Inspirados - o Andarilho do Tempo escrita por Pedro_Almada


Capítulo 15
O Dragão Polonês


Notas iniciais do capítulo

Mais um capítulo postado!


Boa leitura xD



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O Dragão Polonês

            - Impossível! – exclamou Charlie, revoltado, andando de um lado para o outro no jardim – eu não fiz isso! Não posso ter! Não sou responsável por aquelas sombras!

            - Charlie... Acalme-se, ok? – Munphus seguia o garoto com o olhar – apenas me diga, como foi que você fez? Em que você pensou?

            Charlie pensou avidamente antes de responder. Seria correto dizer que sua manobra fora focar na escuridão em seus olhos? Em seu íntimo, Charlie sabia que fazia muito sentido e, no momento em que acontecera, ele conseguiu sentir algo acontecendo, algo que brotava de seu interior e se espalhava por cada centímetro de seu corpo. Não podia negar, estava ligado ao aparecimento das sombras.

            - Eu... Fechei os olhos, cobri o rosto... Foquei no escuro... O que podia fazer? Era a forma que encontrei de me convencer que o fogo não estava ali!

            Charlie levou as mãos à cabeça, furioso, talvez consigo mesmo, com Pyrah por ter se metido numa situação que não era dela, ou com o nanico por dizer coisas que não precisavam ser ditas num momento como aquele.

            - Elas não suportam a luz – avisou Pyrah – Elas estavam cobrindo umas às outras para se protegerem da luz do sol, não tive outra escolha se não atirar o fogo contra você... Espero não tê-lo machucado.

            Charlie virou-se para ela.

            - Você sabe o que é aquilo?

            - Já vi, uma vez... – falou ela, encarando Munphus com um olhar cheio de informações que Charlie não conseguia entender – enquanto caçava um homem... Ao que parece aquelas coisas estão atrás de fábulas. Perdi algumas de minhas caças do Meio-Termo e duas do Vazio esse mês, por causa dessas sombras.

            - O que as sombras estão fazendo com eles? – perguntou Charlie.

            - Não faço ideia, mas não acho que devamos nos preocupar com isso. – respondeu ela, caminhando em direção ao Munphus – agora sabemos que são obras da Inspiração.

            Munphus assentiu, pesaroso.

            - Mas, afinal, a que lugar elas pertencem? – Charlie estava aflito. Sentia-se um criminoso diante de tantos olhares.

            - Elas não pertencem a lugar algum – respondeu o bibliotecário brevemente – assim como aquele dragão... O seu dragão, Charlie... Quando você o liberou, ele perdeu sua conexão com o Vazio, não conseguimos mandá-lo de volta. Já o Meio-Termo... Bem, precisaríamos ter a história em sua resolução, mas... Você abandonou-a.

            - Quer dizer, então – Charlie compreendera – Que, assim como o dragão, as sombras não podem ser mandadas ao Meio-Termo, nem ao Vazio. Elas são... Minhas criações.

            - Não apenas suas – Pyrah interrompeu – antes de sua, digamos, experiência sobrenatural com seus poderes, eu já havia enfrentado uma sombra dessas antes. Significa que, talvez, você não seja o único Inspirado invocando aquelas coisas.

            Eles se olharam mutuamente, procurando respostas em cada uma das feições curiosas. Munphus parecia ser o único preparando um plano ou, pelo menos, tentando encontrar uma solução temporária.

            - Já decidi – avisou ele subitamente – vocês continuam o treinamento. Charlie, muito bem, a experiência não foi boa, mas o nó foi removido, precisa desenvolvê-lo sem aquela, hãn, tática. Tharsos irá ajudá-lo com o resto. Eu irei reunir os outros Emissários. Isso aqui virou uma guerra, não podemos mais tapar o sol com a peneira.

            - Guerra? – Tharsos falou entre os dentes, sem despregar os olhos do velho amigo.

            - Pyrah disse que viu isso antes e, sendo obra de um Inspirado, só posso imaginar duas coisas... Ou Galahan saiu do Vazio, ou temos um Inspirado em nosso plano a fim de nos criar problemas. E ele não está sozinho.

**********************************************************************

            Munphus saiu acompanhado por Helena e Ernesto. Antes de irem, a amiga foi até Charlie, abraçou-o e, lançando olhares furtivos a sua volta, murmurou par ao amigo:

- Não confie em Pyrah, Charlie – ela pediu em tom de súplica – seja como for. Ela pode estar do nosso lado, mas não se importa com ninguém a não ser com ela mesma.

- Vocês não parecem ter um passado muito amistoso – comentou Charlie, pesando o conselho da amiga.

Ela olhou para o chão, deixando seus cabelos ruivos penderem para o lado. Helena se afastou lentamente, olhando para Charlie.

- Cuide-se, até eu voltar – ela pediu – Seja forte.

Intimamente, Charlie sentiu-se o homem mais iluminado.

Andrew decidira voltar para casa, iria lidar com os pais e tentar limpar a barra do irmão. Charlie concordou que seria uma boa ideia. O próprio bibliotecário havia sugerido, pensando que seria melhor não alarmar os pais. Quanto menos preocupação numa situação dessas, melhor (ou menos pior) seria.

            Pyrah, Tharsos e Charlie estavam sozinhos. Em um mundo completamente estranho, com pessoas desconhecidas, Charlie não conseguia se sentir a vontade. Mas não havia nada a ser feito. Precisava continuar. Seu ímpeto por se descobrir, conhecer suas habilidades, era um desejo muito maior. E estava aumento a cada instante.

            Charlie tinha a dracma perdida em mãos, Tharsos manteve distância e Pyrah estava se preparando.

            - Se as sombras retornarem, eu dou um jeito nelas – avisou Pyrah – mas tente não pensar nas sombras. Faz exatamente o contrário.

            - Como assim...

            Tarde demais. As chamas envolveram o rapaz e, logo, não podia ouvir mais nada a não ser o fogo rugindo a sua volta, ardendo o ar que inspirava e avermelhando sua pele. Com a moeda em mãos, ele manteve a calma. Desprezou a tentativa de deixar tudo “escuro”. O que, então, deveria fazer? O contrário? O que Pyrah quis dizer com isso?

            As primeiras lágrimas brotaram de seus olhos. Sentia-se inútil, completamente incapaz. O que tinha feito até aquele momento? Um garoto que passou a maior parte do tempo mentindo, fantasiando um mundo e se isolando do real. Não tinha muitos amigos, nunca venceu nada a não ser uma olimpíada de matemática e a feira de ciências do segundo ano. Quais eram as chances de um garoto assim ser capaz de repelir o fogo com o poder da mente?

            A moeda sumiu de sua mão. A dor o invadiu , queimando sua pele sem misericórdia. Sentiu certo alívio, agora teria desculpas para tantas lágrimas. Debruçou no chão, sentindo a dor, apertou os olhos. Então o fogo passou. Sentiu uma mão delicada pousando em seu braço. O simples toque foi o suficiente para fazê-lo gritar de dor.

            - Vamos por esse idiota lá dentro – falou Tharsos – tenho uma pomada para queimaduras. Um banho de ervas cairá muito bem.

**********************************************************************

            Charlie estava dentro de enorme bacia de madeira. A água era azulada e muito fria, provavelmente abaixo de zero grau. O garoto estremecia, mas, segundo o leprechaun, era parte do procedimento. “Pétalas de dálias e ramos de heras do pântano precisam ser ministradas em uma solução gelada, ou elas podem matar em vez de curar”. Era uma afirmação bem convincente.

            Seu corpo começava a se acostumar com a temperatura. O quarto onde estava se encontrava vazio e em silêncio. Apenas algumas velas aromáticas ocupavam banquinhos de madeira. Charlie começara a esfregar os braços, afastando a dor, quando a porta se abriu.

            - Sente-se melhor?

            Charlie enfiou a cabeça dentro da banheira antes de visualizar Pyrah entrando no quartinho de velas aromáticas. Charlie se perguntou se seria aquela a promessa que sentira o dia todo.

            - Não se preocupe – avisou ela – não estou interessado em ver nada.

            Ele emergiu a cabeça vagarosamente, encarando a garota. Seus cabelos negros estavam encharcados e sua aparência não era das melhores. Ainda assim, não podia dispensar uma boa companhia. Não queria ficar a sós com seus próprios pensamentos, tinha descoberto o quão perigoso poderia ser.

            - Está se saindo muito bem.

            Charlie deu uma risada baixa e desanimada.

            - Só se for como espetinho... Não consegui nem ao menos mover as chamas... A não ser quando... Você sabe, as sombras.

            - Olha, Charlie. Eu não te conheço, mas vejo vontade em seus olhos. Mas, preciso te dizer, você está completamente desorientado.

            - Isso é motivador.

            - Eu falo sério. Você precisa de foco. Um objetivo. O que está tentando defender? Por que você se enfiou nessa?

            Não houve resposta. Charlie não sabia. Ficaram em silêncio durante algum tempo, enquanto o aroma das ervas eram apreciados.

            - Esse lugar é incrível – foi Pyrah quem disse, iniciando o que deveria ser um diálogo - uma pequena amostra do que habitam os outros mundos... Nascem aqui a partir do momento em que passam a habitar o imaginário dos Inspirados. Daqui, alguns vão para o Meio-Termo... Outros para o Vazio.

            - Pyrah... – Charlie encarou a garota – já parou para pensar que isso é culpa nossa?

            - Eu sei o que vai dizer... Não pense nisso, Charlie. Não vale a pena, você nunca imaginou o que acontecia por trás de tudo isso.

            Charlie admirou a beleza madura e decidida contida na voz da garota, encarou seus cabelos castanhos e, mais uma vez, sentiu a chama que aquecia sua alma. Havia tantas promessas, mas tantos mistérios!

            - Aquelas casas... – ele continuou – o que elas são? As casas nos galhos...

            - Aquela árvore é a Fabularium borea. – disse ela – o último exemplar da espécie. Suas raízes vão tão fundo, que ultrapassam o próprio plano material... Aquelas casas são os outros Literadouros, que se ligam a este. Imagine que aqui seja o receptáculo principal, que liga os Inspirados em um único lugar. Aqui são criadas as personagens. Você tem um dom, Charlie. Use-o.

            Ele assentiu.

            - Encontre algo – ela disse, finalizando – algo que te motive. Um objetivo.

            A porta do quarto se abriu, permitindo a entrada do homenzinho ranzinza.

            - Quando acabarem com esse namorico, eu quero os dois lá fora comigo – ele disse, resmungando – mudei os planos para o nosso treinamento.

            Charlie estava seco e bem vestido. Estavam montados em uma Garza.

            Sem trocarem uma única palavra, ganharam o céu e sobrevoaram o grande oceano. O pássaro foi conduzido até uma outra ilha, diferente das demais.

            Os galhos da grande árvore se distanciavam daquele pedaço de terra, como se evitassem a ilha. Foi nela onde pousaram. Abandonaram a ave, que voou até sumir de vista.

            - Que lugar é esse? – perguntou Charlie.

            - Aqui é onde Munphus gosta de... Esconder as coisas – disse o homenzinho – venha, irá descobrir logo.

            Caminharam alguns minutos. Pyrah mantinha-se em silêncio, vez ou outra lançando olhares em direção ao jovem, como se desse conselhos por trás de um simples gesto. Para a infelicidade do rapaz, ele não conhecia essa linguagem entre os sexos. Era um leigo miserável.

            - Aqui estamos – avisou Tharsos, apontando para a construção.

            Era uma gaiola de aparência bem resistente, do tamanho de um edifício. As bases eram de metal e as correntes bem grossas, os fios eram translúcidos, feitos de diamante e incrustados com pedras esverdeadas.

            - Um belo trabalho dos duendes e castores. Claro que nós, leprechauns demos uma mãozinha. Jamais encontrariam diamante e esmeraldas em uma venda de beira de estrada.

            - Resistente ao fogo – comentou Pyrah.

            - É aqui que guardamos o dragão... o polonês.

            Charlie precipitou seu olhar em direção ao leprechaun.

            - Aquele dragão está aqui?

            - Sim. – o homenzinho sorriu, triunfante – sou habilidoso com essas feras rebeldes... Agora entre, precisa treinar.

            - O que?

            Tharsos sorriu, não de um jeito bom.

            - Pyrah fez a parte dela. Você conseguiu desfazer o . Agora precisa treinar suas habilidades.

            - Não se preocupe, estarei aqui se precisar de ajuda.

            - Aqui, garoto – Tharsos lançou a dracma perdida para Charlie – você tem quinze minutos. Depois disso, a dracma é minha de novo.

            O portão se fechou logo atrás dele. Onde, diabos, estava com a cabeça quando concordou com isso? Do outro lado, Pyrah e Tharsos encaravam o rapaz.

            - Isso pode ser perigoso, senhor – disse Pyrah – eu deveria entrar com ele.

            - Não, menina – ele retrucou em baixo tom – o garoto precisa ser forte, ele está para enfrentar coisas maiores. Se ele morrer aqui, significa que não estava pronto.

            Charlie manteve os passos. Seus sentimentos estavam divididos entre encontrar logo o dragão e sair logo de lá, e nunca mais ver o rosto do dragão e se acostumar com a ideia de viver em uma ilha paradisíaca. Sabia que nada disso iria acontecer.

            De repente, tudo estava muito silencioso. Nem pássaros, passos sobre a relva, nada. Apenas a atmosfera calada e cada vez mais assustadora. A qualquer momento o dragão o surpreenderia. Não tardou a acontecer.

            O rugido veio de detrás da moita. O movimento brusco dos galhos alarmou o rapaz. Charlie correu no sentido oposto, se perguntando onde estava com a cabeça quando aceitou aquela proposta.

            O dragão emergiu do arbusto, exibindo sua cabeça triangular de olhos furiosos e escamar escarlates. O animal se projetou em direção ao jovem, que corria ensandecido. A primeira bola de fogo não demorou a ser disparada, rasgando o ar e, por muito pouco, não atingindo a cabeça de Charlie. Ele precisou se jogar no chão para não ser chamuscado.

            O dragão manteve o compasso. Abriu suas asas e, num impulso rápido, alçou vôo raso e certeiro. Não havia chance, ele jamais poderia fugir. O animal abriu a boca, gargarejando uma enorme quantidade de chamas alaranjadas. Cuspiu-as, sem cerimônia.

            Charlie não teve tempo para pensar. Ainda no chão, estendeu as mãos, de olhos fechados, concentrando-se. “O nó foi removido, precisa desenvolvê-lo sem aquela, hãn, tática”. Como fazer? Não tinha ideia.

            Seus pensamentos focaram no conselho de Pyrah. “Faça exatamente o contrário”. Charlie entendeu. Olhou em direção ao céu limpo e azul. Ali, certamente, não havia sombras querendo devorar ninguém. Apenas paz. Era tudo o que queria.

            Um pulso elétrico percorreu seu corpo até a ponta dos dedos. E o extraordinário aconteceu. A bola de fogo recolheu em si mesma, encolhendo até não sobrar nada além de uma minúscula brasa que caiu inocentemente no chão.

            Seu problema fora resolvido com o fogo, mas o dragão ainda estava em seu encalço. Charlie mal teve tempo de escorregar para o lado, as patas graúdas do animal agarraram Charlie pelos ombros, erguendo-o no ar. O animal ganhou os ares, sobrevoando a floresta da ilha com um garoto apavorado.

            Charlie sentiu as unhas curvas do dragão cravarem em sua pele, fazendo-o urrar de dor. Sua visão começou a ficar turva, uma náusea o golpeou, enquanto o animal o balançava no ar. O rapaz não conseguiu lutar. Sua cabeça pendeu para o lado, desacordado.


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