Segredos Submersos escrita por lovegood


Capítulo 41
Os Campos de Asfódelos




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Naquela noite, fui a primeira de todos a ir dormir. Despedira-me de Thalia, Nico e Annabeth relativamente cedo na hora do jantar (“Onde Percy está?” perguntou Nico, e eu dei de ombros, como se não soubesse responder) e logo fui ao chalé de Poseidon.

Tentei ler por alguns minutos, mas minha cabeça estava tão cheia de pensamentos que eu mal conseguia me concentrar – as palavras pareciam voar em minha frente e a cada instante eu tinha de ler duas ou três vezes o mesmo parágrafo.

Fechei o livro com um estrondo ao acabar lendo quatro vezes a mesma seção que explicava o porquê da eletricidade não funcionar nos territórios de Hogwarts. Apaguei as luzes e enfiei-me na cama. Fechei os olhos com força, revirei-me no colchão diversas vezes e por um longo tempo o sono não veio.

Por volta de uma hora depois de eu ter me deitado, a porta do chalé se abriu com um rangido e ouvi os passos de Percy ecoarem no piso. Involuntariamente segurei a respiração. Virei-me para o outro lado, de modo que ele não visse que eu estava acordada, e ainda assim fechei os olhos, fingindo dormir. Eu ainda não teria a coragem de falar com ele sobre o que acontecera durante o pôr do sol.

Percy andava em passos baixos pelo chalé. Talvez pensasse que eu dormia e não quisesse me acordar. Fez poucas coisas e logo fui capaz de ouvir ele se dirigir à cama. Deitou-se e respirou profundamente, antes de ajeitar o cobertor.

Permaneci de olhos fechados, mas ainda atenta ao redor. Fiquei nessa mesma posição por um longo tempo, e durante ele tive a impressão de que Percy também não dormia.

Quando finalmente o sono chegou, eu sonhei.


Não com praias ensolaradas ou uma cidade italiana deserta, muito menos com Morfeu ou Poseidon ou minha mãe ou Rachel ou qualquer outra coisa.

Sonhei com um ático em péssimo estado, de paredes e teto feitas de ripas de madeira, o cômodo vazio. Eu estava de pé novamente no lugar que William Wilson, a comando de Pallas, tinha me prendido; o mesmo lugar de onde Annabel Lee e Auguste Dupin e Marie Roget – entre tantas pessoas com nome de personagens de Edgar Allan Poe – me ajudaram a fugir.

Ainda assim, por mais que o lugar tivesse a aparência física do esconderijo de Pallas, não era realmente aquele o local que eu estava sonhando. Era o tipo de coisa que naturalmente acontece em sonhos; você sonha com um lugar específico e sua mente insiste em dizer que é o lugar x, em nenhum momento do sonho você duvida que aquele não seja o lugar x. É só quando você acorda que tudo se torna perceptível – sonhei com o lugar x, mas em momento algum ele realmente se parecia com o verdadeiro lugar x. Então por que as mentes, durante o sono, sempre confundem? Criando aparências novas e impossíveis a locais já conhecidos?

Era isso que estava acontecendo comigo. A aparência do lugar era o esconderijo de Pallas e seus seguidores bruxos, mas a própria realidade onírica a minha volta – por Merlin, minha própria mente também – insistia que aquele era o Mundo Inferior. Ou, pelo menos, uma parte dele.

Isso foi comprovado após eu sair pela porta do cômodo e descer as escadas que tanto aparentavam ser as escadas da casa abandonada. Ao invés de chegar ao andar inferior cheio de corredores que eu conheci durante a fuga pela construção, deparei-me com um gigantesco espaço aberto e de grama a minha frente.

Era como um campo, imenso e que parecia estender-se ao infinito. Acima de mim, parecia haver o céu, mas tive a forte impressão de que não era isso. Era escuro – como se fosse noite – e aparentava dobrar-se em direção à eternidade, e por mais grandioso que fosse, era simplesmente... diferente do verdadeiro céu. E estranho. Olhar para a vastidão daquele campo trazia-me uma áurea fúnebre e depressiva. Conforme andava pela grama escura e quase morta, tive inúmeras vezes a sensação de presença de coisas ao meu redor. Sussurrando e caminhando, como sombras, arrastando-se para o vazio.

Aquele lugar parecia um gigantesco paradoxo, simultaneamente esvaziado e cheio daquelas presenças. Seriam espíritos? Possivelmente.

Um arrepio percorreu meu corpo, ao passo que as vozes e sussurros das entidades se arrastavam em direção a minha mente, subindo por minhas pernas, passando pelos meus lados, entrando por meus ouvidos. Olhei ao longe, ainda mais para dentro, e encontrei duas figuras familiares.

O ruivo alto e o moreno de óculos e cicatriz na testa eram as únicas coisas que emanavam um pouco de vida àquele lugar. Corri em sua direção, e ao aproximar-me, reparei na forma em que seus olhos haviam mudado. Como se a esperança e o brilho houvessem sido roubados repentinamente, ao se depararem com esse campo pela primeira vez.

– Harry? Ron?

Eles olharam em minha direção e aquele arrepio percorreu meu corpo outra vez.

Ergui uma mão, querendo tocá-los e certificar-me de que estariam ali. E estavam.

– Vocês estão vivos? – perguntei. Os dois se entreolharam.

– Eu diria que sim – respondeu Ron e um alívio percorreu meu corpo. – Senão já teríamos saído daqui há algum tempo. Sabe como é, Mione, isso aqui é quase como um limbo. Não somos espíritos e portanto não temos permissão para ir aos níveis mais profundos.

– Estou realmente falando com vocês?

Os dois se entreolharam e não me responderam. Ao mesmo tempo senti-me feliz e desesperada. Feliz por eles estarem vivos (Tânatos então apenas os levara ao Mundo Inferior, sem roubar suas almas), desesperada por perceber que ambos estavam condenados a vagar por aquele campo cheio-e-ao-mesmo-tempo-vazio, sem progresso.

– Isso é o Purgatório? – voltei a questionar. Harry deu de ombros.

– É o que os trouxas e mortais chamam. Descobrimos que, para os olimpianos, é o chamado Campo de Asfódelos.

Apenas assenti, sem saber o que mais dizer. Ficamos nos encarando por mais algum tempo. As vozes das entidades aumentavam progressivamente o volume em minha mente – de sussurros para guinchos e, agora, começando a se tornarem gritos e berros desesperados. Harry e Ron perceberam minha inquietação.

– Os gritos incomodam, não é? – disse Ron. – Acontece com as visitas indesejadas. Nenhum de nós deveria estar aqui, não é? Afinal, nenhum de nós está realmente morto. Eles fazem isso em resposta a sua presença; não somos desejados aqui dentro. Por isso, Hermione, não se demore.

Eu já sentia o cenário ao meu redor começar a borrar e a realidade se distorcer. O sonho estava prestes a acabar.

– Não posso levar vocês dois comigo? – perguntei, mesmo sabendo a resposta. Harry e Ron apenas a validaram, ao negarem com a cabeça. – Mas então é isso? Vocês vão ficar condenados a vagar por esse campo pela eternidade, com essas vozes gritando em suas mentes até os enlouquecerem?

Eles se entreolharam e deram de ombros, como se quisessem me reconfortar. Os sorrisos fracos no canto de suas bocas pareciam dizer “não se preocupe conosco, estamos bem”, mas era possível ver que seus olhos imploravam para serem tirados dali.

Senti uma leve vertigem e tudo ao meu redor borrou outra vez. Parecia haver algo ali empurrando-me para fora do sonho, querendo forçar-me a acordar. Mas eu não podia. Tinha de ver Harry e Ron pela última vez, por um tempo maior. Aquilo não era o suficiente, não quando os dois sorriam, mas seus olhares gritavam desesperadamente.

– O que eu posso fazer para tirá-los daqui? – falei, sentindo um bolo subir pela garganta. A realidade se distorcia e distanciava-me de Harry e Ron. Senti o toque gelado das entidades e sombras roçarem meu corpo e começarem a empurrar-me para trás, cada vez mais longe. Ron murmurou algo inaudível

(seus lábios disseram “Não há nada a se fazer”)

e Harry teve de gritar para que eu o ouvisse, por cima de todas as vozes que congelavam meu cérebro:

– Tome cuidado! Porque ele disse que a Morte Vermelha está próxima!


Foi com essas últimas palavras martelando em minha cabeça

(E a vida do relógio de ébano se extinguiu junto com a do último folião. E as chamas dos tripés expiraram. E as Trevas e a Dissolução e a Morte Vermelha estenderam seus ilimitados domínios sobre eles todos, um dia Edgar Allan Poe escreveu e o deus titã da guerra recitou para mim, enquanto torturava-me com a maldição Cruciatus)

que eu acordei, arfando e encoberta de suor.

Nos primeiros minutos após acordar, senti em meu corpo ainda os fantasmas dos toques das entidades sussurrantes condenadas a vagar pelo Campo de Asfódelos.

Olhei ao redor. Já havia amanhecido – o dia estava claro e incrivelmente bonito, o sol que no dia anterior havia desaparecido iluminando meu rosto contra o de Percy já brilhava lá no alto – e Percy já tinha acordado. Eu estava sozinha no chalé.

Afastei o cobertor rapidamente e troquei de roupa, logo depois correndo em direção ao pavilhão de refeições. Provavelmente alguns estariam tomando café da manhã.

Ignorei alguns dos olhares que se puseram sobre mim assim que cheguei, afobada pela corrida. Agarrei Annabeth pelo pulso, puxando-a para fora da mesa de Atena, e levei-a em direção à mesa de Zeus, onde tanto Thalia como Percy e Nico estavam sentados.

Todos – Annabeth em especial – me olhavam com um ar de indagação. Arranquei uma torrada da boca de Nico quando ele franziu as sobrancelhas para mim.

– Sonho ruim? – indagou Thalia. Assenti.

– Muito grave? – desta vez foi Nico quem perguntou. Assenti outra vez.

Suspirei e esfreguei os olhos com as mãos, os cotovelos apoiados na mesa.

– Tenho de contar com todos juntos – comentei, pegando um copo de suco de laranja para tentar acalmar os nervos. – Com Quíron também, de preferência.

Eles entenderam a gravidade e concordaram, sem qualquer objeção.

Comemos rapidamente, jogamos o que havia sobrado na fogueira como oferenda aos deuses e nos dirigimos à Casa Grande.

Ao chegarmos lá, não pude deixar de sentir uma breve sensação de déjà vu formigando em meus dedos. Tanto Quíron como Sr. D. estavam lá e toda essa situação fez-me lembrar do último dia antes da missão, logo após eu ter chegado de Hogwarts. A única diferença era que tanto Rachel como Harry e Ron não estavam lá.

Contei rapidamente a Quíron o que acontecera em meu sonho – Harry e Ron estarem abandonados no Campo de Asfódelos, entre a vida e a morte sem possibilidades de sairem de lá, e o que eles haviam dito sobre Pallas, sobre a Morte Vermelha estar próxima.

– Agora que nós terminamos a missão e a profecia se completou – disse eu – acha possível que Pallas esteja fazendo uma ameaça?

– Absoluta certeza, Hermione – disse Quíron sem pestanejar.

– Quero dizer uma ameaça a curto prazo.

O centauro ficou em silêncio, alisando a barba com uma das mãos. Gesto claro de preocupação.

– Bem, em relação a isso não há como saber. A única coisa que dá para ser feita é esperar. Esperar e estar preparados.

Eu sabia que aquela de fato era a única certeza que tínhamos, mas ainda assim não consegui evitar que uma onda de desapontamento passasse por mim. Precisava urgentemente de mais informações.

– Não há alguma forma de irmos ao Mundo Inferior resgatar Harry e Ron? – voltei a perguntar, tentando agarrar-me à esperança. Olhei para Nico avidamente. O filho de Hades deu de ombros.

– Olha, chegar lá é até fácil – disse ele – o problema é o que fazer após chegar. E, honestamente, Hermione, eu acho meio improvável que consigamos resgatá-los.

– Por quê? – eu sentia o sangue começar a ferver.

– Porque eles não estão mortos, portanto estão sendo mantidos como prisioneiros! E muito provavelmente por Tânatos. Ser mantido como prisioneiro é a pior forma de se estar no Mundo Inferior se algum dia você espera ser resgatado, ainda mais no meio do Campo de Asfódelos, que é basicamente o Purgatório.

Meus punhos se cerravam com a raiva crescente.

– Eu sei que isso é uma merda, Hermione, de verdade – continuou Nico. – Mas não vai ser possível, pelo menos não por enquanto. Eles serem capturados pela Morte já estava dito na profecia, tentar resgatá-los agora, enquanto nenhum conflito ainda foi resolvido, seria negar o Oráculo. Sério, eu sinto muito mesmo. Já passei por situações parecidas, principalmente em relação a minha irmã Bianca, e eu sei o quanto é frustrante, mas...

A voz de Nico foi aos poucos morrendo. Respirei fundo e assenti.

– Tá, eu entendo. Mas você disse “não por enquanto”. Quer dizer que, quando nós conseguirmos terminar tudo isso e Pallas for derrotado... – comecei a falar.

Se vocês conseguirem terminar tudo isso – interrompeu Sr. D., falando por cima de uma lata de Coca Diet. Quíron fez-lhe um aceno para que ficasse quieto, e eu apenas o ignorei.

– ... há alguma maneira de resgatá-los?

Nico suspirou, parecendo cansado também.

– Sim. Há como fazermos isso. De qualquer modo, o jeito mais fácil ainda é esperar que Tânatos resolva soltá-los.

– Tudo bem – disse eu, embora sentisse que nada estivesse bem.

Quíron havia dito que a única forma de saber quando Pallas avançaria seria esperando. Esperando e estando preparados. Para tanto, disse que a partir de já o treinamento intensivo no qual os campistas já estavam submetidos prosseguiria sendo colocado em prática.

Pelos próximos dias, eu e meus amigos já estávamos realizando atividades junto com os outros campistas. Ainda havia dinâmicas como o pique-bandeira, por exemplo, mas realmente mais intenso. O nível de esforço a que tínhamos que praticar chegava a assustar, às vezes. Era quase como se houvéssemos voltado ao nível de correria da missão. Só que sem a ameaça iminente de morte, é claro, por mais pesado que os treinamentos fossem – no final das contas, aquelas eram simulações.

Não esperávamos, porém, que a Morte Vermelha chegasse assim tão rapidamente. Em uma questão de oito dias, para ser mais específica.

Era o primeiro de outubro – quem diria que há um mês eu estava embarcando no Expresso de Hogwarts, sem ter ideia do que as próximas semanas trariam para mim? – o dia em que aquela paz momentânea foi posta ao fim.

A princípio tudo começara normalmente. O sol estava no alto, havíamos tomado café da manhã, o ar estava repleto de risadas e um clima de descontração. Haveria outra das dinâmicas logo antes do almoço; se seria pique-bandeira ou qualquer outra coisa, eu não sabia.

Eu estava com Thalia no chalé de Zeus, terminando de ajudá-la a preparar alguns de seus armamentos, afinal, ela era a única daquele chalé. (Claro que Nico também estaria sozinho, e no chalé de Poseidon havia apenas eu e Percy, mas ainda assim.) Ela me mostrava o funcionamento de suas flechas elétricas quando o ar estremeceu após um forte estampido vindo ao longe.

Era como se um gigante estivesse aos poucos se aproximando, em passos breves e altos. A cada estampido que se seguia – bump, bump! – o ar parecia estremecer e oscilar.

Eu e Thalia nos levantamos simultaneamente e nos entreolhamos. Silenciosamente, ela questionou: o que diabos está acontecendo?

Dei de ombros e ambas de nós já estávamos atentas. Fomos à porta do chalé. Os vários campistas que por ali estavam também exibiam olhares de confusão, puxando algumas armas para perto de si.

Outro estampido grave, desta vez mais próximo. A realidade oscilou outra vez. Senti Thalia dar um breve puxão em minha manga – sinal de anda, vamos logo. Era como se eu houvesse acordado de um transe. Saímos em passos rápidos do chalé de Zeus. Passamos rapidamente pelo de Poseidon, onde peguei minha varinha e a faca celestial. Percy e Nico estavam lá, com os mesmos olhares de receio e dúvida.

Eles se juntaram a nós sem dizer nada, ao passo que avançávamos em direção aos limites do Acampamento, para a entrada demarcada pelo pinheiro. Todos os campistas, incluindo Quíron e Sr. D, iam naquela direção.

Outro bump!, desta vez seguido de um ruído – gritos, mas não de desespero ou de dor; gritos determinados e com um propósito – que parecia coletivo. Como um exército travando seu grito de guerra. Pude perceber que todos as pessoas que agora se aglomeravam comigo na entrada do Acampamento empunharam suas armas, por mais que em seus olhos houvesse medo.

Os barulhos graves e gradativamente mais altos faziam o campo de força que envolvia o Acampamento – geralmente invisível – também oscilar, piscando e tornando-se visível a cada vez por poucos segundos.

A respiração de todos parecia estar presa na garganta. Nem uma única alma parecia se movimentar entre nós. E, menos de dois minutos depois, as fontes de tais barulhos se tornaram possíveis de ser vistas.

A pelo menos oitocentos metros além do Acampamento, descendo uma alta colina, diversos homens – seriam apenas seres humanos? Daquela distância eu não conseguia perceber tantos detalhes – corriam em nossa direção, bradando armas e soltando gritos de guerra. Deviam ser pelo menos cinquenta.

Não eram os homens que mais pareciam preocupar, porém a coisa que vinha atrás deles, com eles.

Era difícil não percebê-la, do tamanho que era. Antes de tudo, era laranja berrante com listras negras. Segundo que, mesmo daquela distância, dava para ver que ela não andava – se arrastava. Parecia ser uma serpente, não com a cabeça rente ao chão, mas constantemente levantada, o que parecia aumentar consideravelmente suas dimensões.

Espere. Não com a cabeça rente ao chão? Ah, é.

Esqueça o que eu disse.

Não com as cabeças rentes ao chão, porque nela haviam três.


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