar o sabor certo. Charlie notou o conflito de idéias perpassando a mente da amiga.

            - Ela é... Ela não é como nós. – avisou – não é... Humana.

            Charlie estreitou os olhos, confuso.

            - Você sentiu alguma coisa por ela? Talvez, uma afinidade? – Perguntou a ruiva, incerta se era essa a pergunta que gostaria de ter feito.

            Charlie não sabia o que responder. Como faria isso diante da garota que sempre o fazia perder o fôlego? Obviamente, ele sentira sobre Pyrah uma sensação empolgante, como se a Emissária do fogo pudesse ser uma aventura a ser considerada. Esse pensamento logo foi espantado pelos seus sentimentos por Helena. Não era amor, obviamente, mas uma promessa, ainda maior do que sentia quando estava ao lado de Pyrah.

            - Bem... Sim, de certa forma. – admitiu Charlie – mas de um jeito diferente, não é como...

            - Aquela vagabunda!

            O rapaz encarou a amiga, confuso. Não entendia em que parte Pyrah poderia ter culpa nisso. Helena, compreendendo o olhar do amigo, tratou de explicar.

            - Charlie... Ela é híbrida! Pyrah é filha de sereia!

            Naquele momento Charlie percebeu que aquela coisa de “já vi e ouvi de tudo” não funcionava. Jamais conseguiria ouvir ou ver alguma coisa naquele mundo que não o deixasse surpreso. Mas aquela declaração de Helena fugia de qualquer uma de suas expectativas. Entre todas as situações, aquela era a mais improvável.

            - Helena, do que você está falando? Ela... Ela não é uma sereia... Não pode... Isso é loucura! Como isso seria possível? Eu não...

            Helena gesticulou as mãos, impacientemente, impedindo o garoto de terminar seu raciocínio.

            - O pai dela era um Emissário, Charlie! Um irresponsável que se apaixonou por uma sereia, mais uma dessas aparições em nosso mundo. Ele a manteve escondida dos outros Emissários por muito tempo. Até demais, se quer saber – Helena olhou para o lado, certificando-se, mais uma vez, de estarem sozinhos - Finalmente, quando descobriram, a sereia já tinha concebido uma criança. Não sabiam o que fazer, até o dia em que Pyrah recebeu a fração da Inspiração. Quando descobriram que ela era uma Emissária, não havia nada a ser feito. A mãe voltou para o Meio-Termo, o pai morreu durante um combate com os Ogros-Decepadores-De-Cabeças do Vazio. Só que Pyrah acabou herdando o poder da mãe: seduzir homens. E ela faz isso sem nem hesitar! Como fez com você!

            - Peraí... Então Pyrah é uma sereia? Uma sereia que cospe fogo?

            - Meio-sereia. E não, ela não cospe fogo. Mestiços de sereias não precisam ter uma cauda de peixe, caso você não saiba. – Helena mostrou-se impaciente.

            Charlie tentou digerir a informação. Imaginou o rosto de Pyrah impresso no corpo de um linguado, mas a imagem era improvável. A Emissária do fogo sempre se mostrou ponderada, tão humana e concentrada em suas ações, era difícil imaginar Pyrah como uma filha de sereia, algo tão mágico e infantilmente irreal.

            - Mas ela não fez nada de errado. Deu-me apoio quando precisei...

            Helena e Charlie foram surpreendidos por passos súbitos.

            - Ela está com ciúmes, sua toupeira – era Ernesto. O garoto apareceu repentinamente, exibindo um sorriso irritante na cara quadrada e cheia de sardas.

            - O que? Ah, Ernie! Não seja estúpido! Estou alertando o meu amigo, apenas isso!

            - Ora, Helena! Nós sabemos que a atração de Pyrah é limitada e incapaz de levar um homem à loucura. – protestou o primo debochado – Você não quer que ele se apaixone por ela, isso sim.

            - Ora, não...

            - Isso não é toda a verdade. – a voz feminina soou logo atrás do trio.

            Ernesto, Charlie e Helena viraram-se para trás, encarando, surpresos, a súbita chegada de Pyrah. Como ela chegou ali, rápida e silenciosamente, ninguém soube explicar. Mas essa era a menor das preocupações.

            - Ahn... Oi, Pyrah – murmurou Charlie, enquanto Helena e Ernie trocavam olhares furtivos.

            - Meu pai nunca foi irresponsável – avisou Pyrah, lançando sobre Helena uma expressão que poderia ser traduzida como ódio – Ele se apaixonou por Cretea, a sereia do Meio-Termo. Foi um grande erro, concordo. Mas não posso me queixar, ou não estaria aqui.

            Houve um momento em que o silêncio se apoderou do quarteto, criando sobre eles uma densa nuvem de constrangimento e irritação. Charlie descobriu, naquele instante, que jamais estaria pronto para enfrentar todas as situações. Aquela, por exemplo, era uma das mais complicadas.

            - Helena simplesmente não gosta de mim, Charlie. Não se preocupe, a amizade de vocês está a salvo. – Pyrah deu o ultimato.

            Para Charlie, aquele não era o fim da conversa. Por que Pyrah e Helena tinham tanto rancor uma pela outra, era o que ele queria saber. A Emissária do fogo pareceu compreender a dúvida nos olhos do rapaz, por isso falou:

            - Eu não me importo com o passado, mas não vou mexer no que já foi esquecido, pelo menos por mim. Se Helena quiser, um dia, ela irá te contar o que aconteceu. Mas não espere que eu diga nada.

            Foi naquele momento que as duas garotas trocaram os últimos olhares. Não era ódio, ou ira incontrolável, como parecia antes. Havia um pouco de ressentimento, um segredo impresso e criptografado nos olhos que se confrontavam.

Foi no instante em que Helena tentou balbuciar alguma coisa, que outra interrupção aconteceu.

- Alô, pessoal! – Andrew veio correndo em direção ao irmão – Hey, Charlie, ouvi dizer que você escapou da morte outra vez. Doidera, hein? Ah! a propósito, mamãe está uma fera, precisei inventar algumas desculpas, mas você precisa ser convincente, ela não gostou da ideia de você dormir fora de casa sem avisá-la.

Ernesto revirou os olhos, sem se importar em parecer irritante. Charlie, que até o momento não sabia como agir, limitou-se num sorriso torto. Helena acenou, mas ainda estava disposta a replicar o comentário evasivo de Pyrah.

- Opa – Andrew encarou o grupo, todos com aquelas expressões de “não interrompa” – acho que cheguei num momento inapropriado.

- Não há nada que você não faça que não seja inapropriado – queixou-se Ernesto, frustrado por não mais poder ver o conflito entre Pyrah e Helena.

- Hey, chapa, olhe como fala com meu irmão! – retorquiu Charlie.

- Um momento, eu estou tentando dizer uma coisa... – Helena se impacientou com a fuga da discussão, Pyrah, no entanto, não exibia nenhum sentimento. Era fria como um bloco de mármore. 

Quando a conversa parecia querer assumir outro patamar, a porta da cabana se abriu com estrondo, afastando a nuvem de discórdia que pairava sobre Charlie e seus companheiros. O baixinho Tharsos veio, mau humorado, apontando para o céu com fúria e indignação. Munphus estava ao seu encalço tentando falar o que pareciam ser palavras de conforto.

            - Eu estou farto desses sacos de bosta pousando na minha ilha, Munphus! – gritava ele, irritado.

            - Será uma conferência rápida, Thor. Eu prometo. Apenas nós, os doze emissários do distrito. Além do mais, você me deve, depois de ter colocado a vida de Charlie em perigo.

            - Seu miserável! Ainda diz ser meu amigo!

            Charlie e os outros olharam para o alto, onde Tharsos apontava. oito Garzas taxiavam sobre a ilha, prontas para pousarem. As enormes asas se dobraram lentamente até, enfim, suas patas de leopardo tocarem o chão. Cada um dos animais trazia um passageiro às costas.

            - Os oito emissários que faltavam – avisou Munphus, anunciando alegremente a chegada das figuras desagradáveis, segundo Tharsos.

            Eles caminharam em direção ao grupo, dispersando a discussão que mal se instalara entre Charlie e os outros. Acharam prudente deixar a confusão para outro momento, quando mais ninguém precisaria ouvir os gritos furiosos de Helena ou vislumbrar os olhares raivosos de Pyrah. O bibliotecário conduziu o pequeno grupo em direção aos visitantes inesperados, oito novos indivíduos que comporiam a roda de emissários. Munphus acenou Tharsos, que se afastou, indignado, sem um pingo de vontade de exercer seu papel como anfitrião. O tio de Helena passou por eles e, na medida em que um novo Emissário recém-chegado se aproximava, o bibliotecário se encarregava de apresentá-lo para o grupo. Tharsos fazia questão de suspirar em deboche, o que foi facilmente ignorado.

            Cada um tinha um traço bem peculiar. Charlie ficou estupefato em saber como era consideravelmente grande o número de pessoas que conheciam aquele mundo. Antes mesmo que ele pudesse fazer alguma pergunta, um dos emissários assumiu a liderança do grupo, caminhando em direção a eles.

O primeiro passageiro a descer foi um homem de idade já avançada, atarracado, com os cabelos grisalhos, bochechas redondas e olhos grandes. Seus dedos gordos seguravam um cajado de ponta côncava em forma de bico de arara. Munphus o apresentou como Sr. Franz Mormmon. Aparentava ser o mais velho do grupo e, ainda que fosse o menor, poderia ser confundido com um rei.

            O segundo, Billy Blaine, era mais moço, com aproximados vinte e dois anos, cabelos louros espetados, um sorriso travesso e porte atlético. Billy parecia seu um jovem rebelde, mas seus olhos denunciavam uma aura extremamente caridosa. Charlie jamais havia percebido o quão transparente alguém poderia ser. O Terceiro Emissário era uma garota de cerca de quinze anos, seus cabelos eram castanhos, esverdeados nas pontas dos cachos bem elaborados, um rosto levemente redondo, magra e de porte bastante elegante. Seu nome era Frida Crow.

            O quarto era uma mulher muito atraente de seus trinta anos, talvez mais, devido às rugas que circulavam timidamente os olhos. Seus lábios eram vermelhos muito vivos e os olhos eram cintilantes e alaranjados, quase tanto quanto uma pedra preciosa. Seu nome era Lindsay Portleoux. Dona de uma beleza singular, Lindsay lembrava muito uma dama dos filmes policiais dos anos 80.

            O quinto emissário era um homem forte de barba por fazer, olhos castanhos claros, cabelos negros e um nariz curvo, mas simpático. Por mais que sua postura e músculos indicassem um perigo em potencial, seu sorriso contradizia completamente, afirmando-o como confiante, porém ponderado. Seu nome era Ray Barr. A sexta e a sétima emissárias eram duas irmãs, Sorah e Fiorah Habandit. Ambas partilhavam dos mesmos cabelos negros e pele bronzeada. Sorah, a mais velha, tinha os olhos verdes berrantes, enquanto Fiorah, a mais alta, de rosto mais quadrado, era dona de um belo par de olhos negros. Ambas sorriram cortesmente quando foram apresentadas. Havia um toque refinado no caminhar das irmãs Habandit.  

            O último Emissário era Madame Consuelo Tertalli, uma senhora de ares pomposos e muito elegantes, usava uma echarpe estampada envolta ao pescoço, os cabelos grisalhos amarrados em um coque delicado. Seus olhos grandes e atentos cintilavam por trás dos óculos meia-lua. Suas rugas eram a verdadeira personificação da sabedoria, uma mulher de seus sessenta anos com a elegância de uma gazela.

            Munphus apresentou a todos devidamente. Os recém-chegados encaravam Charlie com expressões curiosas. Alguns pareciam fascinados, enquanto outros não gostavam nada de ter um estranho nos domínios do Literadouro. Franz, o homem de cajado, era o único que parecia preocupado com as ataduras que cobriam o tronco do jovem.

            - É grave? – perguntou Mormmon. Sua voz era seca e áspera – espero que melhore logo, rapaz.

            Charlie assentiu, agradecido pela preiocupaçao.

            Munphus guiou a todos até o interior da cabana, enquanto Tharsos acompanhava o grupo aos murmúrios e queixas inaudíveis.

***

            Estavam acomodados na pequena sala. Charlie encarava o grupo de forma curiosa. Era fascinante ver tantas pessoas com capacidades sobre-humanas. Muitos pareciam ocupar funções corriqueiras no mundo convencional. Barr, o homem grande de traços brutos e simpáticos, lembrava um pescador, enquanto as irmãs Habandit não diferenciavam em nada com as patricinhas mimadas que, comumente, Charlie encontrava enquanto perambulava pela escola.

            Até aquele momento, Andrew mantinha-se fora do campo de visão, ao lado de Tharsos, que não queria confraternizar com pessoas odiosas, segundo ele.  

            - Munphus, estamos aqui como nos chamou. Mas não sei o que pretende nos reunindo – Franz parecia ser um homem franco e muito justo – Se as sombras estão capturando fábulas, deveríamos estar impedindo isso.

            - Talvez estejamos atacando de forma errada – argumentou o bibliotecário – isso só atrasa o trabalho das sombras, mas não as detém permanentemente. Antes de tudo, vocês deram uma boa olhada nos outros Inspirados?

            - Sim – foi Madame Tertalli quem respondeu. Sua voz era austera e imponente – mas alguns deles não foram encontrados. Não me agrada o rumo que as coisas estão tomando.

            Ao dizer isso, a senhora lançou sobre Charlie um olhar cheio de indagações, coisas com as quais Charlie não saberia lidar, se conseguisse compreender o que diziam aqueles olhos repreensivos.  

            - Como eu temia... – Munphus mordeu o lábio, pensativo – Quero que ajudem Charlie com o treinamento. Ele tem até amanhã.

            - E o que será de mim depois disso? – Charlie perguntou, e não havia nenhuma queixa em sua voz, apenas resignação.

            - Você vai convencer os outros Inspirados a ficarem longe dessa guerra... Algo me diz que nosso inimigo está recrutando pessoas como você.

            Não houve protesto. Charlie, depois de sua experiência com o dragão e a quase discussão com Helena, não sabia, ao certo, o que fazer, pensar, ou como agir. Ficou aliviado em receber ordens, pelo menos assim dava uma boa trégua ao seu cérebro.

            - Afinal, Munphus, o que descobriu? – perguntou Franz, o homem baixinho – ouvi dizer que você está mantendo um semi-vivo bem aqui.

            O bibliotecário pigarreou, limpando a garganta, e retomou a liderança na assembléia.

            - Sabemos muito pouco sobre os semi-vivos, talvez quase nada. Mas, de alguma forma, as sombras são capazes de converter humanos em semi-vivos.

            Munphus acenou para Andrew que, rapidamente, aproximou-se da mesa. O garoto não pôde deixar de corar quando seus olhos cruzaram os olhares das irmãs Habandit, que sorriram discretamente, mas sem nenhuma intenção.

            - Dê-me seu braço, Andrew – pediu Munphus.

            Andrew puxou a manga da jaqueta e a luva, exibindo uma mão magra e esverdeada. De forma curiosa, ela parecia ligeiramente menor, menos hedionda. Mas, em contrapartida, parecia mais decomposta.

            - O garoto sofreu um ataque das sombras, mas conseguiu escapar – falou Munphus, mostrando o braço de Andrew como se fosse um objeto – isso é o que acontece quando cruzamos o caminho das sombras.

            - Mas elas são altamente sensíveis à luz – afirmou Ray – não é difícil nos livrarmos dela. Isso não vai acontecer outra vez.

            - Aprecio sua positividade, Sr. Barr, mas não podemos nos dar ao luxo – informou Munphus – não sabemos o que essas sombras pretendam. Esse tal Dr. Sanguinetti parece saber muito sobre isso, mas não temos sequer ideia de quem seja ou onde esteja. Apenas sabemos que está tentando contatar Inspirados, abrindo Literadouros.

            Lindsay, a mulher dos anos 80, foi quem disse em seguida:

            - Não entendo... Achei que não houvesse mais Literadouros. Não há nenhuma explicação sobre isso?

            Munphus pareceu relutar em sua resposta, pensando minuciosamente e pesando as palavras, enquanto seus olhos cansados e experientes vagavam pelo grupo assentado à mesa.

            - Sabe... Eu tenho uma suspeita – informou Munphus, enfim – Dr. Sanguinetti, durante a carta destinada ao Charlie, intitulou-se Colecionador de Literadouros. Isso me leva a pensar... Talvez os Literadouros não sejam propriamente dos Inspirados. De alguma forma, estão sendo presenteados, não de forma natural, como acontecia antes... Acho que Sanguinetti é, literalmente, um colecionador. Um colecionador de Literadouros.

            - Ora, vamos achar esse doutorzinho de merda e chutarmos o traseiro dele – falou Billy socando a mesa com impetuosidade – Não deve ser difícil encontrá-lo. Estamos em grande número.

            - Eu duvido que Sanguinetti, seja lá quem for, esteja sozinho – afirmou Munphus – ele pode ser um Inspirado, ou pode ter algum do seu lado. Isso explicaria as aparições do Vazio, mas freqüentes nesse último mês.

            - Por hora, acho tolice nos reunirmos e discutirmos o que não sabemos – anunciou Franz – o melhor a fazermos é nos distribuirmos em grupos e patrulharmos o que estiver em nossa jurisdição.

            - Enquanto isso nó podemos bancar os detetives – falou Billy, com sua animação incontida – Seria bom mandarmos algumas dessas aparições para os lugares dela enquanto investigamos. Seguirmos as sombras, o que as aparições podem oferecer a elas.

            - Vejam só quem resolveu pensar – Ray sorriu, paternamente, dando um tapa amigável sobre o ombro do rapaz – acho que foi a melhor ideia até o momento.

            Billy sorriu, triunfante. Virou-se discretamente, encarando Pyrah, e deu uma piscadela cheia de insinuações. A Emissária do fogo suspirou, frustrada, virando o rosto para o lado oposto.

            - Está tudo certo, então – avisou Munphus – vamos distribuir os grupos, tomarmos algumas providências. Não vai ser fácil, mas também não facilitaremos as coisas para essas malditas sombras.

            Charlie não pôde conter o sorriso. Estar ali, de repente era como estar em um clube, onde todos eram igualmente aceitos e desempenhavam funções vitais, cada um ao seu modo. Intimamente, o rapaz se sentia no lugar onde deveria ter estado desde o início. Aquele era o seu mundo e, sentado à volta da mesa, estavam os habitantes dessa nova realidade.    


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