Love Is Waiting escrita por Gabriela Rodrigues


Capítulo 3
Capítulo 3




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/116855/chapter/3

- O que você ta fazendo? – perguntei irritada.

- Te ajudando a fingir que você dormiu assistindo a um programa entediante na TV antes mesmo de conseguir se levantar e ir ao seu quarto.

- Mas... – eu comecei.

- Senta no sofá e espera aí. Eu já volto.

- Você tem um minuto.

Ele revirou os olhos, mas assentiu.

Jake voltou à sala logo depois, carregando dois edredons.

- Pra que isso? – perguntei.

- Um pra mim, um pra ti. Ou você não usa cobertor?

- Uso, mas...

- Ótimo. Senta e fica quieta.

Obedeci. Jake sentou-se ao meu lado, disse para eu relaxar e me puxou mais para perto dele, cobrindo a nós dois com os dois cobertores. Pegamos algumas almofadas e fizemos de travesseiro. Só percebi o quanto estava acabada quando ele começou a afagar meu cabelo lentamente com os dedos.

Ele não se mexeu. Dormiu na mesma posição pouco depois que eu apaguei. Acordamos com minha mãe nos sacudindo três horas depois. Jake se ajeitou no sofá, fingindo indiferença quanto a minha presença, levantou-se e foi tomar banho. Segui seu exemplo – ajudaria a despertar.

Tomamos nosso café da manhã rapidamente e nos arrumamos para o passeio na chácara do tio Elliot, que planejáramos na véspera. Dos homens, tio Elliot era o mais velho dos tios, mas sempre foi brincalhão e adora crianças. Atualmente ele estava morando em uma chácara em Limeira, uma cidade vizinha a Americana, que tem esse nome graças a suas grandes e famosas plantações de laranja lima.

Fomos de carro. A divisão foi a mesma do dia anterior, quando saímos para o zoológico e minha tia saiu na frente. A viagem até Limeira durou algo em torno de uma hora e meia e foi bastante agradável.

Primeiro, ouvimos música. Quase estourei os tímpanos de Jake com meu CD de forró, que ele mais tarde trocou por um de clássicos. Depois, ele abaixou o volume e começamos a conversar. Como o combinado era dormir na chácara, fizemos planos para o resto do dia.

- Podemos nadar... O Elliot ainda tem a piscina de água quente. – ele começou. Era mania não só dele como de todos os meus outros primos tratarem nossos tios pelo nome. – Ou, se você preferir, aquele córrego ainda cerca a chácara.

Eu me lembrava do córrego em questão: nadávamos nele sempre que vínhamos pra cá, mas das outras vezes não fazia tanto frio quanto hoje. Tremi de leve no banco; as mãos nos bolsos do casaco bege.

- Nadar? Hoje? Mas eu nem trouxe roupa de banho... – tentei escapar.

Ele riu da minha fracassada evasiva e ligou o aquecedor do carro, percebendo que eu estava com frio. Depois ficou sério e pensativo, refletindo se deveria ou não dizer alguma coisa.

- O que foi? – perguntei.

Ele não respondeu.

- Fala. – eu mandei.

- Você vai ficar com raiva. – foi sua resposta.

Suspirei.

- Prometo que não. Por favor...? – insisti. A voz mais moderada.

- Tudo bem. – ele começou devagar – Digamos apenas que eu mexi no seu guarda-roupa e me certifiquei de que você não ia esquecer sua roupa de banho hoje. – ele corou.

Respirei fundo para conter o ataque de histeria que se formava dentro de mim.

- Muito bem. – falei com os dentes trincados e com o máximo de calma que pude reunir – Quer dizer que você entrou no meu quarto?

- Sim. – ele quase sussurrou.

- Mexeu nas minhas coisas? – continuei um pouco mais alto, já perdendo as estribeiras.

- Foi...

- E AINDA TEM A CARA DE PAU DE DIZER PRA EU NÃO FICAR COM RAIVA DE TI? – eu estava berrando.

- Desculpe. – ele disse assim que eu dei uma brecha para ele falar – Só queria ter certeza de que você não se esqueceria de nada que pudesse estragar meus planos pra hoje, mas não faço mais isso... Prometo.

Pensei um pouco no assunto e respondi asperamente:

- Tudo bem.

Ele sorriu de alívio.

Ficamos em silêncio, dessa vez por mais tempo. Estávamos quase chegando ao fim das longas fileiras de laranjais quando ele anunciou, ansioso:

- Tenho uma surpresa pra você.

Cruzamos o grande portão de ferro e começamos a atravessar o enorme gramado recém-aparado.

- Vai falar em público? – perguntei azeda.

Ele não se deixou abalar:

- Hmmm... – ele fingiu pensar, com uma das mãos sob o queixo – Não. É algo bem melhor. Eu que fiz.

Jake estacionou e nós descemos do carro. Nosso tio esperava dentro de casa, na sala, com os outros. Nós nos cumprimentamos e ele perguntou:

- Então... Já falaram com o Chris?

Senti Jake enrijecer ao meu lado. Chris, ou Christopher, como ele preferia ser chamado desde que completara quinze anos, tinha a minha idade; só um mês mais novo. Meu tio o adotara quando ele ainda era bebê, e já sabia desde então que ele era especial.

Meu primo nascera com um problema mental que constantemente o desligava do mundo real. Ele era aspirante a apresentador de TV e falava sozinho a maior parte do tempo, absorto em sua própria realidade. O maior problema, na verdade era que muitas vezes Chris se tornava agressivo. Minha mãe me contara que no verão passado que, em uma visita, Chris pegara Fred pelo pescoço e começara a esganá-lo. A sorte foi que tio Elliot viu e pulou em cima do filho para libertar o sobrinho. Por isso, todos nós tínhamos medo dele.

Jake e eu o procuramos pelo terreno – ele rígido ao meu lado – até que por fim encontramos Chris perto da plantação de feijões. Nós o chamamos, inseguros, e ele desceu da pedra que julgava ser seu palco.

- Oi, Chris! – Jake começou, avançando alguns passos e me mantendo um pouco atrás de si. – Lembra da gente?

Acenei detrás do braço de Jake e vi Chris ficando confuso.

- Ei, Chris! – eu falei – Não se lembra de mim? Sua prima! Zoey!

Ele me fitou por um momento, depois abriu um largo sorriso e exclamou em sua voz rouca:

- Zoey! – ele veio me abraçar, quase me sufocando – Desculpe, eu tinha esquecido. Querem ver meu show?

- Agora não. – Jake falou com fingindo pesar – Mas por que você não ensaia e mais tarde, se der, a gente assiste, todos juntos? Afinal, você tem que se acostumar a ter platéia.

Chris pareceu se irritar com a negação e Jake sutilmente me puxou um pouco mais para trás de seu corpo.

Chris era enorme. Da última vez que o vira ele tinha minha altura, então eu não o temia tanto, mas ele espichara nos últimos quatro anos. Media agora quase 1,90m, quinze centímetros a mais que Jake. Se, com pouco mais de um metro e meio ele quase estrangulou o Fred, pensei assustada, imagine o que ele não pode fazer hoje...

Saímos dali rapidamente a pretexto de deixá-lo ensaiando para o show que com certeza assistiríamos à noite e caminhamos sozinhos, até o galinheiro. Ficamos sentados junto às galinhas por um tempo sem dizer nada.

Não sei quanto tempo se passou quando Jake ficou de pé do nada e me puxou:

- Quero te mostrar uma coisa...

- O que? – perguntei por reflexo. Sabia que ele não ia responder, mas mesmo assim me decepcionei um pouco com a resposta.

- Vai ter que ver por si mesma.

Minha curiosidade aumentou. Andamos de novo, desta vez em direção ao pequeno celeiro com os dois cavalos do meu tio: o macho, Radar, e a fêmea, Nélia. Por pura coincidência, ou não, ambos estavam prontos para serem montados.

Jake me ajudou a montar Radar. Era um cavalo grande, branco com manchas beges; o mais alto, mais bonito e, por conseqüência, meu preferido. Jake montou Nélia. Ela era uma fêmea de pelagem castanho-escura e não muito mais baixa que Radar, o que fazia com que minha cabeça e a de Jake ficassem na mesma altura.

   Cavalgamos por entre uma pequena trilha arborizada da chácara, entrando propositalmente no meio do mato só para nos divertirmos. O sol estava forte quando paramos perto do córrego embaixo de uma árvore grande e velha na margem.

Jake desmontou Nélia e me ajudou a descer das costas de Radar, rindo um pouco da minha falta de jeito: fazia certo tempo que eu não montava e minhas pernas estavam rígidas. Ficamos deitados na relva à sombra da árvore até que senti passar a dormência que se formara em meus pés. Ele então se levantou.

- Queria me mostrar alguma coisa? – perguntei.

- Sim... – ele pareceu meio sem jeito, mas ansioso.

- E essa coisa é...? – insisti. Estava ficando nervosa. Irritada por ter que esperar mais. O que poderia ser?

Especulei por um tempo e comecei a tentar adivinhar.

- Não vai querer nadar agora, vai? – fiz uma careta com a idéia. Não estava mais frio, mas a água certamente estava um gelo.

Ele riu.

- Não. Vou deixar pra nadar na piscina de água quente. Passou longe.

Ele se apoiou na árvore.

- A cavalgada era a surpresa?  - ele estava me deixando louca.

- Não sei se você lembra, mas no carro eu disse que fiz uma coisa pra você. É meio difícil fazer um cavalo, sabe?

- Então o que é? Conta logo! – pedi outra vez, impaciente.

Ele suspirou.

- Espere aqui. – disse ele. E começou a subir na árvore.

- Ta fazendo o que? – perguntei incrédula. O que poderia haver naquela árvore? Afinal, ele não esperava que eu subisse; sempre tive pavor de altura.

- Dê uns dois passos pra trás! – ele gritou lá de cima.

Obedeci de imediato, ainda confusa, quando um pedaço plano de madeira começou a descer por entre as folhas. Olhei estupefata para a plataforma que agora tomava a forma de uma gaiola ou uma pequena caixa sem tampa, aparentemente resistente e com lugar para uma pessoa.

- Suba. – ele falou.

Hesitei, mas obedeci. Estava curiosa demais.

Acomodei-me no elevador improvisado e ele jogou para mim uma corda.

- Puxe a corda devagar. – ele instruiu – Vai fazer você subir. É só não olhar pra baixo.

Quanto mais eu puxava a corda, mais eu subia. Fiquei surpresa com a habilidade dele com ferramentas.

- Como você fez isso? – indaguei enquanto me içava.

- Física. – foi a resposta. Lutei para lembrar as aulas que tive no primeiro ano do ensino médio e finalmente recordei.

- Roldanas?

– É. Foi só instalar algumas e você, ao que parece, quase não sente o próprio peso.

Fiquei impressionada com a simplicidade do processo e levantei a cabeça na esperança de visualizar a estrutura das roldanas; em vez disso percebi mais algumas tábuas, mais grossas que as que formavam minha gaiola, dispostas uma ao lado da outra como um piso, com um pequeno buraco a uns três passos da beira onde, eu supunha, era a “parada final” do elevador.

Jake me ajudou a descer da minha cabine protetora e a guardou. Enquanto ele fechava o alçapão pelo qual eu entrei com cadeado, eu andei vacilante até a beira da varanda, onde ele fizera uma pequena parede à altura da minha cintura, e espiei abaixo de mim.

A vista para baixo não era tão medonha quanto eu pensava. Não se via mais que um denso emaranhado de galhos e folhas até muitos metros abaixo, portanto, não havia como sermos descobertos por algum visitante indesejado que estivesse vagando por ali.

Como tentar olhar o chão do topo da árvore não era muito interessante, virei-me para o outro lado, onde Jake me esperava com um molho de chaves girando na mão, escorado em uma parede também de madeira com uma janela e uma porta que possuía maçaneta e olho mágico.

Ignorei a porta, e dirigi-me à janela (com vidraça), espiando o interior do que deveria ser uma casa em miniatura. Não havia móveis, é lógico, mas pude ver alguns objetos jogados pelo piso.

- Quando você construiu isso? – perguntei assim que consegui encontrar minha voz.

Ele riu de minha expressão, mas respondeu:

- Comecei há uns dois anos, mas só acabei mês passado. Não queria que desconfiassem do que eu andava aprontando.

- Como assim? Ninguém sabe que você construiu isso?

- Não. Você é a única pessoa além de mim que conhece o meu “esconderijo secreto” – ele fez aspas com os dedos ao falar.

- Caramba...

- Quer entrar ou vai querer mofar aqui fora?

- Entrar é uma boa idéia. – eu sorri.

Como a porta era baixa, tive que me abaixar. O interior da casa da árvore não era ruim; era até bem espaçoso, mas tínhamos que nos curvar um pouco para não batermos a cabeça no teto. Logo após passar pela porta, no lugar que em uma casa em tamanho e condições normais seria a sala, estava uma caixa de sapatos lacrada e, pendurado na parede, um quadro com a foto que todos os primos tiraram juntos na frente da casa de Jake.

Seguimos para o outro cômodo, que ficava logo depois de uma porta estreita. Era um pouco maior que o primeiro e no chão estavam dispostas três almofadas coloridas e largas. Encostado na dobra da parede estava um violão antigo e um que parecia ser um pouco mais novo. Havia também uma pasta azul meio transparente. Peguei-a rapidamente e espiei o conteúdo: cifras para violão. Pelo modo como estava abarrotada, parecia conter várias músicas. A primeira era a Marcha Fúnebre.

A parede estava completamente pixada. Havia desenhos de pessoas (Jake sempre foi exímio desenhista, assim como o irmão, Luke, que se formou em artes e a mãe, que fizera um curso de pintura em tela quando tinha sua idade), animais, paisagens e algumas formas abstratas, o que dava ao lugar um ar aconchegante, vivo e descontraído.

Minha atenção voltou-se para a última porta, da qual vinha uma claridade que só agora eu notara. Cheguei lá em cinco passadas e deparei-me com outra varanda, adornada com alguns dos galhos menos juntos da própria árvore. Como do outro lado, não dava para ver o solo abaixo da densa folhagem, mas o que me chamou a atenção foi o córrego que passava ali perto. Minha vista se prendeu na curva que o córrego fazia mais à frente, contornando a propriedade e se infiltrando nos terrenos do vizinho.

- Gostou? – perguntou ele ao meu lado. Não o ouvira chegar.

- Amei. A vista é linda, e fora os problemas de altura, a casa é bem aconchegante por dentro também.

- Que bom que gostou. – ele disse. – Assim, a gente pode voltar aqui mais tarde e dar um mergulho básico. Não se esqueça de colocar a roupa de banho.

- Que horas são? – perguntei.

- Cinco pra meio dia. Vamos chegar lá rápido, não esquenta. – ele tentou me acalmar.

- Mas... – eu estava preocupada com a hora, mas querendo entender também o que ele pensara em fazer. Sabia que aquela era a hora de perguntar. Jake pareceu entender minha luta interna.

- Calma... – ele me interrompeu. – a gente vai, almoça, depois, lá pra três a gente volta pra cá, dá um mergulho e... – ele se interrompeu – Bom, eu fiz alguns planos pra hoje. Mas é melhor a gente ir andando.

Concordei, com um misto de raiva por ele ter planejado meu dia sem me consultar e prazer, por ele querer passar aquele tempo (a sós) comigo.

Jake me ajudou a subir no “elevador” e baixou-me cuidadosamente até o chão. Observei atentamente enquanto passava pelo emaranhado de folhas e galhos para tentar enxergar a casa que aos poucos sumia como que engolida pela árvore.

Os cavalos estavam pastando quando ele desceu habilmente pouco depois. Como no celeiro, Jake me ajudou a montar Radar e depois saímos cavalgando o mais rápido que conseguimos fazer os cavalos correrem.

Chegamos à casa muito rápido, já que não enrolamos por entre as árvores. Tio Elliot ainda estava fazendo o almoço: lasanha de quatro queijos e lasanha bolonhesa, então Jake e eu ficamos na varanda, em uma das redes que estava armada.

Podíamos ver Ed e Fred brincando por entre as pequenas árvores frutíferas que cercavam a frente da casa e Ed depois veio ao nosso encontro anunciando que ia tomar água.

- Espera aí! – chamei.

Ele se virou.

- Faz um favor? Quando você entrar, pega a minha bolsa preta que ta em cima do sofá e trás pra mim? Só que toma cuidado... Tem coisa lá que quebra.

- Ta... Tanto faz. – foi a resposta.

Chris estava na sala assistindo a um noticiário e de vez em quando eu o ouvia balbuciar alguma coisa, como se estivesse falando com alguém (mas eu sabia que não havia mais ninguém lá a não ser ele mesmo) e os outros estavam nos fundos da casa, em volta da fornalha, conversando.

Ficamos nos embalando na rede, esperando, mas meu irmão demorou a voltar. De início fiquei preocupada, porém lembrei que a casa tinha duas portas de entrada e ele podia ter se distraído e saído pelos fundos e sem pegar minha bolsa. Resolvi então entrar para pegar a sacola eu mesma e Jake, como sempre, veio atrás de mim, novamente nervoso por ter de ficar no mesmo aposento que nosso primo. Eu não o culpava. Sentia-me da mesma maneira.

Passamos pela porta, olhamos pela cozinha e não vimos ninguém. Já estávamos indo lentamente para a porta que dava para o corredor que levava para a porta dos fundos para procurar meu irmão quando ouvimos um arfar leve vindo da outra porta, que dava para a sala, seguido por um choro abafado que não vinha da TV.

Desesperada, corri para ver o que era com Jake em meus calcanhares. Por um segundo parei atônita na porta. Chris de pé chacoalhando alguma coisa que me pareceu leve e frágil foi o que prendeu minha atenção e me fixou onde eu estava. A segunda coisa de que me dei conta era que minha bolsa estava no chão e Jake cruzando a sala num átimo para libertar o ser indefeso que se debatia inutilmente contra as grandes mãos de meu primo: Ed.

Jake se jogou nas costas de Chris que caiu de frente e por reflexo empurrou meu irmão contra a parede. Ed tossia e arfava, sufocado. Chris agora gritava, tentando a todo custo libertar-se da apertada gravata que Jake lhe aplicava, tirando-lhe o ar.

Chris passou a dar socos no ar com uma das mãos; um deles atingiu Jake no rosto e ele tombou de lado. Começou a luta corpo a corpo. Chris urrava e Ed chorava, amedrontado; com tanto medo quanto eu julgava estar.

Chris deu um soco no estômago de Jake que caiu, sem fôlego. Entrei em ação. Nunca havia praticado judô ou qualquer outro tipo de luta, mas fui tomada por um acesso de loucura momentânea.

Larguei Ed, encolhido no canto da sala e soluçando, e lancei-me de encontro a Chris, praticamente montando em suas costas, conseguindo, por milagre, imobilizar suas mãos contra o crânio. Fiquei pendurada ali até ele parar de se debater. A esta altura os outros já tinham entrado na sala e Jake já estava de pé com meu irmão no colo.

- Agora escute, Chris! Vou soltar você se prometer que não vai mais bater em ninguém! Deve prometer que não vai machucar mais ninguém! – eu estava quase gritando de fúria e medo e minha voz tremia.

Ouvi um pedido de desculpas sufocado e calculei que devesse ser meu tio, lamentando o infeliz incidente.     

- Você entendeu, Chris? Vai fazer o que eu disse? - perguntei novamente; a voz mais firme desta vez. Tentei não prestar atenção em meus espectadores enquanto negociava um final mais calmo para aquela manhã catastrófica.

Chris finalmente respondeu.

- Você ta me machucando. – ele disse; a voz embargada.

Suspirei, mas sem afrouxar as mãos.

- Desculpe. Mas você também me machucou. E machucou o Ed. E o Jake.

Ele finalmente se aquietou e curvou-se um pouco pra frente. Tentei de novo.

- Se eu te soltar você promete que não vai tentar machucar mais ninguém? – falei com um pouco mais de calma.

Ele assentiu com a cabeça.

- Prometa, Chris. – pressionei.

- Prometo. – disse ele por fim.

- Ótimo. Agora fique quieto que eu vou descer.

Olhei rapidamente ao redor. Havia sete pares de olhos me fitando. Os de Jake, pelo que percebi, eram os mais ansiosos. Tio Elliot me ajudou a descer, ainda constrangido. Eu agradeci e fui até o outro lado da sala (junto de Jake, que ainda estava com Ed no colo, acalmando-o) a pretexto de ver como estava meu irmão.

O clima do almoço foi tenso. Chris teve que almoçar dentro de casa, pois estava “de castigo”, enquanto nós (o resto) ficamos nos fundos, perto da churrasqueira, debaixo de um toldo desmontável que meu tio armara.

A lasanha de queijo (a única que eu comi – e repeti) estava ótima. Comemos devagar, conversando (menos Jake que, como sempre, ficou calado). Quando terminamos, minha mãe pediu para eu levar os pratos para a cozinha e pegar a sobremesa. Jake levantou-se de imediato.

- Pode deixar, - minha mãe disse, confusa – ela vai sozinha.

- Jake não faz nada, Rosa, deixe-o ir. – minha tia interpôs-se, preocupada comigo, suponho ou com esperança de que nós fôssemos conversar, o que de fato era quase certo que aconteceria (Jake em geral era um tagarela quando ficava a sós comigo).

Senti Jake aliviar um pouco ao meu lado e pegar alguns dos pratos que eu estava carregando, para melhorar a farsa de me ajudar e seguir, como sempre, um pouco na frente.

Pegamos o caminho mais longo, dando a volta pela casa a fim de “entrar direto pela porta da cozinha”. Quando viramos para o lado da casa que dava para o quarto de meu tio e perdemos os outros de vista, perguntei:

- Ainda dói...? O estômago, quero dizer.

- Não... O Chris só tem um belo gancho de direita. – brincou ele, mas deu pra ver por seu sorriso relutante que não era isso que ele quis dizer realmente.

- Ainda dói, não é? – falei, dessa vez mais séria.

Seu sorriso se desfez.

- Um pouco. Nada com que se preocupar.

Chegamos à porta que dava para a cozinha e Jake hesitou na entrada. Peguei seu ombro.

- Calma. Ele ta na sala. – sussurrei – Não vai acontecer nada.

Afastei-o um pouco para o lado e abri a porta, tentando não fazer muito barulho. A TV estava ligada e dava para ouvir um baixo som de talheres batendo, enquanto Chris comia.

- Espere aqui. – Jake murmurou em meu ouvido. – Eu já volto. Só vou pegar uma coisa. A sobremesa ta na geladeira.

Contrariada, obedeci e fui pegar a travessa de mouse de maracujá que tio Elliot havia preparado. Estava pegando os talheres depois de procurar que nem doida a gaveta certa quando Jake voltou da sala com minha bolsa, estufada, em uma das mãos.

- O que... – eu comecei, mas ele me interrompeu.

- Depois eu explico. Não podemos demorar. Eles acham que só viemos pegar a sobremesa.

- Tudo bem.

Voltamos para o toldo pelo corredor.

- Por que demoraram tanto? – perguntou Luke do outro lado da mesa.

- Não estávamos encontrando os talheres. – foi minha resposta imediata.

Meu tio riu um pouco e desculpou-se.

- Eu sei... A casa é meio bagunçada... – foi sua resposta.

Depois da sobremesa, Ed e Fred foram brincar no galinheiro e meu tio pediu para que eles alimentassem um pouco as galinhas. Já Jake disse que ia ficar um pouco com os cavalos e dar comida a eles também; quanto a mim, disse que ia assistir.

- Por que você não deixa a bolsa na sala? – perguntou minha tia para mim enquanto eu me virava.

Olhei para a bolsa, protelando, sem saber o que responder. Um passo em falso e ela saberia que estávamos armando alguma (não que eu achasse que ela fosse se opor a nossos planos para a tarde, sabendo que o filho sairia da aparente monotonia que tanto a preocupava).

- Ela pediu para eu pegar. Parece que a câmera dela ta aí e ela quer filmar os cavalos. – disse Jake com certo desdém. Corei involuntariamente.

- Hmmm... – Minha tia pareceu acreditar; ou então fingiu muito bem que caiu na nossa farsa (de qualquer forma ainda prefiro acreditar na primeira alternativa).

Andamos devagar até perto do galinheiro, onde a visão da casa era interrompida por uma cerca viva que seguia até o celeiro. Fora da vista do restante, desatamos a correr. Jake, pela terceira vez, ajudou-me a montar Radar e pegou minha bolsa depois de montar Nélia. Disparamos pelo caminho mais longo (que contornava a propriedade) para evitar sermos vistos e chegamos ao pé da árvore em tempo recorde (mais rápido que naquela manhã, ainda mais cedo).

Jake subiu rápido, e logo depois vi o elevador descendo por entre os galhos. Joguei minha bolsa dentro da gaiola e entrei, puxando-me para cima como fizera poucas horas atrás. Uma onda de felicidade me inundou quando mais uma vez pus os pés dentro do nosso mais novo refúgio.

- Quer comer a sobremesa? Acho que te raptei antes de você poder provar o mouse... – ele falou.

- Não faço muita questão do mouse. – entre comer a sobremesa e passar a tarde contigo, prefiro a segunda opção... Completei mentalmente.

- Bem, eu meio que roubei uns doces da geladeira... Se você quiser... – ele abriu minha bolsa.

- Você tem uma mania incorrigível de mexer no que não deve – eu observei.

Ele riu um pouco.

- É... Portanto, acostume-se.

Fechei a cara para ele e Jake jogou para mim um sonho de valsa. Comemos em silencio nosso chocolate e Jake pegou um dos violões que estavam na parede.

- Pra que dois violões? – perguntei curiosa como sempre.

Ele não respondeu e começou a tocar a Marcha Fúnebre.

- O que foi? Algum problema?

- Não... É só que... Bom... Eu tava pensando... Se você quisesse... Bem, eu poderia te ensinar... Sabe? A tocar.

Percebi a incerteza em sua voz e tentei parecer tranqüila.

- Adoraria tentar aprender, professor. – depois peguei o outro violão e com cuidado comecei a tocar acordes inexistentes, produzindo um som terrível. Jake fez uma careta:

- Temos muito com o que trabalhar aqui, pelo visto.

Ele tinha uma paciência fenomenal. Fiquei meia hora tentando aprender o Dó Maior, e tudo o que saia era um ruído que mais parecia um grito de protesto do próprio violão, completamente diferente do som que era emitido quando Jake tocava.

- Chega por enquanto. – eu disse, exausta.

Apoiei o violão na parede, do jeito que ele estava ao entrarmos e peguei a almofada onde eu estava sentada. Fui até a sacada que dava para o córrego e coloquei a almofada no chão de modo a parecer um travesseiro, deitei-me e fiquei sentindo o sol esquentar meu rosto.

Jake veio logo em seguida, com sua almofada, deitando-se ao meu lado. Ficamos deitados naquela posição até uma nuvem pequena cobrir rapidamente o sol. Jake olhou o relógio de pulso: cinco e meia. O tempo voara.

- Venha. – ele falou, me ajudando a levantar.

- Aonde vamos?

Ele sorriu:

- Nadar um pouco.

- Mas... O sol já vai se por... Não é melhor nós irmos pra casa e voltarmos amanhã?

- Você só ta enrolando.

- Talvez porque a água esteja fria? – perguntei com a maior quantidade de sarcasmo que consegui reunir.

- Você faltou a quantas aulas de física? Ou será que os índios não sabem que quanto mais tarde, mais quente a água fica, devido ao elevado calor específico dela?

- Pode ser verdade. E o pessoal de Belém não é um bando de índios. – falei com raiva.

Ele suspirou.

- Desculpe. – ele murmurou – Mas você pode confiar em mim, por favor?

Foi minha vez de suspirar.

- O que você quer que eu faça?

- Dê um mergulho comigo. – ele foi direto.

            - Mas... – eu comecei a objetar.

- Espere... Nós vamos, damos um mergulho e, se a água estiver fria demais ou incomodando, você sai, se enxuga e voltamos pra casa.

Devo admitir que a oferta era tentadora.

- Fechado. – concordei.

O sorriso que ele abriu quase me fez voltar atrás. Quase.

Descemos da árvore e Jake foi até a margem do riacho e colocou os pés na água.

- Venha, Zoey! – ele me chamou.

Cheguei mais perto e pude ver que a parte onde ele estava era rasa, provavelmente para eu colocar os pés e verificar se a temperatura me agradava. Tirei os chinelos e caminhei lentamente pela areia fria (graças à sombra da árvore) até um leve deslize na margem do riachinho por onde Jake me ajudou a descer.

Pus os pés na água e verifiquei, para meu espanto, que a temperatura era agradável como a água morna de um chuveiro elétrico ou a da piscina de água quente do tio Elliot.

Até então eu não havia levantado o olhar. A água era tão clara, que eu me desliguei e nem percebi quando Jake tirou a camisa e voltou para o meu lado; a mão em minha cintura, guiando-me mais para o fundo.

- O trato era nadar – ele me lembrou. – não molhar os pés.

Desvencilhei-me atordoada com a súbita proximidade.

- Não acho que vá ser melhor pra mim, nadar com tudo isso de roupa. – lembrei-o, indicando minha jaqueta e meu bermudão cor de lama.

Ele riu de leve, deu dois passos pra trás, subindo na areia, saiu correndo e pulou da água, espirrando algumas gotas em mim.

- Acho que é melhor você tirar essa muda de roupa. Eu deixei minha camisa num dos galhos. Você pode fazer o mesmo. – ele disse quando levantou a cabeça.

Fui até a parte de trás da árvore e tirei a blusa rapidamente, evitando pensar muito no pior dos assuntos: eu, de biquíni (havia trocado de roupa pouco antes do almoço). Eu nunca fui gorda, mas algumas gordurinhas indesejadas davam no que se falar. Continuei de bermuda (era um mau hábito meu nadar de short), peguei distância e saltei, parando a poucos centímetros de Jake, que tinha acabado de levantar a cabeça para recuperar o fôlego depois de um mergulho.

A maior parte do tempo nós ficamos boiando, deixando a força da água nos levar para cada vez mais longe da nossa árvore para depois voltarmos nadando contra a correnteza. Numa dessas vezes, Jake me puxou pelo pé para eu parar.

- Tem um lugar mais pra lá que eu gosto. – ele apontou para o riacho mais a frente.

Já estava quase totalmente escuro e eu não me senti à vontade com a idéia. Também não queria pegar um resfriado: tinha começado a esfriar mais rápido.

- Hoje não. – falei, e saí da água. – Trouxe toalha?

- Ta lá em cima. Acho que você não vai querer subir. Espera aqui, eu já volto.

Jake subiu pela quarta ou quinta vez naquela árvore e trouxe dessa vez a minha bolsa.

- O que você colocou aí, afinal, pra coitada ficar tão abarrotada? – eu perguntei, lutando contra o zíper estufado.

Minha bolsa não era pequena; parecia uma mini sacola de viagem e mesmo assim dava a impressão de que a qualquer momento iria explodir.

- Uma toalha pra ti, os bombons que a gente comeu, meu celular desligado só pra minha mãe ver que eu não o deixei na casa e ficar mais tranqüila, e sua câmera, para melhorar a farsa de filmar cavalos. – ele sorriu com a lembrança.

- A única coisa que eu não gostei é que toda vez sou eu quem banca a idiota.

Ele riu. Acho que eu tenho cara de palhaça.

- Vamos... É melhor a gente voltar. Já está escuro.

Eram quase sete da noite quando entramos (cabelos e calças molhadas) pela cozinha. Minha tia estava vendo TV na sala, acompanhada dos outros, exceto Chris, que estava no quarto, e os caçulas, que nós vimos brincando na varanda da frente. Ninguém notou nossa chegada, então voamos para o banheiro.

A suíte que meu tio emprestara para minha mãe, meu irmão e eu dormirmos era enorme. Tinha uma televisão de 40 polegadas, uma cama de casal imensa, um colchão de ar para uma terceira pessoa dormir, e o banheiro era embutido na parede, com uma porta que parecia ser só mais um guarda-roupa da fila que cobria toda aquela parede. Apressei-me a trocar de roupa e enxugar os cabelos o máximo que pude. Escondi a roupa molhada na mochila de Jake (ninguém a abria) e saímos pelos fundos, contornando a casa e indo nos sentar na rede que estava armada na varanda.

- Quais os planos pra amanhã? – perguntei já ansiosa.

- Não sei... – ele disse – Na verdade eu tinha alguma idéia do que fazer, mas hoje nós só fizemos o que eu queria... Pensei que você fosse querer escolher.

- Adorei o passeio de hoje... Achei que você tinha dito que queria me levar pra um lugar que você gostava... – eu lembrei.

Ele deu um meio sorriso e eu senti uma pontada de inveja. Seus dentes eram tão brancos, tão certinhos e ele nunca usara aparelho dental ou fizera clareamento...

- Talvez eu possa te mostrar amanhã... Vai agüentar a água fria?

- Pode ser... Pelo menos, vai estar sol.

- Tem razão...

Ele deitou com a cabeça no meu colo e eu comecei a balançar a rede com meus pés. Ficamos naquela posição até que eu vi a luz da cozinha acender.

- Vem alguém aí... – eu falei com um suspiro.

Ele se sentou de imediato. Às vezes nossa família era tão inconveniente...

- Jake? - minha tia chamou de dentro.

- Aqui fora. – ele respondeu. A voz sem vida, como em todas as vezes que eles se falavam.

- Já voltaram? Ficaram fora por um bom tempo, hoje. – tio Elliot, que aparecera na soleira da porta, comentou. – De qualquer forma, vocês chegaram bem na hora... Vamos jantar agora, e o Chris quer fazer uma apresentação pra gente e quer que vocês assistam... Ele ensaiou isso a tarde toda.

- Bem... A gente assiste ao show. Mas agora não. Eu to com um pouco de fome. – eu disse.

Jake comeu rápido e foi pra sala, assistir um pouco à TV enquanto eu comia o resto do mouse de maracujá do almoço (tia Marge - apelido da mãe de Jake - escondera um pouco da torta do almoço, para Fred não comer). Quando todos estávamos satisfeitos fomos para a sala onde Jake ocupava propositalmente o lugar de duas pessoas e Chris aguardava impaciente nossa chegada. Deixei que todos se sentassem e depois bati na perna de Jake mandando-o se afastar com um “chega pra lá”. Acomodei-me ao seu lado e Chris começou sua apresentação.

O resto da noite não foi nem de longe tão interessante quanto o resto do dia. Minhas pernas estavam entorpecidas e meus braços doloridos de tanto subir e descer naquele elevador manual.

            Jake e eu ficamos conversando na rede da varanda. Eu estava usando meu moletom grosso vermelho e uma calça de lycra preta. Jake havia pegado uns edredons do quarto em que ele iria dormir e ficamos cobertos (o vento que batia era gélido e me deixava arrepiada) conversando por um longo tempo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

por favor! comentem! não cai a mãe e eu fico muito feliz, mas sinceridade!!