Lá estava Death the Kid, deitado no chão gelado do quarto-cela de Chrona com a cabeça próxima aos pés descalços da menina, quando ele abriu calmamente seus sonolentos olhos, voltando à consciência normal. Como sempre, os olhos dourados de Kid varreram o quarto, analisando cada mínimo detalhe e processando metodicamente toda sua situação.

Depois de um tempo sentou-se ao lado da menina, que, depois de Kid dar mais uma esfregada nos olhos ainda pesados de sono, pareceu estar vestida como sempre esteve. Quando ela havia trocado, era um mistério. Talvez a outra roupa que Kid havia visto-a usar fosse apenas um vislumbre de como ela estava naquele mundo próprio de Chrona. É, aquela era a melhor hipótese.

Death the Kid deu uma olhada melhor em Chrona. Havia algo mudado.

Mas não necessariamente uma mudança física, somente a maneira que Kid a enxergava estava diferente. Chrona continuava a mesma menina. Seus cabelos continuavam rosas e assimetricamente despenteados. Em seu rosto, havia um pequeno e tímido sorriso estampado e dos olhos fechados, lágrimas escorriam até o queixo de Chrona, de onde as gostas se desprendiam e caiam sobre seus pequenos, porém notados pelos olhos minuciosos de Kid, seios da menina. E, como um bônus, era possível sentir uma energia tranqüila pairar pelo quarto. Havia algo de gracioso em Chrona que Kid nunca havia notado antes. Tão inocente, quase angelical.

Aquela fora a primeira vez que Death the Kid vira uma beleza tão grande em uma pessoa com uma aparência e postura tão assimétrica como Chrona.

O jovem shinigami sentia uma grande vontade de tocar o rosto da menina, mas relutava em fazê-lo. Mas, não se conteve. Suavemente, ele passou a mão pelos cabelos rosados da menina e colocou-os atrás das orelhas. Passou o dedo indicador lentamente sobre as pálpebras de Chrona, tirando as lágrimas e contornando os cílios dela. Passou seus curiosos dedos sobre o lábio superior e o nariz da menina, como se o desenhasse, que então corou. Kid afastou as mãos com rapidez, com o sangue subindo a cabeça e esquentando as bochechas dele, que estavam geladas por causa do tempo que ele havia permanecido deitado no chão.

Foi quando ele ouviu passos vindos do lado de fora do Shibusen, mais especificamente, do pátio de entrada. O barulho de sapato de salto era claramente audível. Deveria ser Liz, que vinha atrás de seu shoukunin.

Death the Kid levantou-se do chão e ficou na ponta dos pés, para tentar olhar pela janela que ficava mais alta no quarto. Mas, não conseguiu nem chegar ao batente. Suspirou, angustiado por causa de sua altura. Ele então olhou para Chrona e, ao ver que ela continuava na mesma posição, tirou os sapatos, colocou o travesseiro mais para o centro da cama e subiu em cima do móvel, para poder olhar melhor. E então, pode ter certeza de que era sua arma. Meio aflito, ele desceu da cama num pulo, colocou o travesseiro em seu lugar original, calçou os sapatos e dirigiu-se rapidamente à porta do quarto-cela, que estava entreaberta.

-Kiddo... Kun... - Chrona sussurrou, logo após Kid abrir a porta de aço e deixar mais vento entrar.

-Eu volto amanhã, Chrona. - Ele disse, voltando para perto de Chrona, tirando o cobertor da cama e jogando por cima da menina no chão. Ele então deu um beijo na testa da menina e se retirou, por mais que não quisesse deixá-la lá.

Kid andava rapidamente pelos corredores do Shibusen, procurando a saída da Academia o quanto antes possível, quando passou pela biblioteca e teve uma idéia para justificar seu atraso. Ele então abriu a grande porta de madeira, que rangeu ao ser movida, entrou na biblioteca e pegou o primeiro livro que viu na frente. Logo depois, saiu, fechando a porta e fazendo-a ranger novamente.

- Kiddo, o que faz na biblioteca à esta hora?! - Disse Liz, com as mãos na cintura, somente assistindo Kid sair sorrateiramente pela porta e suar frio ao vê-la - Eu te disse para não demorar a voltar! Eu e Patty ficamos esperando você para o jantar e a comida esfriou!

-Ah, Gomen. - Ele respondeu, coçando a cabeça, dando uma boa olhada no livro de biologia, daqueles usados nas escolas convencionais - É que eu estava fazendo uma pesquisa...

Liz então tomou o livro das mãos do garoto.

-Um livro sobre corpo humano? - Perguntou Liz, olhando torto para o livro e para seu Shoukunin.

-Hai. - Ele disse, com um tom sério na voz.

-... Olhe lá ein, Kiddo, não faça nenhuma bobagem com Chrona. - Disse Liz, dando uma boa folheada no livro e interpretando tudo aquilo de maneira inapropriada.

-Gaaah! -Gritou Kid, chacoalhando seus braços acima de sua cabeça, com as bochechas rosadas, fazendo pirraça - N-Não me fale uma coisa dessas! Vamos embora!

E então, totalmente constrangido, Kid foi batendo o pé para fora do Shibusen, sendo seguido por sua arma, que dava uma risada maliciosa.

~

Death the Kid, logo que chegou ao seu quarto, arrancou os sapatos e se jogou em sua cama, com o rosto no travesseiro, bufando. Nem jantar ele jantou, por mais que Liz houvesse deixado bem claro que havia um prato de comida para ele no microondas.

Kid estava extremamente irritado naquela noite, por vários motivos. Os comentários indecentes das irmãs Thompson, que não paravam de importuná-lo com perguntas enquanto estiveram brevemente reunidos na sala de estar da Shikedai, era um desses motivos. Mas o que mais estava irritando-o era o a responsabilidade de cuidar de Chrona que ele havia jogado sobre seus próprios ombros sem antes pensar no que exatamente aquilo significava.

O fato de que Chrona era sua maior - ou talvez única - preocupação o afligia. A todo o momento, ele só pensava no que estava acontecendo com ela. Seu maior desejo era que ela levasse uma vida feliz, a que ela merece.

-Aqueles quartos são horríveis... - ele disse para si, deitando-se de barriga para cima, tirando o rosto do travesseiro - Preciso falar sobre isso com Chichiue.

Death the Kid parou de pensar um pouco, por um momento deixando sua mente ser influenciada pelo branco das paredes, antes de fixar seu olhar no lustre. A luz ofuscava seus olhos dourados, porém suas pupilas dilataram somente depois que o jovem Shinigami teve a idéia mais louca que já tivera em vida: E se Chrona passasse a morar na Shikedai?

Não, aquilo estava fora de cogitação. Totalmente absurdo. Death the Kid colocou as mãos suadas sobre seu rosto quente, entrando em desespero, achando que ele estava tendo um colapso mental ou algo do gênero. Aquilo tudo estava enlouquecendo-o. Nem sua própria mente conseguia lhe proporcionar um pouco de paz quando ele mais precisava disso. Ele quase estava quase arrancando os próprios cabelos com as mãos, que passaram a ficar grudadas em sua cabeça como uma cola, quando ele suspirou fundo e resolveru tomar um banho, para limpar um pouco seu corpo, sua mente e alma.

Kid então levantou meio zonzo de sua cama e foi cambaleando até o banheiro. De algum jeito, tropeçou nos próprios pés e segurou-se na porta, parando com os olhos atordoados no espelho. Observou por alguns instantes a própria imagem refletida, com os olhos parando de girar um pouco. Além de parecer tudo duplicado, Kid pôde ver seu cabelo totalmente despenteado, com maços e mais maços de fios negros de seu cabelo apontando para todos os lados, assimétrico, mas na hora o garoto não se importou com aquilo no momento. Tirou seu terno preto todo amassado do corpo, largando-o no chão junto com a roupa de baixo e as meias, entrou na banheira e abriu a torneira, sentando-se devagar.

Aos poucos, a água morna ia subindo pelas canelas de Kid, enquanto o olhar dourado e inexpressivo acompanhava o nível da água subindo lentamente. Tudo ao seu redor parecia bem menor e mais lento do que da última vez que ele havia reparado naquele banheiro, quando ele era pequeno e recém-chegado na Shikedai, na época em que Shinigami-sama ainda tinha que ajudá-lo em seu banho. Ele teve uma infância bem tranqüila, comparado com o tumulto que sua vida atual é. Tudo era tão simples e divertido, de alguma maneira.  Um sentimento de nostalgia preencheu o coração do menino, que agora queria a inocência que ele possuía, que foi lentamente coberta por sua pele branca, com o passar dos anos. Talvez a única maneira de ele voltar à seu antigo ser, seria voltando no tempo. Mas aquilo estava fora de cogitação também. Não havia mais o que fazer além de guardar as poucas memórias infantis que tinha.

Uma chuva fina, porém constante, batia no vidro da janela do banheiro de Death the Kid, enquanto este assistia a banheira encher-se cada vez mais de água quente, o sabão formava mais nuvens de espuma ao redor dele e ele ria das coisas que se lembrava. Mas, àquela altura, ele já deveria ter passado mais de uma hora naquela banheira de louça branca. Então, ele fechou a torneira, abriu o ralo e saiu da banheira, enrolando-se em uma toalha.

Com uma grande velocidade, Kid vestiu seus pijamas negros de faixas verticais cinzas escuras e deitou-se em sua cama, sob vários cobertores, apagou a luz e ficou a encarar o breu de seu quarto, somente com a chuva grossa do lado de fora como trilha sonora para sua solidão. Mas o escuro não durou muito tempo. Não demorou a que trovões ensurdecedores caíssem em Death City e jogassem grande parte de sua luminosidade e estrondo para dentro do quarto de Kid, assustando-o por um momento. Ele então lançou seu braço para o lado esquerdo, batendo no interruptor e acendendo o abajur ao seu lado, com as mãos remendo sem controle. O que estava acontecendo? Ele estava... Com medo? Death the Kid nunca tivera medo assim em toda sua vida, mas por que o pavor estava consumindo-o lentamente naquela noite?

Calma, estava tudo bem. Kid colocou a mão sobre a testa, fechando os olhos e respirando fundo, tentando ao máximo voltar às suas emoções usuais. Ele só estava sensível naquela hora, ele só precisava desligar sua mente da tempestade. Lendo um livro, talvez.

E ele sabia exatamente onde conseguir um livro.

Death the Kid deu uma rápida olhada em seu relógio. Já havia passado das 23 horas. As Thompsons já deveriam ter se recolhido e apagado as luzes há tempos. Rapidamente, ele calçou seu par de pantufas que Liz havia lhe dado alguns meses antes, pegou sua lanterna e saiu de seu quarto, lançando-se na escuridão dos corredores da Shikedai com apenas a luz circular da lanterna à pilhas.

Com as mãos tateando as paredes, Kid foi seguindo devagar pelos corredores da Shikedai, até que chegou numa escada. Mas não era que nem as outras da casa, esta escada não possuía tapetes nem nada. Era só uma escada que levava à porta da pequena Biblioteca que Shinigami-sama havia construído naquela beirada de corredor, com a esperança de que algum dia seu filho entrasse lá em busca de algum livro interessante. Depois de anos sem o objetivo do pai ser realizado, lá estava Kid, em busca de um livro, como seu pai desejou.

Death the Kid subiu devagar os degraus da pequena escada e parou em frente a um capacho bem velho. Ergueu o pobre e empoeirado tapete com um pouco de repulsa e pegou a chave que havia embaixo dele, como esperado de Shinigami-sama. Colocou a chave no buraco enferrujado da fechadura e girou para a direita com relutância, fazendo um alto barulho de destrancar que ecoou pelo corredor, quebrando o silêncio  existente lá, por mais que chovesse forte do lado de fora da casa. Kid olhou ao redor, confirmando que só ele estava acordado na Shikedai, e então passou pela porta de madeira recém-aberta.

Mais um raio caiu. Desta vez, assustando-o mais ainda e fazendo-o cair no chão, antes mesmo de poder se virar e ver o que o esperava naquele cômodo desconhecido. Death the Kid se levantou, ainda com o coração disparado, tirou a poeira que havia grudado em seu pijama e voltou suas costas para a porta, vendo apenas mais degraus iluminados por sua lanterna. Suspirou profundamente, pondo-se a subir os degraus meio frustrado, mas se surpreendendo ao ter um primeiro vislumbre da sala que o aguardava já faziam anos.

No primeiro passo que Kid dera para fora da escadaria, as luzes da sala se acenderam, revelando um lugar longe do que o jovem Shinigami esperava que seu pai havia deixado ali. Bem ao centro da sala, havia uma janela típica de sótão, com um confortável colchão ao lado da janela, com várias almofadas sobre ele; À esquerda do baywindow, havia uma poltrona de couro bem grande, com um cobertor dobrado sobre ela e um abajur de base grande logo ao lado do cômodo e as paredes cobertas por estantes recheadas de livros; De bônus, era como se Kid sentisse seu pai ali, chamando-o.  Com os olhos dourados brilhando, Kid foi caminhando até a estante da esquerda, por onde começou a procurar por um livro.

Até que achou uma parte que chamou sua atenção.

Na parte mais baixa da estante, estavam alguns livros de peças de teatro famosas de Shakespeare, com pouquíssima poeira corrompendo a visão dos títulos dos livros. Deveriam ser livros recém-colocados ali. Enfim. Dentre todos aqueles livros, "Romeu e Julieta" se sobressaiu, não se sabe exatamente por que. Death the Kid agaixou-se naquele canto e pegou o livro, assoprando a dura capa do objeto. Segurou o livro com força, olhando-o com determinação.

-É isso que eu vou ler.

Ele disse para si, levantando-se e indo em direção à poltrona, fechando as cortinas da janela antes de sentar-se e se enrolar no confortável cobertor que estava lá para sua praticidade.  Com apenas as pernas e metade do tronco cobertos, Kid abriu o livro na primeira página sobre seu colo e começou a ler palavra por palavra, simplesmente jogando toda sua mente naquilo.

A cada palavra do livro, mais sua mente se desligava do exterior e seus olhos pesavam, enquanto a chuva não parava de cair. Até que Kid, enfim, dormiu.

~

O sorridente Sol nasceu naquela manhã de quinta-feira, mandando seus radiantes feixes de luz por toda a cidade de Death City, após a tempestade que havia caído na noite anterior. Liz abriu seus olhos azuis e sonolentos ao ouvir seu despertador tocar ensurdecedoramente, dando-lhe um soco bem dado no botão de desligar. Olhou o horário, já havia passado do horário de acordar.

Estavam atrasados para o Shibusen.

Não que Kid ligasse muito para isso, já que ele se atrasa na maioria das vezes e não está nem aí por ser filho do diretor, mas ela havia jurado que não deixaria que eles chegassem depois do sinal. A menina então levantou correndo de sua cama, chamou a irmã, que dormia na cama ao lado, calçou seu chinelos às pressas e foi direto para o quarto de seu shoukunin, que não dera nenhum sinal de vida desde o final da discussão da noite anterior. É, ela não deveria tê-lo incomodado tanto.

Liz atravessou o corredor correndo, abrindo a porta do quarto de Kid sem nem bater antes, de tanta pressa que tinha.

-Ore, Kiddo! Estamos atrasa... - Ela disse, pondo a cabeça para dentro do quarto e não vendo seu Shoukunin deitado na cama dele -... Kiddo?

Ela então entrou no quarto de Kid, procurando-o. Olhou no banheiro, não havia ninguém. Também não havia motivos para ele se esconder num armário nem nada, então, ele simplesmente não estava lá.  Liz então saiu do quarto de Kid e lançou-se no corredor novamente, abrindo cada porta que havia lá, sem encontrar ninguém. Até que se deparou com uma única porta aberta, num corredor isolado da Shikedai.

Liz não soube o que pensar, além de que aquele lugar era assustador. O corredor todo era muito escuro -mesmo que na outra extremidade houvesse uma janela bem grande - e empoeirado, sem contar que Liz nunca havia visto aquela porta lá antes. Mas era só lá que restava procurar.  Tremendo um pouco, a arma foi subindo devagar os degraus de madeira que levavam ao "cômodo secreto" e deu um pequeno riso ao ver Kid sentado na poltrona de couro, com um cobertor verde caído nos pés, segurando um livro razoavelmente grosso, enquanto uma lágrima escorria de cada olho, rolando pelo rosto branco do shoukunin, que estava com a boca semi-aberta.

A menina se aproximou de seu shoukunin. Pôde ouvir o nome de Chrona sair baixinho da boca do menino, enquanto mais algumas lágrimas desciam pela trilha que a primeira gota havia deixado antes de cair sobre as páginas do livro, que já estava no final.  Liz então tirou o livro das mãos de Kid, marcando a página com um marcador qualquer, cobriu-o com o cobertor e então retirou-se do lugar, com um sorriso sereno no rosto.

-Patty, vamos sozinhas ao Shibusen hoje! - Liz anunciou, logo após fechar a porta do sótão.

-Ore, o que houve com Kiddo-kun? -respondeu Patty, saindo do banheiro do corredor com uma escova de dentes na boca, ainda de pijamas.

-Nada demais, ele só está um pouco sensível hoje. Vamos logo, estamos atrasadas para a aula!

E assim, não demorou para que Kid ficasse sozinho em casa, enquanto suas duas armas iam para a Academia. Mas que diferença faria um dia de aula perdido entre tantos mais que ele havia ido. Ele era filho do diretor, não teria grandes problemas. Sem falar que Liz não conseguiria aguentar as sensibilidades de um Shinigami dramático como o com quem ela convivia há tanto tempo.