Sangue em Pó escrita por Mirian Rosa


Capítulo 2
Capítulo 1




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            Bogotá, Colômbia, 22 de março, oito horas da noite. Javier Marquez, um colombiano moreno, troncudo e sempre mal-humorado, estava dormindo no surrado sofá de seu minúsculo e malcuidado apartamento. De súbito, é acordado pelo telefone.

\t\t  — Quem será?— pergunta-se. Resmungando, atente ao telefonema.— Quem é?

\t\t  — Peter.— respondeu o homem do outro lado da linha.

\t\t  — Ah, oi Peter, algum problema?— perguntou Javier controlando o sono.

\t\t  — A mercadoria ainda não chegou.

\t\t  — Como não? Eu a enviei já faz sete dias.

\t\t  — Eu sei, Jav, mas a desgraçada ainda não chegou. Tem certeza que você mandou pro destino correto?

\t\t  — Claro, o Henry me ligou contando que a havia pegado em uma ilhota perdida no meio do nada, perto da cidade de Lagos. Peter... De onde é que você está falando?

\t\t  — Madrid, de um telefone público do lado de fora do aeroporto.

\t\t  — Quantas horas são aí?

\t\t  — Duas da madrugada do dia vinte e três de março.

\t\t  — Peter, algo deu errado, era pra mercadoria estar em suas mãos há algum tempo! Já falou com o Henry, o nigeriano meu sócio?

\t\t  — Já. Ele disse que tudo correu bem no embarque da mercadoria.— explicou Peter Mackintosh, um escocês bonitão e com jeito de malandro.— Mas, eles podem ter desembarcado no lugar errado, o voo faria uma escala em Dakar, no Marrocos.

\t\t  — Ah, era só o que faltava para acabar de vez com o meu dia. Procure por mais informações aí. Eu falo com o Henry amanhã.

¨¨¨¨¨

\t\t  Ainda naquele dia, por volta das onze da noite, Javier, insone por conta da preocupação, liga a televisão. O único canal que aquele aparelho velho, quase caindo aos pedaços, pegava estava transmitindo um telejornal. Não demorou muito para que o apresentador noticiasse a morte dos nigerianos em Madrid. O caso ganhara notoriedade mundial. E não era para menos: casos como aqueles sempre chocavam os europeus que queriam uma rápida elucidação da história.

\t\t  Depois de assimilar a notícia, Javier apavorou-se. Sabia, instintivamente que aquela era a sua mercadoria. Tentou relaxar. Fumou um maço de cigarros. Foi dormir em meio a um acesso de tosse. Antes das seis da manha já estava de pé e ligou para Henry.

¨¨¨¨¨

\t\t  Abuja, Nigéria, 23 de março, onze e meia da manhã. Henry Simon, um nigeriano bem do folgado e espertalhão, está em casa, lendo notícias na internet. Lê, preocupado, a notícia da morte de seus conterrâneos. “O que teria acontecido?” pensava, com uma nervosa ironia. Logo ouviu o telefone tocar. Atendeu-o. Do outro lado da linha, estava Javier, nervoso.

\t\t  — Marquez? Acabei de saber o que aconteceu. Foi um baita desperdício. Mas, não sei como isso pôde acontecer, juro.— disse o nigeriano dando algumas gaguejadas.

\t\t  — Também descobri isso há pouco tempo. Temos que descobrir como foi que isso aconteceu. Houve algum problema no embarque daí pra Espanha?

\t\t  — Nenhum.— respondeu o nigeriano.— Alguns estavam com medo de embarcar, nada mais natural. Depois do embarque eu não acompanhei mais. Talvez a tensão os tenha feito produzir mais suco gástrico que o normal e as cápsulas não aguentaram o tranco e foram dissolvidas.— filosofou Henry.

\t\t  — Ô Henry, não viaja.— pediu Javier irritado.

\t\t  Por mais algum tempo, os dois ficaram conversando no telefone, especulando o que poderia ter acontecido. Javier lembrou-se de certa vez, quando duas das quinze mulas embarcadas morreram nas mãos de Peter, que “desovou” os corpos no mar mediterrâneo, depois de abri-los para tirar as cápsulas que estavam no organismo dos coitados, claro. Henry riu do episódio, mas achou que dessa vez seria complicado demais. Foram vinte dessa vez; cara; ia ser ainda mais complicado. E também, continuou o nigeriano, elas morreram antes do Peter pegá-las.

¨¨¨¨¨

\t\t  Mal Javier desligou o telefone ouviu-o tocar de novo. Ô, porcaria! Não tenho direto a nenhum minuto a mais de sossego? Resmungou. Quem lhe ligava, dessa vez, era Peter contando, em suposta primeira mão, o destino da mercadoria: o necrotério de um hospital madrileno.

\t\t  — Isso eu já sei, Peter, não tem nada diferente pra me contar, não?— disse Javier, ríspido.

\t\t  — Não.— disse Peter devolvendo a rispidez.— Os legistas vão examinar os corpos... Quero só ver o que vai acontecer quando acharem as cápsulas no estômago do pessoal. Muito provavelmente, tenho uns noventa e nove por cento de certeza de que a Interpol vai entrar na jogada para investigar. A imprensa daqui já está especulando isso.

\t\t  — Não estamos necessariamente perdidos. Até ligarem as cápsulas a nós vai tempo... O suficiente para que eu consiga escapar pra... Pra... Pra...

\t\t  — Pra onde, pra cá?— debochou o escocês.

\t\t  — Pra... Tailândia. Decidi.

\t\t  — Sei...— disse Peter em tom de deboche de novo.— Tenho que desligar, Javier.

\t\t  O colombiano desligou o telefone em câmera lenta. Peter tinha razão. A Interpol, certamente entraria no caso quando fosse descoberta a cocaína que os nigerianos possuíam no corpo. Ligou para Henry e, quando contou da perícia, o nigeriano quase teve um treco. Estava preocupado com o resultado da necropsia não apenas por conta das cápsulas...

\t\t  Oito dias depois, as especulações de Peter e os temores de Javier e Henry foram confirmados. Assistindo ao jornal em sua capenga televisão, Javier soube que a Interpol já era a responsável pela investigação. Ao ouvir tais informações, gotas de suor surgem em sua testa.

¨¨¨¨¨

\t\t  Amsterdã, Holanda, 24 de março, uma hora da tarde. Lars Van Gogh sai da galeria de arte onde trabalhava ávido por um almoço. Enquanto caminha para o restaurante mais próximo, pensava no milionário americano que lhe pagaria quatro milhões de euros em troca de uma (falsificada) tela de Vincent Van Gogh, na verdade, pintada pelo próprio Lars há cerca de dois anos, enquanto ele tentava seguir a carreira de seu, como dizia sem conseguir provar, parente. Dissera ser uma tela inédita, que a família guardara no porão, por razões desconhecidas. Porém, Lars, além do emprego na galeria e das tapeações ainda tinha uma terceira fonte de renda. Esperava uma mercadoria há quase quarenta e oito horas. Ligou para seu sócio que receberia o produto, ninguém atendia ao telefone no número que ele discou. Depois de três tentativas frustradas, decidiu ligar para o fornecedor do produto, só assim para saber do incidente. Fingiu lamentar-se, mas, na verdade, queria soltar rojões. Não tinha a menor intenção de continuar no negócio, mas devia uma grana gorda pro pessoal ainda, cerca de cento e setenta mil euros, culpa de uma apreensão que ele sofreu na Bélgica, numa fracassada tentativa de expandir os negócios. Mesmo assim, queria sair do negócio. Pagaria a dívida com o dinheiro do quadro. Depois disso, viveria com o salário que recebia da galeria, mas também continuaria tentando tapear o pessoal com as telas falsificadas de Vincent Van Gogh, a quem chamava de “tio Vincent”.

¨¨¨¨¨

\t\t  Na Interpol, no dia trinta de março, Santeri, Nikolas e Renato liam e reliam os relatórios das necropsias, que indicava que, além das cápsulas, os nigerianos haviam engolido também várias doses de bebidas alcoólicas. Lendo tal informação nos laudos, Renato perguntou para Santeri, que era especializado em entorpecentes.

\t\t  — Korhonen, o álcool potencializa o efeito da cocaína?

\t\t  — Sim, e como, Almeida. As moléculas do etanol e da cocaína se combinam no fígado e formam um terceiro composto químico que é muito mais tóxico que ambos separados. E, por tabela, capaz de provocar um estrago muito maior. Agora, por que perguntou?

\t\t  — Todos os nigerianos, pelo jeito, estavam com os níveis alcoólicos no sangue nas alturas, se fossem pegos numa blitz, iriam todos pra prisão. Se formos observar a legislação de trânsito brasileira.— informou Renato.

\t\t  — Isso explica o porquê da violência da overdose. Gastou só um quarto do tempo normal pra matar o sujeito.— explicou o finlandês.

\t\t  — O que menos bebeu, tomou o equivalente a oito doses de uísque.— informou Nikolas.

\t\t  — É, realmente a violência das mortes está explicada...

\t\t  — Bom, já sabemos do que os nigerianos morreram, agora precisamos descobrir de onde foi que a cocaína veio, porque uma coisa é certa: a África não produz cocaína.

\t\t  — Colômbia, Peru, Bolívia...— era Renato.— Sabemos que as investigações já feitas apontam esses três países, vizinhos do meu, por sinal, como principais produtores de cocaína do mundo, depois vêm algumas ilhas do caribe. E também que a rota do tráfico passa pela África antes de vir pra cá.

\t\t  — Isso é verdade. Mas tudo o que eu posso dizer, com o que temos é que a droga veio do continente americano. De um dos três países que o Renato mencionou.— afirmou Nikolas.

\t\t  — É. Conhece algum nome suspeito?— perguntou Santeri dirigindo-se ao alemão.

\t\t  Nisso, Nikolas, especialista em narcotráfico, lembra-se de um nome: Javier Marquez.


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