Fate - Supremacy Rota Um: Desejo escrita por Goldfield


Capítulo 9
Desejo, Dia 08: Reminiscência




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Desejo, Dia 08: Reminiscência

         Ele se encontrava deitado sobre o solo árido, sem nem mesmo ter tirado a armadura, vencido pela exaustão. Próximo a si, o cadáver do dragão jazia inerte, sangue escorrendo de sua mandíbula réptil e da ferida causada pela lança em seu peito. Suas escamas ardiam sob o sol escaldante, e o cavaleiro, após o esforço empreendido para derrubar a besta, mal tinha forças para se levantar devido ao calor e à sede.

         Com sua visão quase cegada pelo impiedoso astro do dia, estava prestes a fechar os olhos e perder os sentidos, derrotado de vez pelo cansaço... até que o reconfortante frescor da água chegou-lhe aos lábios, ele os abrindo para que o líquido da vida penetrasse em sua garganta. E, com seus olhos voltando a enxergar de forma nítida, viu a donzela que salvara há pouco, uma sincera expressão de gratidão em seu lindo rosto, despejando o conteúdo de uma jarra em sua boca. Só então pôde admirar de perto seus encantos: os cabelos negros afáveis como seda, os olhos brilhantes como esmeraldas, o belo corpo tornado ainda mais atraente por seus trajes riquíssimos...

         Recuperando suas forças, o cavaleiro sussurrou, conseguindo fazer uso de suas antes ressecadas cordas vocais:

         - Não há palavras que possam demonstrar minha gratidão...

         - Descanse, nobre guerreiro – ela respondeu em tom terno. – Me salvaste... e agora eu o salvo.

         Tendo então o corpo relaxado, ele fechou os olhos...

* * * * *

         E Jorge abriu os seus, acordando.

         Levantou o tronco e passou uma das mãos pela cabeça. Aqueles sonhos estranhos de novo. Será que nunca deixaria de tê-los? O pior é que vinham se intensificando, principalmente após sua aprovação no vestibular. E sentia que, pensando neles e em seu incógnito significado, acabaria por ser atrapalhado em seu papel como mestre naquela guerra pelo Graal...

         - Hipólita?

         A serva encontrava-se sentada no mesmo canto do quarto, cabeça erguida e braços sobre os joelhos. A impressão que o rapaz tinha era que ela nunca dormia – e isso chegava a incomodá-lo um pouco. Do lado de fora, céu nublado. Mais um dia de chuva pela frente, depois da breve estiagem da noite anterior.

         - Sim, mestre? – ela replicou em meio às sombras que dominavam o quarto.

         O estudante acordara antes de seu despertador tocar. Sete e vinte – sendo que o horário programado era sete e meia. Bom. Poderia se arrumar e tomar café sem muita pressa, pegando o ônibus das oito no ponto ali perto. Só esperava que Berserker não possuísse fome tão voraz aquela amanhã a ponto de devorar mais um bolo inteiro...

         Jorge conseguiu trocar de roupa e efetuar sua higiene matinal sem contratempos, indo então fazer uma breve refeição com sua serva. Baloo e Marcos novamente dormiam trancados em seus quartos após uma noite de festa e muita cerveja. O calouro não queria estar na pele de alguém com uma ressaca como a que eles deveriam estar enfrentando...

         Para alívio do jovem mestre, Hipólita se satisfez com duas fatias de pão com margarina. Ele comeu apenas uma, já que não sentia muita fome. Pensou que seria bom, ao final daquele dia, deixar algum dinheiro com os veteranos para compensar o que ele e a guerreira vinham consumindo da despensa do apartamento. Agora que Petruglia lhe fornecera recursos, seria mais fácil lidar com tais questões.

         Após terminarem, os dois se dirigiram rapidamente até o ponto de ônibus avenida abaixo. Passando pela cachoeira, constataram que o volume de água estava muito maior que o normal – levando a crer, junto com as poças pelo asfalto, ter chovido durante a madrugada. Chegaram à parada quase em cima da hora, o circular nela encostando praticamente um minuto depois. Jorge subiu com o motorista xingando os passageiros atrasados como sempre. Berserker, oculta em sua forma espiritual, atravessou a catraca e foi se acomodar ao fundo do veículo junto com seu mestre – como também ocorrera no dia anterior.

         Quando o transporte passou pelas árvores no topo da elevação de onde se precipitava a queda d’água, tanto o garoto quanto a amazona puderam ver, de relance, um par de aves negras voando para longe, como se espantadas por eles...

         - Os corvos, de novo! – o estudante murmurou irritado.

         - O servo a quem pertencem está de olho mesmo em nós, pelo visto – Hipólita afirmou.

         E só nesse instante Jorge se deu conta: ela voltara a falar consigo, após ter permanecido tanto tempo calada anteriormente. Uma coisa que lhe causava, sem dúvida, imenso alívio.

         O ônibus chegou à Unesp depois de cerca de vinte minutos. A dupla desceu no ponto em frente ao campus e, calmamente, atravessou a rotatória para adentrar o portão. Já deste podia-se constatar que a faculdade se encontrava bem vazia naquela manhã de sexta-feira, o céu cinzento contribuindo para dar ao local uma aura quase de abandono. Cruzando com um ou outro funcionário – sem ver ali qualquer pessoa além de si que lembrasse um aluno – Jorge dirigiu-se até a frente da biblioteca ainda fechada, pondo-se a esperar perto da porta pela chegada de Petruglia, a qual poderia ainda demorar meia hora a aparecer. Berserker, ao seu lado, aparentou assumir mais uma vez sua postura silenciosa, enquanto o mestre tentava imaginar o que a professora lhe explicaria aquele dia...

         - Você chegou cedo – uma conhecida voz feminina veio de trás do rapaz, fazendo-o quase pular de susto.

         Voltando-se na direção da fala, o jovem deparou-se com a figura de Daniela, aproximando-se em sua cadeira de rodas. Realmente não esperava vê-la ali, tudo indicando que ela já se encontrava no campus há algum tempo, abordando agora o aluno ao percebê-lo. Trocando olhares entre a docente e a entrada da biblioteca – no vidro da qual havia pendurada uma placa vermelha com a inscrição “Fechado” – Jorge inquiriu, um pouco confuso:

         - Nós vamos usar a biblioteca para alguma coisa? Se for, ela está fechada ainda!

         - Exato – Petruglia replicou séria. – Por isso mesmo defini este horário, e fico ainda mais satisfeita por ter chegado antes do previsto. Ela está fechada para os alunos, mas os funcionários já estão lá dentro trabalhando. Prefiro que o mínimo possível de pessoas nos veja juntos. O fato de a faculdade estar vazia hoje também contribui a nosso favor.

         Ele franziu as sobrancelhas, estranhando a alegação da idosa. Referente à mesma resolveu perguntar, enquanto caminhavam até a entrada:

         - Por que não quer que nos vejam? É por causa da guerra?

         - Também. Não sabemos se há algum outro mestre aqui na Unesp, e seria fácil para ele ou ela deduzir que você também é um observando uma maga como eu andando em sua companhia. Porém não é somente isso. Neste campus as paredes têm ouvidos, e qualquer coisinha vira motivo de fofoca e maledicência entre os docentes. Possuo inimigos dentro do Departamento de História, e o fato de uma livre-docente estar na companhia de um calouro recém-matriculado geraria uma quantidade enorme de boatos. É melhor nos encontrarmos aqui no campus, fora de sala, somente quando houver ninguém ou quase ninguém por perto.

         - Certo...

         O garoto conseguiu ocultar o fato de ter ficado um pouco assustado diante da explicação – e com a segunda parte, ao invés da primeira. Então o meio acadêmico era assim? Imaginava os professores de uma universidade como indivíduos bem mais maduros e centrados... Ao que tudo indicava, não era bem daquela maneira...

         Refletindo acerca disso, ele, Daniela e Hipólita adentraram a biblioteca.

         O recinto estava quase vazio, com exceção de dois ou três funcionários preparando a abertura do local para os estudantes – ainda que o fluxo de pessoas aquele dia, com tamanha ausência no campus, não prometesse ser muito intenso. Atrás do balcão de atendimento – separando os visitantes do vasto acervo de livros – havia uma simpática moça efetuando cadastramento de alguns volumes. Conforme se dirigiam até ela, Petruglia perguntou a Jorge:

         - Sua carteirinha para empréstimo não ficou pronta ainda, certo?

         - Não ficou. Só daqui alguns dias, pelo que me falaram na matrícula.

         - Então espere aqui.

         Tomando a frente do aluno, Petruglia avançou até a atendente. Trocou com ela algumas palavras, a jovem parecendo contrariada provavelmente devido à biblioteca ainda não ter aberto... Mas por fim aparentou ceder, sorrindo para a professora enquanto ela passava pelo portal metálico levando às estantes, munido de sensor para que volumes não fossem delas extraviados.

         Jorge ficou para trás aguardando junto com Berserker. Permaneceu alguns minutos de pé, olhando para um bonito quadro numa das paredes representando uma pintura egípcia, mas acabou se entediando e sentou-se junto a uma mesa que continha exemplares de jornais e revistas. Folheou alguns deles, uma das manchetes francanas tratando de mais um dos estranhos vazamentos de gás que vinham ocorrendo na cidade... até que a professora ressurgiu, trazendo em seu colo uma pilha de... livros.

         Indo até o calouro, ela depositou-os sobre o móvel, em meio aos jornais, e informou:

         - Aqui está sua primeira bibliografia básica. Ironicamente, ela não será usada de forma direta no curso. Mas também é História.

         Intrigado, o rapaz passou a ler os títulos de alguns dos exemplares:

         Mitos Gregos

         O Livro de Ouro da Mitologia Nórdica

         Lendas, Canções e Contos Medievais

         O Fascínio do Oriente: Mitos e Lendas

         Mitologia Entre Rios: Lendas Mesopotâmicas

         Mitologia Judaico-Cristã Comparada

         Coleção Povos Pré-Colombianos, Vol. IV: Mitologia

         Mitologia e Religião Subsaarianas

         Enciclopédia Mitológica

         O mestre logo deduziu a razão de Petruglia ter pegado para ele aqueles volumes... e a explicação da maga fez somente com que tivesse certeza:

         - Estas obras, se não conseguir lê-las na íntegra, lhe serão ao menos fonte de consulta ao longo da guerra. Para combater os servos inimigos com eficiência, é necessário que você consiga deduzir rapidamente que personagens históricos e mitológicos são eles, delineando assim tanto suas habilidades quanto suas fraquezas. Conhecer o inimigo é passo fundamental para uma estratégia perfeita. E não se preocupe, você poderá ficar com os livros até o término do conflito.

         É claro que Jorge usaria aqueles exemplares mais como meio de consulta do que qualquer outra coisa, já que cada um deles era grosso o bastante para ser lido em no mínimo alguns dias pelo garoto. Mas seriam sim, sem dúvida, importantes instrumentos para seu triunfo naquela conflagração. Só sentia que, cada vez mais, suas obrigações para com as matérias do curso ficavam em segundo plano. Talvez fosse mesmo assim até que o Cálice fosse obtido, e ele precisaria se conformar...

         O nome de um dos livros em particular chamou mais atenção do calouro. “Mitos Gregos”. Poderia aprender mais sobre sua própria serva lendo-o, e até compreender melhor o passado que parecia tanto atormentá-la. Começaria seus estudos por ele, naquele mesmo dia, assim que houvesse tempo.

         Folheando o dito volume, Jorge, inconscientemente, deu um demorado bocejo... ao que Daniela inquiriu:

         - Você tem dormido bem?

         - Ah, sim, acho que sim... – ele murmurou, em tom ainda sonolento. – Por quê?

         - É vital que seus sentidos estejam alerta a todo o momento durante a guerra. Uma reação lenta diante de um adversário oportunista seria fatal, você sabe.

        Foi então que o jovem se lembrou... os sonhos. As visões estranhas, aparentemente sem pé nem cabeça, que vinha tendo já há algum tempo, e que nas últimas semanas pareciam ter se intensificado. Pouco se recordava delas após acordar, tendo conhecimento apenas de que pareciam tratar de cavaleiros, num lugar deserto. Deveria falar a respeito delas com a maga ou não? Teria aquilo alguma relevância em seu papel como mestre?

         Bem, julgou que sim...

         - Professora – ele a chamou, quando ela já se preparava para deixar a biblioteca com o aluno.

         - Na verdade... não que isso tenha atrapalhado meu sono, mas... tendo tido sonhos esquisitos.

         - Sonhos? – Daniela de imediato se deteve, sua voz e expressão facial tomadas por repentino interesse. – Conte-me mais.

         Jorge contou. Narrou tudo de que se lembrava ter visualizado durante o sono, destacando como a freqüência de tais cenas aumentara recentemente. Entre si pareciam ter sempre, em comum, a paisagem desértica, além de referências a algo como um cavaleiro andante medieval ou coisa similar. Talvez aquilo fosse produto de sua fixação por filmes épicos e histórias do tipo, porém sonhava com tais elementos mesmo quando não estava pensando em nada relacionado a eles antes de dormir, além de aparentemente as visões manterem-se sempre fixas em suas características principais. Ao término da exposição, Petruglia coçou o queixo e falou, semblante intrigado:

         - É difícil determinar o que são esses sonhos. Seria mais simples se você conseguisse se lembrar com maior precisão de suas nuances, porém poucas são as pessoas capazes disso. Podem não passar de reminiscências de uma cena que você tenha visto durante a infância em algum livro, desenho ou filme, ou simbolismos de alguma situação na sua vida com a qual você sempre conviveu e ainda não conseguiu superar. Podem até manifestar algum tipo de desejo. Não sou especialista em interpretação de sonhos, porém. Eu diria que você não deveria se preocupar, mas... também podem se tratar de ecos de vidas passadas ou até previsões do futuro. Como é de suspeitar que seu pai seja um mago, você, tendo o mesmo sangue que ele, pode estar sujeito a fenômenos como vidência ou outros similares que costumam se manifestar em praticantes de magia. Nesse caso, então, esses lampejos enquanto você dorme podem ter algum significado importante para seu passado, presente ou futuro. Aí não poderíamos ignorá-los. O problema é que, nas presentes circunstâncias, não temos realmente como saber.

         Fazendo uma pausa para respirar, Daniela complementou:

         - A questão é: você acredita que esses sonhos atrapalhariam seu desempenho como mestre? Eu havia me esquecido de dizer, mas é comum que, quanto mais intenso se tornar o vínculo entre um mestre e seu servo, mais eles começarão a visualizar os sonhos um do outro quando dormirem. Esse fenômeno ainda não deve ter sido experimentado por você devido a estar com Berserker há poucos dias, porém chegará o momento em que terá contato com os de Hipólita, e ela com os seus. Será que sua serva estará pronta para compartilhar de seus medos e anseios? O que pode ou não afetá-la neles?

         Um tanto preocupado quanto à colocação, Jorge olhou para a amazona cabisbaixa próxima a si. Muita coisa já aparentava perturbá-la, e seria desnecessário somar mais à lista – sendo que nem se lembrava ao certo do que via em seus sonhos. No entanto, assim como não havia garantia de serem visões benéficas, tampouco existia certeza de serem maléficas. A dúvida pesava e muito na questão. Tudo pareceu piorar quando a professora revelou:

         - Apesar de não dominarmos o tipo de magia capaz de visualizar, compreender e interpretar os sonhos, nós da família Petruglia há décadas nos aperfeiçoamos num encantamento capaz de bloquear certos impulsos de nosso subconsciente. Alessandra Petruglia, uma de minhas tias, possuía graves problemas comportamentais devido a um trauma de infância envolvendo gatos. Meu avô então aprimorou um antigo truque há séculos perdido em nossa linhagem para impedir que as memórias ruins referentes à experiência traumatizante de sua filha retornassem à sua mente. Seu sucesso foi tamanho que a partir de então Alessandra até adotou uma gata como animal de estimação. Com algumas alterações, o mesmo processo pode ser usado para bloquear qualquer tipo de memória, seja recente ou antiga, assim como sonhos recorrentes, que é o seu caso. Dessa maneira, se achar que deve, posso livrá-lo dessas visões.

         Uma proposta tentadora. Jorge não queria perder o controle de sua serva caso algo em seus sonhos a perturbasse – o que seria desastroso. Na mesma medida, porém, desconhecia o significado do que via e aquilo poderia representar para si algo deveras importante, relativo a si próprio. Baixando a cabeça em silêncio, o estudante ponderou a respeito do que decidir...

         Até que, erguendo a cabeça, respondeu à idosa:

         - Eu aceito. Não quero correr o risco de perder esta guerra devido a esses sonhos que podem não ter significado algum e que ainda por cima acabariam afetando Hipólita. Quero que você aplique em mim esse encantamento.

         - Certo – Petruglia replicou com uma face neutra. – Não posso fazê-lo aqui, por motivos óbvios. Além do que, o processo dura alguns minutos e os componentes materiais são muitos. Encontre-me hoje à noite em minha casa, por volta das vinte horas. Pode até jantar comigo se quiser. Em seguida procederei da maneira que deseja.

         Dizendo isso, a maga afastou-se rumo à porta, um atônito Jorge perguntando:

         - Estou dispensado? Só ia mesmo me entregar os livros?

         - Sim, por enquanto. Use seu tempo livre para lê-los. A sala de estudos fica bem aqui ao lado. Não tem minuto algum a perder.

         - Certo. Vejo a senhora à noite, então.

         - Tenha um bom dia.

         Daniela se retirou, e o mestre, após trocar breve olhar com Berserker, pôs-se a caminhar até o recinto mencionado com a pesada pilha de volumes em mãos.

* * * * *

         O resto da manhã transcorreu tranqüilo, Jorge tendo se sentado junto a uma das mesas da sala de estudos quase vazia, aberto o livro tratando de mitologia grega e se perdendo naquele delicioso mundo de aedos e heróis – Hipólita, calada, acomodada numa cadeira em frente a si.

         Consultou primeiramente o índice remissivo, buscando o nome de sua serva. Encontrou-o referenciado nos capítulos tratando do mito de Teseu, lendário rei de Atenas, e os Doze Trabalhos de Hércules. Havia inclusive uma nota informando que as duas lendas estavam relacionadas, e assim acabou começando pela segunda.

         O nono trabalho de Hércules, segundo o livro, era roubar o cinturão de Hipólita, dado a ela por seu pai Ares, para que fosse remetido como presente a Admeta, filha de Euristeu, primo do herói. Conforme lia, Jorge não podia evitar erguer os olhos e fitar Berserker sem que ela percebesse, achando no mínimo curioso ter uma personagem mitológica de quem tanto se falara no decorrer dos séculos bem diante de si. Continuando com o relato, soube que Hércules embarcara num navio rumo ao reino das amazonas na companhia de alguns aliados, entre os quais Teseu. Chegando ao porto, foi bem-recebido pelas guerreiras, já que a rainha Hipólita, percebendo na fala e nos gestos de Hércules seu valor como herói, apaixonou-se perdidamente por ele quase à primeira vista. Subiu ao navio e viu-se até disposta a entregar-lhe o cinturão de bom grado, pois pensava que um combatente tão admirável merecia-o.

         A deusa Hera, porém, possuía ódio mortal de Hércules devido a este ser fruto de uma relação de seu esposo Zeus com uma amante, Alcmena, e de tudo fazia para atrapalhar os trabalhos do semideus. Naquela ocasião, desceu ao reino das amazonas disfarçada como uma delas, bradando que o estrangeiro pretendia raptar sua rainha. As guerreiras investiram contra a embarcação, e Hércules, interpretando tudo como uma cilada, foi obrigado a tomar uma atitude brusca: agarrou Hipólita e beijou-a... apenas para distraí-la enquanto arrancava o cinturão de seu ventre, matando-a num só golpe logo depois.

         O calouro arregalou os olhos. Ele acabara de ler mesmo aquilo? Até então possuíra de Hércules uma visão bastante heróica, porém aquele livro dizia que ele assassinara a sangue frio a Rainha das Amazonas – que ainda por cima estava apaixonada por si – para poder se apoderar do artefato que deveria levar embora consigo. Para piorar, a tripulação de Hércules levou consigo algumas das nativas contra sua vontade, inclusive Antíopa, irmã de Hipólita, capturada por Teseu. Agora Jorge compreendia a prévia fala de Petruglia acerca da conivência inicial da rainha ter se mostrado prejudicial às suas súditas...

         Temeroso, o mestre passou para o mito de Teseu. Algumas versões colocavam que, estando no navio de Hércules, o ateniense raptara a própria Hipólita, ao invés de Antíopa. Outras versões colocavam o rapto de Hipólita e a ida de Hércules ao reino das amazonas como acontecimentos separados, um antes do outro. De qualquer modo, Teseu também teria chegado de navio à terra das guerreiras e ludibriado a rainha para que nele subisse. Fazendo isso, o estrangeiro seqüestrou-a e fez dela, à força, sua mulher, partindo dali. Os dois mantiveram relações durante a viagem de volta a Atenas e Hipólita engravidou. As amazonas não permaneceram alheias ao rapto de sua rainha, iniciando uma guerra contra os atenienses, denominada “Amazonomaquia”. Com o tempo, porém, Hipólita passou a nutrir sentimentos pelo marido, permanecendo em Atenas até o nascimento do filho do casal, Hipólito. Mas o rei ateniense se interessou por outra mulher, Fedra, passando a desprezar Hipólita. A soberana amazona, assim, viu-se obrigada a retornar à sua terra, rejeitada pelo esposo que aprendera a amar e deixando também seu filho para trás.

         O garoto sentiu um frio na barriga. Desconhecia o fato de a vida da Rainha das Amazonas ter sido marcada por tantas tragédias. O pior era ela ter amado dois homens com sinceridade, a eles se entregado, e ambos a terem traído – um deles até a eliminando. Isso explicava sua loucura, o trauma que fizera com que fosse invocada naquela classe tão ingrata. Sentindo-se mal perante o que sua serva fora obrigada a passar, Jorge tentou imaginar sua dor. Como seria ser enganada daquela maneira por aqueles que amava? E, para piorar, colocando em risco todo o seu reino, tanto devido a uma guerra quanto por conta do rapto de suas súditas? O estudante julgou-se ainda jovem e inexperiente demais para poder compreender tamanha penúria, sendo que era provável que Hipólita tivera de encarar tudo aquilo numa idade não muito maior que a sua. Suspirou, encarando seus coturnos. Não conseguiria olhar para Berserker naquele momento...

         - Algo errado, mestre? – ela indagou, percebendo o incômodo do rapaz.

         - Não, nada... – ele foi rápido em dissimular, falando em voz baixa para não atrair a atenção dos poucos indivíduos ali naquele momento. – Apenas estou cansado de tanto ler...

         - Já está quase na hora de comer, não? Deseja fazer uma pausa?

         - Bem, pode ser...

         Jorge fechou o volume e Hipólita fez menção de se levantar, quando o calouro a deteve:

         - Espere.

         - Sim?

         - Será que, a partir de agora... você poderia me chamar sempre de Jorge?

         - Hum...

         A serva aparentou ponderar o pedido por um momento antes de responder:

         - Certo, como desejar... Jorge.

         O mestre abriu um sorriso e também se ergueu.

         O tíquete para o almoço foi comprado sem problemas junto ao restaurante universitário. Só havia um problema: Hipólita, por motivos óbvios, não poderia comer junto com seu mestre, e este tampouco poderia guardar um pouco de sua comida para dividi-la com a serva; a fome do garoto era imensa, e estava certo de que se repartissem a refeição entre si, nenhum dos dois ficaria saciado. Entrar na fila uma segunda vez para pegar outro almoço também era algo fora de cogitação, já que a norma deixava claro que somente uma refeição deveria ser servida por aluno.

         A saída encontrada por Jorge foi explicar à guerreira que ela entraria consigo, sentando-se à mesa, mas que ainda não comeria. Depois que o garoto terminasse, ele encontraria uma maneira de conseguir para ela alimento. Berserker assentiu, passiva como vinha se mostrando na maior parte do tempo. O estudante serviu-se no bandejão e começou a se alimentar de frente para a quieta amazona – sentindo-se um pouco mal por não poder dividir com ela a refeição. Faria de tudo, porém, para obter algo para ela.

         Ao concluir, guardou algo discretamente num de seus bolsos e, entregando a bandeja agora apenas com restos de comida às funcionárias responsáveis pela limpeza, dirigiu-se com Hipólita para fora do refeitório. Já tinha uma idéia de como aliviar a fome que sua serva por certo sentia. E, continuando a ser por ela acompanhado, rumou para fora do portão do campus.

         Seu destino era o barzinho situado ali perto, o Rainha. O nome do local combinava de maneira divertida com a Rainha das Amazonas. Pedindo que ela aguardasse do lado de fora, Jorge usou o dinheiro de Petruglia para comprar uma série de salgados e uma garrafa de refrigerante, colocando-os dentro de uma sacola de papel e voltando para fora. Ele e Hipólita seguiram então para uma área mais vazia da avenida, o sol não os incomodando devido ao tempo nublado, e sentaram-se para que a guerreira comesse. Ela deixou sua forma espiritual – para que nenhum motorista acabasse por acidente vendo os salgados flutuarem passando de carro – e pôs-se a se alimentar na companhia silenciosa de seu mestre.

         Jorge, por sua vez, sentia-se agora aliviado em ver Berserker comendo, e com vontade. Ela praticamente devorou os salgados e sorveu a bebida com grande rapidez, mas o rapaz não conseguia deixar de ver certa graça nos movimentos daquelas mãos tão calejadas pelo manuseio da espada. Uma heroína que tanto já sofrera, que inúmeras desilusões tivera que superar... Alguém admirável.

         Quando Hipólita terminou a refeição, o calouro levou discretamente uma das mãos ao bolso onde há pouco guardara algo. Seus dedos retornaram segurando uma maçã de vermelho intenso. Oferecendo-a à serva, disse-lhe, num sorriso:

         - Eu não gosto muito de frutas. Pode pegar esta.

         - Oh... – a amazona pareceu não saber ao certo como reagir. – Obrigada, Jorge.

         Estendendo a mão direita para apanhar o fruto, Hipólita fez com que sua pele morena roçasse de leve na do garoto... este estremecendo ligeiramente com o contato. Recuou o membro um pouco desconcertado, ao mesmo tempo em que Hipólita mordiscava o pomo com uma expressão satisfeita em sua face.

         O restante da tarde passou rápido. Voltando à sala de estudos com Berserker, o jovem mestre dedicou-se inteiramente aos estudos relativos a mitologia. Leu o livro tratando das lendas gregas quase por inteiro, deliciando-se com aquele mundo habitado por deuses e semideuses, monstros e titãs. Por falar nestes últimos, ao assimilar sua descrição poderosíssima, imaginou se, nas Guerras do Cálice Sagrado, deuses antigos poderiam ser invocados como servos. Fazia sentido, pois em diversas mitologias vários deuses podiam ser considerados igualmente espíritos heróicos. Mas será que o sistema de invocação criado pelos magos comportaria tamanho poder? Ou apenas aqueles considerados um dia mortais eram cabíveis de lutar pelo Graal?

         Perguntando-se acerca disso, continuou lendo e nem viu as horas passarem. Quando deu por si já eram quase seis, o céu passando do laranja ao azul escuro. Hipólita curvara o tronco sobre a mesa e dormira sem que o mestre percebesse. E, enquanto a acordava, ele lembrou-se do encontro marcado com Petruglia.

         Terminou de ler o capítulo do livro em que se situava, cujo tema era a Guerra de Tróia, e seguiu então para o ponto de ônibus em frente à faculdade. Pegou o circular das sete horas, que passava pela colina da Estação, a poucos quarteirões da casa de Daniela. O trajeto foi tranqüilo, o pensamento temeroso relativo à aparição repentina de algum servo inimigo felizmente não se concretizando. O veículo percorreu um caminho por um lado da cidade que o universitário ainda não conhecia, contornando a colina central pelo oeste. Viu lugares como algumas escolas, um parque de exposições relativamente grande, um pequeno presídio – estranhamente situado junto a uma área residencial e uma avenida movimentada... até que atingiram seu destino. Descendo junto à estação de trem há muito desativada, Jorge e Hipólita puseram-se a caminhar na direção da mansão de Petruglia.

* * * * *

         A dupla não precisou andar muito para chegar à rua bastante arborizada em que estava localizada a casa da maga. O sol já havia se posto por completo, as lâmpadas dos postes tendo sido acesas em contraste com a crescente escuridão noturna, o firmamento forrado de estrelas semi-ocultado pelas nuvens carregadas. Tendo já visitado aquela vizinhança duas vezes nos últimos dias, Jorge sentia já conhecê-la o suficiente para encontrar a residência de Petruglia sem dificuldade, não importando a direção pela qual viesse. Dito e feito: a imponente fachada da morada surgiu alguns metros adiante, as luzes em seu interior lançando um brilho amarelado através das janelas.

         O mestre caminhava, até então, lado a lado com sua serva. Mas só nesse momento se deu conta de que os sutis passos de Berserker não o acompanhavam mais. Um tanto assustado, voltou-se para trás... deparando-se com a amazona, semblante apreensivo, parada a alguma distância de si no meio da via, corpo praticamente imóvel.

         - O que houve, Hipólita? – ele inquiriu, preocupado, ao mesmo tempo em que seu coração desatava a bater acelerado frente a uma possível ameaça.

         Ela nada respondeu, mantendo apenas sua espada erguida numa postura defensiva. Trêmulo, Jorge viu-se obrigado a se aproximar, olhos agitados a fitar ao redor... até que, bem próximo à guerreira, sussurrou, pronto para a aparição de um inimigo a qualquer momento:

         - Sentiu algum tipo de perigo?

         - Uma presença – ela respondeu também em voz baixa, denotando extrema cautela. – Desde certo ponto do trajeto até aqui, quando ainda estávamos dentro daquele veículo metálico. Um servo. E parece que ele nos seguiu.

         O garoto gelou. Realmente estavam sendo espreitados então, desde o ônibus. Não deveriam, sendo assim, permanecer ali parados. Já se encontravam bem perto da casa de Petruglia, e ela, sendo uma conjuradora mais experiente, com certeza seria capaz de combater melhor o eventual agressor, ajudando-os a se defenderem. Sem pensar duas vezes, Jorge estendeu uma das mãos... e agarrou o braço direito da amazona, puxando-a conforme corria na direção da mansão. Não olhou para trás e nem para os lados, temendo ver algo que o intimidasse. Ouviu protestos por parte da serva, limitando-se apenas a replicar:

         - Estamos vulneráveis aqui fora. Vamos nos abrigar lá dentro até essa presença se afastar.

         Foi assim que, aturdidos, atravessaram o portão metálico da morada, ganhando o jardim com Hipólita observando de forma atenta a rua e os telhados nas cercanias, enquanto seu mestre evitava ao máximo lançar os olhos para trás, dirigindo-se num rompante até a porta da construção. Desejou imensamente que a professora possuísse algum campo de força ou encantamento parecido protegendo o lugar, ou ao menos algo que denunciasse a invasão por parte de um servo. Preparou-se para bater com um dos punhos sobre a madeira do obstáculo, ansiando para que Daniela viesse logo recepcioná-los... Porém, para sua surpresa, a maçaneta foi puxada por dentro logo que o jovem se deteve diante da entrada; a maga, com uma expressão confusa em sua cadeira de rodas, abrindo espaço para que os esbaforidos recém-chegados ganhassem o recinto, fechando a porta logo depois.

         - O que aconteceu? – ela tratou de perguntar, intrigada.

         Jorge, ao lado de uma Berserker ainda muito atenta em relação ao que ocorria no exterior, tomou fôlego por alguns instantes antes de explicar:

         - Estamos sendo seguidos. Por um servo, de acordo com Hipólita.

         Petruglia cruzou os braços, ergueu uma das sobrancelhas e respondeu:

         - Bem, então ele não será louco de tentar entrar aqui. Um mestre não é páreo sozinho para um servo, porém nós formamos um grupo de dois mestres e ainda temos uma serva. Somos capazes de oferecer uma boa luta. Estarão seguros enquanto se mantiverem dentro desta casa. Ela é protegida magicamente o bastante para denunciar algum truque por parte desse perseguidor. E acredito que ele logo desistirá de vocês, indo embora.

         Jorge e Berserker moveram a cabeça afirmativamente para mostrar que haviam entendido. Enquanto girava a cadeira para se virar na direção dos demais aposentos da morada, a maga não deixou de inquirir:

         - Vocês chegaram a vê-lo?

         - Não – a guerreira esclareceu. – Apenas senti sua presença.

         - Pena. Um contato visual poderia ter revelado a classe a que pertence, tornando possível combatê-lo com maior eficácia. Ao menos sabemos que não se trata de Assassin, pois teria se ocultado.

         Ela fez uma pausa em sua fala para em seguida pedir:

         - Sigam-me.

         Os dois assentiram, acompanhando a anfitriã pelos corredores e salas da antiga residência. Jorge, pela segunda vez, sentia-se intimidado diante da aparência clássica e culta dos ambientes, repletos de obras de arte caras, estantes de livros e mobília luxuosa – demonstrando recursos e um conhecimento de vida bem superiores aos seus. Reprovava-se por isso, mas costumava ser tomado por forte senso de competição nas atividades em que se envolvia, desde a mais tenra idade. Agora que se tornara um mago em treinamento sob a sombra misteriosa do pai Adalberto, tal ímpeto em ser superior se manifestava com total intensidade. E esperava que ele não o conduzisse a ações precipitadas...

         - Apareceram, novamente, mais cedo do que o previsto – afirmou a professora, guiando-os pelos cômodos. – Uma qualidade que vem demonstrando possuir, caro Jorge. De qualquer modo, o jantar já se encontra pronto.

         Receber um elogio de Petruglia era algo que aliviava um pouco a preocupação do garoto em superar seus limites. Contendo um sorriso, adentrou junto com as duas mulheres a sala da mansão destinada às refeições.

         O recinto era, assim como o resto dos aposentos, uma verdadeira ostentação de fortuna e requinte – ainda que a família da maga, segundo ela mesma, estivesse agora em decadência. Um grande lustre dourado no teto iluminava o local com intensidade, tornando bastante nítidos os belos quadros nas paredes e vasos, além de outras peças de artesanato, dispostos sobre pequenos móveis nos cantos. No centro estendia-se uma comprida mesa de jantar, feita de mogno, cercada de cadeiras ricamente esculpidas – em especial suas extremidades superiores. Não bastando o primor físico dos móveis e do ambiente, estava servido ali legítimo banquete. O frango assado, num tom alaranjado quase brilhante, constituía prato mais marcante da mesa; mas as saladas coloridas, o pão recheado e a maionese também chamavam e muito a atenção. Cercadas por taças de cristal reluzente havia uma grande jarra de suco e, quem diria, uma garrafa de champanhe. Enquanto contornava a mesa, Daniela puxou duas cadeiras, convidando os visitantes a se sentarem e servirem-se.

         Jorge nem sabia ao certo por onde começar. Apenas apanhou alguns dos talheres dignos de um castelo real e cortou um pedaço do frango, colocando-o em seu prato. Em seguida, para seu infortúnio, constatou que Hipólita avançava sobre a comida com as mãos, usando os dedos para apanhar o que queria e comendo sem qualquer polidez sobre o prato. Imaginou que Daniela não apreciaria os rústicos modos da amazona; porém ela não demonstrou qualquer tipo de incômodo. Era aos olhos do estudante, cada vez mais, uma pessoa bastante esclarecida.

         Alimentaram-se em silêncio por alguns minutos, Petruglia abrindo o champanhe com um saca-rolhas e servindo uma taça para si. Sorveu lentamente sutis goles da bebida, em meio à degustação da salada com frango. Era incrível como conseguia imprimir classe a quase todos os seus movimentos à mesa – contrastando radicalmente de Berserker. Esta devorava uma coxa da ave segurando o osso com uma das mãos engorduradas, seus dentes triturando a pele e a carne do animal assado numa ímpar demonstração de apetite. Num dado momento, a professora perguntou a Jorge:

         - Já iniciou a leitura dos livros que lhe indiquei?

         - S-sim... – balbuciou o rapaz, que não esperava tal indagação. – Comecei pelo de mitologia grega. Está me ajudando muito.

         Não convinha mencionar os dramas de Hipólita ali, na frente dela, e assim seu mestre não voltou a tocar no assunto. O jantar continuou, novamente, em silêncio.

         - Entenda que as mais simples nuances da lenda tratando de um espírito heróico podem representar seus Fantasmas Nobres, habilidades e pontos fracos – a idosa voltou, subitamente, a falar. – Tal conhecimento será vital quando você enfrentar seus oponentes. E também servirá para saber em que situações pode impelir Berserker a lutar, ou fazê-la recuar.

         Jorge já tinha ciência disso; não achava necessário Petruglia ficar constantemente repetindo – ainda que fosse algo importante para a guerra. Suspirou, fitando sua serva. Vendo-a comer, imaginou se seriam tão ou mais suntuosos que aquele os banquetes outrora promovidos no palácio de Teseu. Ainda que houvessem sido, seu sabor divino por certo fora superado pelo amargor da rejeição...

         Refletindo acerca disso, o mestre terminou a refeição calado.

         Algum tempo depois, todos já haviam deixado a mesa, a louça suja disposta sobre ela para que provavelmente algum empregado que os convidados ainda não tinham visto a recolhesse, lavasse e guardasse. Acompanharam Daniela por alguns corredores ricos em tapeçarias e ornamentos antigos, até atravessarem uma porta dupla. Viram-se então, novamente, na sala de estar onde noites antes Jorge invocara Hipólita – os móveis conservando-se afastados do centro como antes, mas o tapete vermelho encontrando-se mais uma vez a cobrir o assoalho.

         O rapaz sentiu forte déjà vu ao adentrar o lugar, a imagem de Berserker revestida de brilho mágico invadindo mais uma vez sua mente. Foi, no entanto, retirado de suas memórias pelos movimentos de Petruglia através do cômodo, a maga sem demora apontando para o aluno um divã de estrutura dourada e estofamento detalhado presente num canto. Ao que parecia, nele o calouro deveria se deitar.

         - Começaremos o encantamento assim que você estiver confortável – ela informou.

         Ele, no entanto, via-se com receio. Aquilo daria mesmo certo? O que sentiria durante o processo? Aparentemente, a professora entraria dentro de sua cabeça usando magia. Doeria? Corria o risco de sofrer algum tipo de seqüela? Seus sonhos incômodos seriam as únicas coisas a serem eliminadas?

         - E-eu não sei... – acabou gaguejando, avançando relutante na direção do móvel.

         - Meu rapaz... – Daniela começou a falar, num tom de voz cheio de enfado. – Você conseguiu escapar de um espírito heróico que queria ceifá-lo com uma espada, perdeu uma orelha e teve a sorte de eu tê-la regenerado, iniciou contato com o mundo oculto da magia e conseguiu invocar um servo sem experiência prévia alguma... e está com medo de um encantamento simples há muito dominado por mim e os demais membros de minha família?

         Diante da afirmação da professora e da expressão vazia no rosto de Berserker – a qual se manteve afastada, porém de prontidão, num canto do recinto – o garoto viu-se obrigado a ceder, deitando-se no divã que era mais confortável do que parecia. A maga, por sua vez, contornou-o em sua cadeira de rodas, assumindo uma posição atrás da cabeça de Jorge – este não conseguindo, assim, enxergá-la. Mas a voz dela colocava-se a guiar suas ações:

         - Antes de tudo, relaxe. Ainda está um tanto tenso; consigo notar isso através de seus músculos retraídos e as gotas de suor que escorrem por seu rosto. Fique tranqüilo. Esta magia não lhe fará mal.

         Procurando corresponder, o mestre tentou pensar em algo que acalmasse sua mente, uma coisa prazerosa. Foi assim que, depois de dias, Cíntia voltou aos seus pensamentos. O passeio na represa, o beijo... Mal disfarçou um sorriso ao re-visitar tais cenas. E por pouco não teve que disfarçar algo mais, as palavras de Petruglia conduzindo seus sentidos:

         - Isso. Está relaxando. Agora quero que elimine todos os pensamentos de sua mente. Não de forma completa, visto que é impossível. Mas deve suprimir todas as imagens concretas, focando-se apenas em minha voz.

         Jorge compreendeu. De início achou difícil, cenas e memórias diversas transitando desordenadamente por sua cabeça; porém aos poucos conseguiu, uma a uma, suprimi-las. Seu corpo passou a pesar menos, a sensação de leveza contribuindo para que seu cérebro, cansado pelo dia de estudos, se entregasse ainda mais à vontade da maga. Passou a sentir algo semelhante a sono, embora suas pálpebras não pesassem e nem se achasse perto de sucumbir a qualquer tipo de exaustão. Foi quando, maravilhado, ele começou a ouvir...

         Era uma espécie de música, mas bastante peculiar. Num tom baixo, distante, composta por ruídos semelhantes ao tocar de pequenos sinos ou ao bater de cristais uns contra os outros. Como se flutuasse, o estudante passou a ser levado pelas suaves notas, fechando os olhos e não mais podendo afirmar se encontrar na casa de Petruglia. Era como se adentrasse um mundo de pura magia. Uma dimensão em que formas materiais nada eram diante da energia da alma.

         De repente, figuras começaram a surgir no imenso vazio brilhante em que fora imerso. Primeiramente um cavalo... havendo alguém numa sela sobre o mesmo. O cavaleiro visto sempre em seus sonhos, só podia ser ele. Galopando pelo infinito, seus cascos ressoando pelas estrelas... Seriam mesmo estrelas aqueles pontos brilhantes? Vestindo imponente armadura, ele portava uma lança... ou seria uma espada? Um misto das duas? De qualquer forma, atirou-a de repente contra a escuridão... e a arma fulminou-a, o breu em seguida revelando possuir a aparência de um dragão. A criatura urrou e estrebuchou, enquanto uma luz capaz de cegar provinha do combatente vitorioso.

         Após o clarão, a silhueta do heróico guerreiro subitamente desapareceu... e, sobrepondo-se à música ainda constante, a voz de Daniela, falando em alemão, fez-se ouvir forte, ecoante e determinada:

         Ruhelosen Geist, beseitigt den lästigen Träume, die stören diesen Streifen. Gehen Sie zurück nur auf den geeigneten Zeitpunkt, Visionen unbekannt. Beten Kräfte der Natur, habe ich jetzt befreit Sie von dieser Last!

         As imagens abstratas remanescentes em sua visão tornaram-se fumaça, uma incômoda sensação de calor afligindo o rapaz... A melodia diminuiu sua intensidade até desaparecer por completo, os últimos sons cristalinos parecendo o adeus inconstante de uma entidade misteriosa a partir. Voltou a sentir seus braços, suas pernas, o pulsar de seu coração... Abrindo os olhos de maneira abrupta, notou somente nesse instante que Petruglia tinha ambas as mãos impostas sobre suas têmporas, removendo-as naquele exato momento. Jorge levantou o tronco num sobressalto, sentando-se ofegante no divã. Tanto Daniela quanto Hipólita o encaravam – a primeira de forma tranqüila, já a outra com certa ansiedade.

         - O que você fez comigo? – o calouro indagou assustado.

         - Inseri um bloqueio mental em seu subconsciente – explicou a idosa sorrindo. – Não terá mais problemas com os sonhos estranhos. Ao menos até o final da guerra.

         - M-mas, durante o processo... eu vi justamente o cavaleiro dos sonhos!

         - É preciso que eu busque a fonte de tormento dentro de sua mente para que só então eu possa limitá-la. Por isso você a viu: foi quando eu a encontrei. Acredito que num dado momento essa imagem desapareceu, não?

         - É, isso mesmo...

         - Pois então. Eu a cacei e a aprisionei. Não voltará tão cedo. Gastei alguns bons minutos para isso, mas...

          - Minutos?

         Surpreso, o mestre fitou um velho relógio presente na sala e constatou já serem quase nove da noite. Não conseguia compreender: para si o procedimento fora quase instantâneo!

         - M-mas...

         - O tempo no mundo dos sonhos transcorre de maneira diferente em comparação ao nosso – explicitou Daniela. – Bem, terminamos. A menos que queira conversar um pouco, acho que já pode voltar para sua república.

         A professora encarava toda a situação com extrema naturalidade, já seguindo para fora do cômodo. Jorge trocou um breve olhar com sua serva, esta o olhando com atenção para se certificar que estava mesmo bem, e também saiu dali.

* * * * *

         Não havia sobre o que conversar. Petruglia deu a Jorge apenas mais algumas explicações complementares sobre o encantamento que havia nele realizado – o garoto não entendendo praticamente nada – e pouco depois acompanhou os dois convidados até a porta da residência. Havia um problema, no entanto, que foi logo relembrado assim que Berserker se deteve apreensiva diante da saída: a presença que antes os seguia. A entender pela expressão da serva, ela ainda se encontrava lá fora.

         - O que consegue sentir, Hipólita? – o mestre perguntou.

         - Um servo lá fora... – ela murmurou, segurando sua pesada espada com ambas as mãos. – Mas... não é o mesmo de antes!

         - Quê? – sobressaltou-se o jovem. – Como assim? Então serão dois?

         - Eu apenas sinto um... – a amazona esclareceu.

         Que estranho! Teria o primeiro perseguidor desistido após terem entrado na casa, e agora surgido outro? De qualquer modo, a situação era tensa. Jorge não sabia ao certo o que fazer, e Daniela também demonstrava certa confusão em seu rosto.

         - Talvez o melhor seja encará-lo de frente – ela falou depois de alguns instantes de incerteza. – Você é mestre de uma das classes mais fortes. Pode ser que um de seus inimigos o esteja subestimando e este pode ser o momento perfeito para derrotá-lo.

         Ela tinha razão. Não poderiam vencer a Guerra do Cálice Sagrado se fugissem sempre dos confrontos com outros servos. Além do mais, Jorge estivera até então contendo o violento ímpeto combativo de Hipólita para que ela não ferisse inocentes. Aquela era por certo a melhor ocasião para liberá-lo com força total sobre o infeliz oponente que resolvera desafiá-los.

         - Nós vamos sair então – o rapaz decidiu, um brilho de determinação em seu olhar. – Berserker, esteja preparada.

         A guerreira assentiu movendo a cabeça, enquanto seu mestre levava a mão direita à maçaneta... e abria a porta.

         O jardim da mansão estava vazio. Diante deles, sobre a rua, as nuvens carregadas pareciam bem próximas do chão, devido à altitude do bairro – gerando uma fina camada de névoa em torno das construções e enchendo o ar de umidade. As lâmpadas acesas dos postes, originando focos pálidos e errantes de claridade, conferiam caráter um tanto soturno aos arredores. Hipólita tomou a frente, saindo pela porta e avançando até o portão com rapidez e cautela. Jorge veio logo atrás, olhos atentos a tudo em volta e reflexos prontos para um eventual ataque surpresa. Já Petruglia permaneceu parada junto à entrada da casa, voltada para a rua e seu pupilo. Estaria de prontidão para auxiliá-lo com magia caso achasse necessário?

         Foi então que todos na vizinhança ouviram:

FFFFFFUUUUUUÓÓÓÓÓÓÓNNNNN!

         E os ossos do calouro da Unesp gelaram.

         A figura prateada logo se fez ver no alto de um sobrado do outro lado da via. Mantinha erguida, numa das mãos, a corneta com que emitira o alto sinal, anunciando-se. Foi então que, da mesma maneira como fizera dias antes, saltou para o asfalto da rua, caindo de pé sem qualquer dano. Cabelo castanho curto, porte imponente, face muito branca e de traços um tanto quanto delicados, espada fina ornamentada em sua outra mão... O mesmo servo da noite em que Jorge quase morrera, sendo depois apresentado ao fascinante e perigoso mundo da disputa pelo Graal. O francês que, se não fosse pela intervenção de Daniela, o teria cortado ao meio, logrando ainda assim estragar seu penteado... Ele voltara para mais. O garoto, porém, tinha agora uma serva para fazer-lhe frente.

         Altivo, o inimigo atravessou a rua, caminhando com calma até o muro da residência da maga. Cada movimento seu denotava sua certeza de vencer qualquer batalha. Hipólita, por sua vez, manteve-se numa posição defensiva, espada erguida diante de si e estreitando os olhos para examinar melhor o adversário. Jorge, fazendo o mesmo, pôde agora fitar melhor o sabre do espírito heróico, depreendendo dele mais detalhes. A lâmina, refletindo a luz dos postes, possuía perfeitas dimensões e parecia incrivelmente afiada, possuindo gravadas em sua base pequenas inscrições que só poderiam ser lidas bem de perto. O cabo dourado também ostentava desenhos em preto, principalmente no centro, onde um entalhe semelhante a um losango mostrava contornos assimétricos na mesma cor. A estrutura do suporte estendia-se num cilindro esverdeado até sua extremidade inferior, onde um invólucro também feito de ouro abrigava uma jóia esférica cinzenta e opaca que constituía, provavelmente, uma pérola.

         Daniela também analisara a arma e, um tanto surpresa, indagou, atrás de Jorge e sua serva:

         - Seria essa Durandal, a espada sagrada recebida por Carlos Magno das mãos de um anjo e concedida então a seu valoroso sobrinho?

         Diante da alegação, o recém-chegado deu uma risada seca, aproximando-se cada vez mais do portão. O estudante já ouvira falar de tal espada. Vira-a várias vezes como um dos armamentos disponíveis em games de RPG, porém agora não conseguia determinar a qual personagem lendário pertencia. Petruglia, como se captando os pensamentos de seu protegido, não parou por aí:

         - És então Rolando, o nobre líder dos Doze Pares da França?

         O cavaleiro tornou a rir, detendo-se por um momento e respondendo, em meio a mais uma risada:

         - Oui, madame. Mas, pelo que vejo, não és um mestre. Estou aqui para liquidar esse rapazote, que me escapou devido à sua indesejada interferência noites atrás. Vejo agora que ele possui uma serva. Pena. Sujarei meu sabre com mais sangue do que previ...

         O servo aparentava não ter muita preocupação em ocultar sua identidade. Então ele era Rolando, um dos maiores heróis da Matéria de França, ou Ciclo Carolíngio. Um oponente formidável, sem dúvida. Agora uma incômoda questão surgia na mente do jovem mestre: teria aquele espadachim subestimado ele e sua serva... ou os dois, reagindo, o haviam subestimado?

         De qualquer modo, já era tarde demais para voltar atrás. Tomando inesperado impulso, num movimento sobre-humano, Rolando avançou como uma bala sobre o portão fechado da propriedade... escancarando-o num forte baque metálico. Era difícil acompanhar o que veio em seguida, já que, como Jorge logo compreendeu, servos lutavam com velocidade e força muito além do que uma pessoa comum poderia alcançar. Mas pôde determinar claramente a resposta à investida do Saber: memorizara, quando estudara para o vestibular, que uma das chamadas Leis de Newton consistia em toda ação ter uma reação. Foi o que ocorreu – se o impulso de Rolando pudesse ser comparado à bala de um revólver, a reação de Berserker foi um projétil de bazuca: ela lançou-se num jogo de corpo violentíssimo contra o adversário, atingindo-o em cheio na metade do jardim e lançando-o para fora num estrondo. O impacto foi tão violento que a onda de choque arrancou as duas seções do portão de entrada de suas dobradiças, Saber voando pela rua e indo colidir de costas com o muro da casa logo em frente.

         Cachorros nos terrenos vizinhos começaram a latir, Jorge se apressando até a calçada para acompanhar Hipólita – que não esperou o oponente se reerguer para dirigir-se correndo até ele. Seu ímpeto de ataque era mesmo espantoso. A amazona ergueu a espada de pedra, pronta para fatiar o guerreiro franco... Este, porém, rolou pelo asfalto como um porco-espinho – sangue a verter-lhe da boca – e posicionou-se rapidamente de forma bastante favorável às costas da adversária.

         - Cuidado! – Jorge alertou-a.

        Rolando era, no entanto, um legítimo cavaleiro. Aguardou até que Berserker se voltasse de frente para si, só então investindo. Ela bloqueou dois ataques da Durandal com sua espada de pedra, faíscas sendo liberadas pelo encontro das duas armas. E foi nesse instante que o garoto notou que, em meio a seus movimentos quase selvagens, Hipólita ganhara um intenso e sinistro brilho vermelho em seus olhos.

         Tendo seus esforços contidos, o francês precisou lidar com o contra-ataque da amazona. Urrando, ela impeliu-se contra si efetuando arriscados golpes com a espada. Saber usou de seu jogo de corpo para deles escapar, porém sem demora percebeu, a julgar por seu olhar assustado, que não conseguiria defender-se daquela inimiga por muito tempo. Uma incrível fúria parecia dominá-la, e a mesma a deixava mais forte. Súbito, viu-se agraciado com bela oportunidade: efetuando investidas altas, Hipólita deixara exposta a região de seu ventre. Contra ela Rolando singrou a Durandal... apenas para a lâmina ser repelida por algum tipo de barreira invisível, centímetros antes de se chocar com a pele da guerreira.

         - Quê? – recuando, ele não conseguiu entender.

         Jorge, que assistia da calçada à luta no meio da rua, tampouco compreendeu. Aquilo, entretanto, mostrara-se benéfico para sua serva: era o que valia. Falhando em seu ataque, o cavaleiro defendeu-se mais uma vez da reação, pontos brilhantes sendo lançados ao redor e o som das lâminas em colisão parecendo o eco de duas forças colossais que ainda não haviam sido liberadas em plenitude. Ele, no entanto, já demonstrava indícios de cansaço – o que levava a crer que recorreria a uma tática mais poderosa. O mestre de Berserker temeu por isso. Afinal de contas, não fazia idéia de qual poderia ser seu Fantasma Nobre...

         O servo, todavia, ainda encontrou fôlego para mais um avanço, tentando ferir Hipólita pelos flancos. Sua espada continuava a ser repelida por uma espécie de campo de força em torno da guerreira, como se um par de mãos invisíveis contivessem sua lâmina antes que pudesse tocar a mulher. Isso quando a Durandal não era bloqueada pela própria arma de Berserker; e Jorge, observando o embate, começou a se perguntar a respeito de como o sabre do francês conseguia agüentar tantos choques com o armamento de pedra da amazona sem se quebrar. Devia ser um artefato dotado de grande poder mágico. Talvez algo até acima disso, considerando o que Petruglia dissera acerca de Carlos Magno a ter recebido das mãos de um anjo: aquela arma possuía características divinas.

         Hipólita seguia combatendo feroz, a luz rubra em seus olhos se intensificando ao mesmo tempo em que seus golpes atingiam o máximo da agressividade – os impactos de sua espada deixando marcas e até buracos no asfalto. Foi então que, preocupado, seu mestre se deu conta do que poderia acontecer: caso ela atingisse o máximo de sua fúria, talvez ele não conseguisse controlá-la mais. Sua mente poderia se perder para sempre.

         - Berserker! – gritou, tentando contê-la.

         Apesar de a Rainha das Amazonas não ter obedecido, Rolando tratou de afastar de si a adversária, no lugar do rapaz: movendo os braços numa postura rígida, punhos cerrados, causou uma explosão de energia em torno de seu corpo que atirou Hipólita para trás. Ela recuou com seus pés deslizando pela rua, ao mesmo tempo em que uma visível quantidade de puro prana, manifestando-se numa espécie de aura azulada, envolvia o Saber. Aquilo não era bom. Não mesmo.

         - Não é párea para meu exército, sua traiçoeira! – ele bradou, um intimidador sorriso surgindo em seu rosto.

         Em seguida, ignorando se a guerreira tornaria a atacá-lo ou não, o cavaleiro baixou sua espada, voltando sua lâmina para baixo e descendo-a até a ponta tocar o solo, ambas as mãos ficando a apoiar o cabo na altura de seu peito. Uma postura digna de alguém mergulhado em profunda prece. Com os olhos também voltados para o chão, corpo imóvel, passou a mover sua boca lentamente, quase sem causar som... murmurando baixinho uma série de palavras.

         Berserker, descontrolada em seu surto assassino, ignorou o que ocorria e partiu correndo na direção do franco para mais uma investida... Jorge, no entanto, percebeu que, em torno do paladino, pequenos focos luminosos surgiram, flutuando no ar. Em questão de pouquíssimos segundos, tais pontos brilhantes passaram de dois a quatro, de quatro a seis, de seis a oito... até se deterem em doze. E, logo em seguida, passaram a se expandir, a se materializar... A luz formando o contorno e a textura de armaduras, de elmos, de espadas...

         - Essa não! – o mestre de Hipólita exclamou, concluindo que Rolando utilizava seu Fantasma Nobre.

         O Saber, na verdade, parecia estar invocando um exército. Um regimento de mais doze cavaleiros.

         A amazona se dirigia diretamente, sem intenção alguma de retroceder, rumo aos combatentes luminosos mais próximos, que haviam se colocado num piscar de olhos em formação defensiva em torno do servo. Os guerreiros fantasmagóricos – ainda que providos de imaculada imagem – estenderam suas espadas na direção de Berserker, prontos para liquidá-la.

         - NÃO! – Jorge bradou o mais alto que pôde, tentando retirar Hipólita de seu transe sanguinário.

         Veio então o clarão cegante.

         E o inesperado estrondo....

         KABOOOOOM!!!

         O impacto misterioso causou tamanha lufada de vento que lançou o estudante de História contra o muro da casa de Petruglia, ele por sorte conseguindo segurar-se à superfície antes que nela batesse com as costas. A explosão de claridade fora tão intensa que, abrindo os olhos, Jorge levou vários instantes para recobrar a visão. Ao fazê-lo, enxergou as árvores próximas à via com as copas agitadas, várias folhas sendo delas atiradas ao ar. Os postes da rua oscilaram uma, duas vezes – alguns não voltando a acender, e assim imergindo o ambiente em ainda maior penumbra. Só então o amedrontado mestre fitou o asfalto. E não conseguiu encontrar sentido no que visualizou.

         Bem em frente à mansão existia agora uma cratera fumegante, com cerca de um metro e meio de profundidade máxima. No centro desta, sobre uma pequena ilha de piche, concreto e pedra que não cedera, Rolando se encontrava de pé, trêmulo, os soldados que invocara tendo desaparecido e sua armadura prateada estando agora toda vermelha... banhada em sangue.

         - Q-quê? – gaguejou, confuso e impressionado. – Mas como?

         Ele olhava para si mesmo de forma incrédula, olhos arregalados e expressão pálida em seu semblante já muito branco, como se jamais houvesse um dia admitido a idéia de ferir-se daquela maneira. Aparentava ser a si uma idéia inconcebível, pavorosa. Forçando-se a observar melhor, Jorge notou que existiam projéteis cravados por todo o corpo do cavaleiro. Flechas.

         Moveu a cabeça para a direita... buscando desesperadamente Hipólita.

         Junto a uma das bordas da cratera, Berserker encontrava-se abaixada numa postura de defesa, a espada de pedra erguida acima de si. Ao seu redor, via-se um círculo de flechas partidas ao meio, várias delas com suas pontas estilhaçadas. A amazona não possuía indício algum de ferimento em seus membros, tronco ou cabeça. Aparentemente, nenhuma das setas a atingira.

         Afinal, que tipo de escudo invisível era aquele que a vinha resguardando?

         Hipólita pôs-se de pé com uma face confusa, como se recém-despertada de um sonho ruim. Jorge suspirou aliviado. Ao menos seu ímpeto inconseqüente fora freado. Mas havia um novo problema. Toda aquela destruição não fora causada por nenhum dos dois servos em luta. A julgar pelo tipo de arma empregado...

         - Archer... – murmurou o garoto, seus olhos vistoriando os telhados da vizinhança.

         Até que o encontraram.

         De pé sobre a mesma casa em que Rolando fora visto primeiramente, existia um vulto vestindo o que parecia ser uma capa longa, com capuz. O tom remetia ao verde, mas, em meio à escuridão noturna, era difícil distingui-lo do preto. A incógnita figura apontava algo para a rua, mantendo a corda esticada... um arco. E parecia ter nele inserido mais de uma flecha. Bem mais.

         - Lamento interromper a contenda, porém urge que eu lhes dê um aviso – a voz do estranho era imponente e melodiosa, digna de alguém de boa lábia e não conseguindo ocultar seu sotaque britânico. – Ouvi de meu mestre que esta região da cidade era outrora dominada por uma das três famílias que instituíram o ritual nestas terras. Bem, não mais o é. Toda esta área de Franca pertence a meu mestre e lhe serve de base de operações. Sendo assim, é meu dever expulsar servos intrometidos, por bem ou por mal.

         O interlocutor emitiu um gracejo semelhante a uma risada antes de continuar:

         - Não me entendam errado: eu desejo e irei, ainda, eliminar todos vocês. O Cálice Sagrado não deve cair nas mãos de indivíduos com ambições egoístas, dispostos somente a ampliar a miséria que há muito predomina neste mundo. Farei de tudo para obtê-lo. Só os estou avisando, neste momento, para que não precisem morrer antes da hora. Ainda não é meu intento lutar, não agora. Vão embora. Desagradaria-me ter de adiantar meus planos.

         - A presença... – murmurou Hipólita, encarando o novo inimigo com um olhar ameaçador. – A presença de antes... era a dele.

         Então era ele. Archer fora o servo que os seguira do ônibus até chegarem à casa de Petruglia, então se ocultando para surpreender dois oponentes de uma só vez. Esperto, sem dúvida alguma. Jorge ponderou rapidamente se seria bom ou não mandar que Berserker o atacasse, e logo viu que seria melhor adiar tal confronto. O arqueiro, pelo visto, possuía a vantagem do terreno, e seu intelecto sagaz deixava suspeitar que preparara alguma armadilha. Além disso, Hipólita só atacava corpo a corpo, e o recém-chegado poderia aniquilá-la bem antes que ela se aproximasse graças à sua habilidade nas investidas à distância. Um adversário a ser temido.

         - Nós estamos nos retirando! – o rapaz exclamou, caminhando até sua serva. – Mas não pense ter a sorte de não nos enfrentar da próxima vez!

         - Oh, um jovem de coragem! – admirou-se Archer. – Pois bem. Espero que você e sua Berserker possam ser meus primeiros oponentes. Será uma batalha divertida. Melhor enfrentar um inimigo espirituoso, ainda que mal-preparado, do que adversários fortes que se perderam em sua frieza. Mas não tente fugir como seu amigo aí. Tinha mesmo de ser francês...

         Só então Jorge percebeu que Rolando havia sumido... restando apenas um rastro de sangue próximo à cratera, descendo em direção à colina central. Um lapso infeliz. Perdera a oportunidade de eliminar um dos servos inimigos.

         - Agora, se me dão licença... – falou o arqueiro, saltando do telhado em que estava rumo à construção situada atrás. – Boa noite!

         E desapareceu na noite.

         Só então o calouro se acalmou, advindo ao mesmo tempo os sintomas do cansaço. Achou que desabaria em plena rua, porém conteve-se. Examinou mais uma vez Hipólita, que finalmente deixara sua postura de combate: não sofrera qualquer dano. Como aquilo era possível? Apesar do saldo positivo da batalha – ainda que nenhum outro servo houvesse sido aniquilado – Jorge sabia que a situação não fora muito favorável a si. Ele praticamente não conseguira comandar Berserker durante a luta, ela se lançando de modo desenfreado contra Rolando e por pouco não caindo vítima de seu Fantasma Nobre. Agora compreendia o que Daniela dissera a respeito de aquela classe ser a mais difícil de se controlar. As próximas lutas exigiriam bem mais de si...

         Lembrou-se então da pessoa de Petruglia, após ter recordado suas instruções. Apressou-se até a porta da residência, temendo pela segurança da maga. Cruzou o jardim rapidamente com Hipólita, encontrando a professora na exata posição de antes – intacta – mas agora a olhar para cima como se hipnotizada... as pupilas fixas, mais precisamente, no topo do telhado onde há pouco se manifestara o servo Archer.

         - Senhora Petruglia, está tudo bem? – o aluno perguntou, temeroso.

         - Robin – ela replicou, sem nem sequer piscar. – Robin Hood.

         Ao mesmo tempo, uma lágrima escorreu por seu rosto.

* * * * *

         A velha maga tornou-se estranhamente esquiva e calada após o término da batalha.

         Que o servo Archer era Robin Hood, Jorge pudera deduzir sozinho. Usava manto, possuía a lábia inconfundível de um ladrão, seu sotaque era inglês... só podia mesmo ser o famoso arqueiro da lenda que roubava dos ricos para remeter aos pobres. Porém não compreendera a razão de aquilo parecer abalar tanto Petruglia.

         Depois de a poeira baixar, mestre e serva se reuniram com a professora no interior de sua casa. Estavam com ela preocupados devido à pretensão do mestre de Archer de reivindicar aquela colina para si – o que poderia acabar colocando em risco a vida da idosa caso ele quisesse desbancá-la de vez, sendo uma representante da família que até então ali dominara. Jorge até se propôs a pernoitar ali, protegendo Daniela se necessário, mas ela negou a idéia veementemente. Afirmou que podia muito bem cuidar de si mesma sozinha, alertando que seria melhor o garoto dormir bem aquela noite para no dia seguinte prosseguir em suas ações referentes à guerra. De fato, ele agora tinha um plano a definir, pois descobrira que um dos mestres estava naquela parte da cidade. E teria mais batalhas a vencer.

         Convencido de que Petruglia não aceitaria qualquer ajuda – e de que ela podia mesmo se cuidar – Jorge despediu-se e rumou com Hipólita até o ponto de ônibus no largo da Estação. Ainda teve tempo de pegar o ônibus das dez e meia, que por sorte parava bem perto do predinho em que estava localizada a república. O trajeto durou alguns minutos, durante os quais o garoto, sentado junto com sua serva num dos assentos aos fundos do veículo, permaneceu calado e pensativo devido à estranha reação de Daniela perante o arqueiro. Berserker, percebendo a introspecção do mestre, acabou por perguntar, um pouco insegura:

         - Algo o incomoda, Jorge?

         - Estou preocupado e ao mesmo tempo intrigado em relação a Petruglia... – ele respondeu com um olhar vago. – Por que ficou tão abalada com a aparição de Robin Hood? Há peças faltando nesse quebra-cabeça...

         - Aquele servo deve ter alguma relação com o passado da maga. Existem coisas sobre ela que ainda estamos por descobrir, Jorge.

         A amazona tinha razão. No entanto, o rapaz via-se cansado demais para pensar a respeito de que coisas eram essas...

         Depois de ter cochilado uma ou duas vezes no banco, desceu no ponto próximo ao apartamento. Dirigiu-se até ele quase como um zumbi, os efeitos da exaustão daquele dia se manifestando de forma total. Abriu a porta do prédio, subiu as escadas, adentrou a república... somente para encontrar tudo apagado. As portas dos quartos dos veteranos se mantinham abertas, evidenciando que não haviam ido dormir cedo. Provavelmente estavam em algum bar com os amigos, tomando uma cerveja. A Semana do Bixo, pelo visto, não terminara com o fim das festas.

         Jorge apenas escovou os dentes, trocou de roupa e atirou-se sobre seu colchão. Hipólita recolheu-se a seu canto habitual, repousando sentada. As teorias tratando de Petruglia e o planejamento para atacar o servo na colina da Estação poderiam aguardar a manhã de sábado. Só teria de inventar boas desculpas para sair da república com Baloo e Marcos estando nela...

         De qualquer modo, lidaria com a questão após uma boa noite de sono.


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