Fate - Supremacy Rota Um: Desejo escrita por Goldfield


Capítulo 8
Desejo, Dia 07: Supervisor




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Desejo, Dia 07: Supervisor

         Há tempos o monstro réptil assolava aquele isolado reino.

         Voraz e insaciável, devorava a colheita e o gado dos pobres camponeses, que, além de terem de lidar com a aridez daquelas terras desérticas, agora tinham o fruto de seu trabalho tomado pelo monstro. A situação se agravou, e logo a fome atingiu os súditos. Não havia ninguém entre eles que possuísse coragem e habilidade suficientes para enfrentar a criatura, e assim seus pedidos eram inquestionáveis. Logo os frutos da colheita e as cabeças de gado se exauriram, e o monstro fez uma terrível exigência: desejava uma linda donzela como sacrifício. Toda a população entrou em desespero; e o soberano, então, lançou um pombo ao céu, como era costume, para que a ave lhe indicasse o que fazer. Se ela voasse para o leste, eles deveriam ceder à vontade da besta. E foi exatamente nessa direção que o pássaro seguiu.

         O rei, para que nenhuma moça entre seus súditos fosse morta, decidiu por oferecer a própria filha, a bela princesa Sabra, para que o resto do reino fosse poupado. Assim a jovem foi amarrada a um carvalho no centro de uma planície, onde o réptil costumava se alimentar, para que fosse por ele devorada.

         Alguém, no entanto, viajava por aquelas terras e teve sua atenção atraída pelo pombo que o rei lançara ao céu. Tratava-se de um nobre cavaleiro que, interpretando a ave como um sinal, resolveu segui-la. Ela o conduziu até a planície, onde o horrendo monstro estava prestes a abocanhar a princesa. Colocando-se entre ele e a donzela, o guerreiro investiu com sua poderosa lança, perfurando o coração da besta. Esta caiu agonizante, efetuando seus últimos movimentos antes de perder a vida. A jovem estava salva, assim como todo aquele reino...

         Ele se tornara um herói. Um santo. Um guardião.

* * * * *

         Jorge acordou com o segundo toque do despertador de seu celular. Esfregou os olhos, conteve um bocejo e sentiu-se irritado mais uma vez por ter aqueles sonhos estranhos que não conseguia compreender...

         Olhou através da janela aberta do quarto, fitando um céu matinal carregado de nuvens escuras. Ameaçava chover – isso se já não houvesse chovido durante a noite. Verificou então o relógio de seu telefone: sete e meia da manhã. Erguendo o tronco de cima do colchão, o jovem se julgava pronto para mais um dia procurando emprego, faculdade à noite...

         Foi então que viu, de soslaio, as estranhas marcas nas costas de sua mão direita. E, voltando a cabeça para um canto do cômodo, visualizou a jovem de cabelos negros e vestes mínimas sentada sobre o piso frio com as costas para uma parede, a grande espada de pedra encostada ao seu lado...

         E se lembrou.

         A Guerra do Cálice Sagrado.

         Sua realidade naquela nova cidade não seria mais como antes. Quando achava estar começando a se acostumar à sua vida de universitário, o ataque noturno de um misterioso espadachim e a revelação de um mundo de magia oculto na sociedade o haviam inserido num cenário que lhe causava medo e ao mesmo tempo curiosidade. Tornara-se mestre do espírito heróico de uma das mais valorosas guerreiras da Antigüidade, e junto dela tomaria parte na batalha pelo famigerado Santo Graal. Seu segundo dia naquela guerra... e não poderia passá-lo mais uma vez dormindo. Precisaria conciliar as prévias preocupações de sua vida, como os estudos e a necessidade de um emprego, com suas novas obrigações como mestre.

         Suspirou. Levantou-se do colchão, afastando o lençol, e esfregou mais uma vez a face. Poderia procurar trabalho até a hora do almoço, em seguida descansar um pouco e então se dirigir até a casa da professora Petruglia, já que ela desejava levá-lo para ver alguém que tinha relação com os mestres. Memorizara parcialmente o caminho até a residência no dia anterior, então acreditava que não teria maiores problemas para encontrá-la. Antes de tudo isso, todavia, precisava tomar um bom café. Vinha sentindo mais fome que o habitual, provavelmente devido à energia gasta para manter Berserker, e por isso tanto ele quanto sua serva deveriam se manter bem-alimentados. Esta permanecia imóvel em seu canto, olhos fitando Jorge sem qualquer expressão. Foi quando, um pouco inseguro, ele perguntou:

         - Está com fome, Hipólita? Quer comer alguma coisa?

         - Seria do meu agrado, mestre.

         - Então espere aqui. Logo volto com alguma coisa.

         A guerreira assentiu movendo a cabeça, o rapaz achando melhor mantê-la ali devido aos veteranos provavelmente se encontrarem dormindo no apartamento – havendo assim chances, ainda que mínimas, de eles a descobrirem. Jorge deslocou-se o mais silencioso possível até a cozinha, passando pelas portas fechadas dos outros quartos, e abriu a geladeira.

         Dentro dela encontrou, além de sobras do jantar da noite anterior, um pote de margarina e uma caixa de leite aberta. Apanhou-a para sentir-lhe o peso: estava na metade. Devia pertencer a Baloo, e o calouro acreditou que ele não se incomodaria se consumisse o que restava. Colocando os dois recipientes sobre a mesa redonda, olhou então para a bancada. Em cima dela havia um saco contendo... um pão. Aquilo daria somente para si. E Hipólita?

         Parou para pensar. Havia outras duas sacolas plásticas ali. Uma continha embalagens de feijão que, compradas há pouco tempo, aguardavam sua preparação para alguma das refeições... Não, feijão não ornava mesmo com café da manhã! E, mesmo se ornasse, Jorge não sabia cozinhar – estava longe de ser um gourmet que preparava comida para todos a cada manhã. A outra sacola possuía em seu interior uma forma de plástico com um belo bolo de chocolate dentro, feito em padaria. Encontrava-se intacto, dele não tendo sido provado ainda nem um mísero pedaço. Também devia pertencer a Baloo – era a cara dele, e seu provável café da manhã para aquele dia: glicose para compensar a bebida da festa. Será que ele implicaria se o bixo retirasse do doce ao menos duas fatias?

         Não procurou refletir muito a respeito: colocou o bolo sobre a mesa, retirando dele a tampa. Em seguida apanhou dois copos, dois pratos, alguns talheres (ainda que acreditasse que Berserker não faria uso deles) e retornou ao quarto para chamar sua serva.

         A refeição transcorreu tranqüila, sem qualquer problema. Jorge ainda estava um pouco assustado devido ao incidente da última noite, em que Hipólita quase aniquilara seus dois veteranos; mas naquela manhã a guerreira grega demonstrava serenidade admirável – ainda que unida a uma incômoda frieza e ausência de sentimento – alimentando-se, com as mãos, de maneira lenta e calma. A maneira como a serva manuseava a comida usando os dedos e a inseria na boca ainda causava certa estranheza em seu mestre, porém estava certo de que logo ficaria habituado. Ela era de uma época e de um lugar bem distantes. Tinha de respeitar seus costumes. Esse, inclusive, era um dos princípios da profissão que almejava exercer. Estudar tempos passados requeria se despir o máximo possível dos preconceitos do presente.

         Mordiscando seu pão com margarina e bebendo o copo de leite, o estudante se deu conta de algo incômodo: sendo sua serva, Hipólita agora o seguiria a praticamente todo lugar. Ainda que pudesse ocultar-se de terceiros através de sua forma espiritual, ela o acompanharia em suas andanças pela cidade, à faculdade...

         Aquilo não era nada bom.

         Se ela se hostilizara tanto com seus veteranos anteriormente, Jorge sendo até obrigado a gastar um dos seus feitiços de comando para detê-la, como ela reagiria diante das brincadeiras de outros alunos? Quando algum lojista lhe negasse emprego? Quando ele fosse tratado com rispidez por alguém, não importando quem fosse?

         Ela prometera se controlar mais, mas... como confiar nos impulsos de uma serva que tinha seu poder justamente nas investidas descontroladas?

         Pensativo, Jorge seguiu comendo, evitando fitar Berserker para que ela não notasse sua preocupação... Até que terminou o pão, bebendo os últimos goles de leite e finalmente tornando a erguer a cabeça...

         E se assustou.

         Olhando para a forma onde estava o bolo, Jorge só encontrou pequenas migalhas marrons... o doce inteiro tendo desaparecido... e sua serva estando com a boca toda suja de recheio.

         - H-Hipólita? – ele gaguejou, surpreso.

         - Sim, mestre? – ela replicou num tom gélido.

         - Você comeu o bolo todo?

         - Bolo? Ah sim, este pão doce? Comi, mestre. Foi o suficiente para saciar minha fome. Mas vejo uma expressão consternada em seu rosto. Não deveria tê-lo feito?

         - N-não, sem problemas! O importante é você estar mesmo satisfeita, pois precisará de energia para quando lutarmos com os outros mestres. Não se preocupe.

         - Se assim você diz...

         A guerreira terminou seu leite, enquanto o rapaz, sem que ela percebesse, levava uma das mãos à testa. Baloo não ia gostar daquilo nem um pouco... Mas, ao longo do dia, estava certo de que conseguiria pensar numa boa desculpa. Vinha se saindo bem ultimamente em relação a inventar histórias, não é mesmo?

         Ficava a certeza de que, além de atentar para sua agressividade, Jorge também teria de lidar com o imenso apetite daquela serva...

* * * * *

         Os dois deixaram o prédio algum tempo depois, o céu ainda nublado forçando Jorge a se precaver levando consigo um guarda-chuva. Hipólita assumiu sua forma espiritual, ficando invisível e inaudível a todos, exceto seu mestre; porém o incômodo causado pela guerreira segui-lo rua afora não passava. Mesmo em face aos carros que passavam, às pessoas envolvidas nas mais diversas atividades e ao cenário bem diferente do que o estudante imaginava ter sido a Grécia Antiga, a Berserker não demonstrava qualquer tipo de reação diante de tais novidades para si. Seguia caminhando quieta pouco atrás do calouro, sempre inexpressiva – o que o fazia temer ainda mais algum repentino ataque de fúria da serva, direcionado contra algo ou alguém que por algum motivo a incomodasse.

         Tinha, no entanto, de se acostumar à presença da Rainha das Amazonas. Apesar de Daniela ter lhe explicado que dificilmente mestres e servos combatiam durante o dia, devido às potenciais testemunhas, um ataque traiçoeiro sempre era possível. Assim, um mestre se expor sem ter seu servo por perto, durante a guerra, era praticamente suicídio.

         Jorge desejava esquecer tudo envolvendo o Cálice Sagrado ao menos durante aquela manhã – focando-se em conseguir um emprego. Tentaria uma estratégia diferente, dessa vez: procuraria pelas lojas e serviços nas vizinhanças do prédio da república e bairros próximos, com a esperança de ter mais sorte ali do que na parte central de Franca. Caso não conseguisse, estava disposto a perguntar aos colegas de faculdade se eles não conheciam algum lugar na cidade onde fosse mais fácil um estudante de fora trabalhar – já que, averiguando por si só, até agora não conseguira qualquer fruto.

         Subiram pela avenida, a bonita paisagem da cachoeira desenhando-se à esquerda. O rapaz se encontrava perdido em suas preocupações e andando quase de forma automática, apenas o som dos automóveis pela via e dos discretos passos de Hipólita atrás de si sendo assimilados por seus ouvidos... até que um ruído diferente, e aterrador, foi igualmente percebido por si...

         CROA! CROA!

         Voltou a cabeça, numa inesperada descarga de adrenalina, para uma das árvores no topo do barranco em que se situava a queda d’água. E, quase no mesmo galho que dias antes, um par de corvos grasnava acompanhando com atenção os movimentos de Jorge – ainda que ele se deslocasse pela outra calçada.

         - Essas aves... – murmurou o jovem, profundamente incomodado, enquanto passava a andar mais devagar. – É a segunda vez que as vejo...

         - Você consegue sentir, mestre? – Berserker perguntou, bastante séria.

         - Sentir o que? – replicou, confuso, o rapaz. – Fala de algo além de má impressão?

         - Isso deve ocorrer devido a você não ser um mago, e ainda entender muito pouco das práticas arcanas – afirmou a serva de modo um pouco desapontado, ainda que sua inexpressividade ainda fosse latente. – Mesmo que não sinta, aqueles dois corvos são criaturas mágicas. Espiões enviados por algum mestre ou servo.

         - Familiares? – cogitou ele, lembrando-se da coruja de Petruglia.

         - É possível.

         - Devemos começar a evitá-los então. Sabe-se lá quantas vezes me seguiram, informando meus passos ao dono deles...

         Nisso, como se a situação se invertesse, o incômodo sentido por Jorge e também por Hipólita pareceu ser transferido para as aves; as quais, grasnando de forma agitada e batendo freneticamente suas asas, ergueram vôo dali, desaparecendo no céu cinzento.

         Menos mal – foi o que o inexperiente mestre pensou, convencendo-se de que deveria tornar-se mais atento dali em diante.

         E, após esperar alguns instantes pela passagem dos carros, ele e Berserker atravessaram a avenida.

         A busca por emprego durou toda a manhã. Animado a andar, Jorge visitou praticamente todos os estabelecimentos num raio de três quarteirões do prédio, e mais alguns além. Após tantas rejeições, via-se cada vez mais inseguro em suas tentativas... porém aquele dia logo se mostrou diferente.

         Ao contrário do que pensara, a presença de Hipólita pareceu lhe trazer sorte ao invés de perigo: o dono de um mercadinho nas imediações aceitou testar o rapaz por alguns dias e, caso ficasse satisfeito com o resultado, pagaria por seu trabalho. Muito feliz, o estudante da Unesp ouviu do proprietário que o período de experiência começaria na manhã seguinte, bem cedo, às sete horas. Teria de se preparar, então. Apesar de preocupado quanto a se mostrar um bom funcionário, Jorge mal podia descrever o quanto se sentia aliviado. Um de seus maiores problemas encontrara uma solução.

         Após tal triunfo, mestre e serva subiram ao centro para providenciar o almoço. O calouro comprou duas marmitas no mesmo restaurante de antes e com elas desceu de volta à república, Berserker permanecendo calada e um tanto cabisbaixa por praticamente a manhã inteira. Ele começava a se perguntar sobre o que a incomodava... e lembrou-se de Daniela explicando a respeito das experiências muitas vezes traumáticas que levavam um espírito heróico a conhecer a loucura, sendo invocado naquela classe. Imaginava se poderia de algum modo ajudá-la em relação a isso... ou se seria um aspecto da guerreira que acabaria por atrapalhá-los durante aquela guerra...

         Chegando ao apartamento, Jorge pediu que Hipólita permanecesse quieta junto à porta enquanto ele checava os cômodos à procura de seus dois veteranos. Os quartos deles já se encontravam abertos, mas não havia sinal algum de Baloo ou Marcos neles ou em qualquer outra parte da morada. Provavelmente haviam saído para comer – o que tornaria mais tranqüila a refeição do mestre e sua serva. Entretanto, não acreditou ser prudente comerem na cozinha, já que se os estudantes retornassem acabariam vendo dois pratos à mesa e achariam aquilo no mínimo muito estranho. Desse modo o calouro pegou a louça e os talheres necessários, assim como as marmitas, e chamou Berserker para almoçar consigo em seu quarto, fechando a porta.

        Assim, sentados no chão do dormitório e apoiando os pratos em suas pernas, começaram a matar a fome. O cardápio do restaurante se mostrava muito bom aquele dia: além de filé de frango, um saboroso nhoque fora preparado com um molho delicioso. Hipólita, que jamais degustara tal receita, aparentou tê-la apreciado imensamente, chegando a lamber com vontade os dedos e os lábios após terminar. Os modos da guerreira já não incomodavam tanto seu mestre; na verdade, ele começava a achá-los... graciosos. Não devido a delicadeza nem nada do gênero, pois isso era o que menos podia ser notado no aspecto bárbaro da serva. É que, ela comer daquele jeito... era uma de suas marcas. Uma das coisas que a definiam, tornando-a única naquele mundo moderno. E, no conjunto, Jorge vinha ficando mais e mais fascinado por aquela sofrida rainha de tempos lendários...

         Em meio à refeição, o rapaz procurou mais uma vez puxar conversa com a Berserker, tentando quebrar o incômodo gelo que vinha costumando se formar entre eles. De quebra, visava também esclarecer um assunto que o intrigava...

         - Hipólita...

         - Diga, mestre – ela respondeu após engolir mais um pouco de nhoque.

         - Você de manhã afirmou que ainda não entendo bem de magia. Isso é fato, mas... há algo que você saiba a respeito, que tenha aprendido em vida, ou algo assim? Alguma coisa que possa me ensinar, para nossa vitória nesta guerra?

         A serva abocanhou um pedaço de frango e, com ele ainda na boca, explicou entre mastigadas:

         - O conhecimento sobre a magia de hoje necessário para nossa luta foi concedido a mim pelo Cálice Sagrado, no ato de minha invocação. Não sei muito além do que aquela mulher, Daniela, explicou-lhe. Eu apenas estou mais habituada a sentir a presença de magia, principalmente quando emanada por outros servos, ou relacionada a eles. Por isso percebi algo naqueles corvos anteriormente. Você também poderá detectar tais presenças, só precisa treinar mais.

         - E a magia no seu tempo? Como era?

         A expressão facial da amazona deu a entender que encarara a pergunta como pouco relevante, mas mesmo assim replicou:

         - Nunca enxerguei a magia ou seus praticantes com confiança. As artes arcanas são uma criação mortal que tenta reproduzir o poder dos deuses, porém possui inúmeras falhas. E os próprios magos e bruxos, arrogantes, sempre acabaram controlados pelos deuses que tanto queriam imitar. Circe, a feiticeira que não pestanejava em transformar em porcos aqueles que desembarcassem em sua ilha, foi empurrada sem perceber para dentro do plano que as divindades tinham para Odisseu. Sua sobrinha, Medeia, foi encantada por Afrodite e, em sua paixão cega por Jasão, traiu seu pai e seu reino a ponto de despedaçar o próprio irmão. Tolos são aqueles que depositam seu orgulho e destino na magia.

         - Você me parece bastante revoltada com os deuses... mesmo sendo filha de um...

         Nisso, o semblante de Hipólita pareceu se fechar totalmente, as mechas de cabelo negro lhe caindo sobre a face de forma a compor um retrato ameaçador; enquanto seus olhos, agora estreitos, fitavam o mestre com um lampejo de sincera ira.

         - Eu não gostaria mais de falar sobre tais coisas – Berserker pediu num tom que remetia mais a uma ordem, mão direita lentamente procurando por sua espada de pedra junto a si.

         - C-certo, me perdoe, não voltarei mais a tocar nesse assunto! – afirmou um Jorge bastante assustado.

         O garoto teria de tomar cuidado. Hipólita demonstrava mais uma vez poder transpor facilmente a linha que a separava da completa loucura, e seu mestre poderia forçá-la a fazê-lo caso abordasse mais uma vez aquele tópico que tanto aparentava afligi-la. Evitaria, dali em diante, mencionar deuses ou magia perto dela. Afinal, não podia saber até que ponto ela poderia ouvir sem se descontrolar...

         Fixando isso em sua confusa mente, ele e a serva terminaram de almoçar em silêncio.

* * * * *

         Por volta da uma da tarde trovões começaram a ser ouvidos; e às duas passou a chover.

         Jorge permaneceu com Hipólita, fechados no quarto. A pouca claridade solar que antes rompia através das nuvens carregadas agora sumira de vez, dando ao dia quase um aspecto de noite. O rapaz, sem mais nada dizer à guerreira após o desentendimento durante a refeição, sentou-se em seu colchão para esperar as horas passarem... e, envolvido pela penumbra, logo adormeceu.

        

         Acordou assustado com seu celular tocando. Apanhou o aparelho reprovando-se por ter adormecido e temendo ter perdido a hora para encontrar Petruglia. Checou, aliviado, o relógio do telefone: 15:20. Ao menos aquela inesperada ligação servira para despertá-lo na hora certa. O identificador de chamadas informou-o acerca de quem o contatava: sua mãe.

         Bateu na testa com uma das mãos. Como pudera se esquecer dela? Tantas novas coisas por assimilar em Franca, desde a vida como universitário até a Guerra do Cálice Sagrado, haviam ocupado sua cabeça a tal ponto que ele realmente não se lembrara mais de casa. Preparado para uma severa reprimenda, o rapaz pressionou timidamente um dos botões do celular para atender à ligação...

         - Alô?

         - Jorginho! – a emotiva e alta voz de dona Nádia fez-se ouvir do outro lado. – Que isso? Não lembra mais da sua mãe?

         - Desculpa, desculpa... É que já estou com bastante coisa para estudar por aqui. As aulas começaram com tudo. Mal estou tendo tempo para respirar!

         O garoto vinha, realmente, tornando-se um exímio mentiroso...

         - Nossa, mas um tempinho pra ligar pra mim você poderia ter arranjado, né! – a senhora protestou. – Como estão as coisas aí, meu filho? A república? A vida na cidade nova? Me conta tudo!

         O calouro suspirou... e passou em seguida cerca de dez minutos com a mãe ao telefone, colocando-a a par de tudo que lhe acontecera em Franca até então – omitindo, é claro, a disputa pelo Graal. A mulher se surpreendeu com algumas coisas, aconselhou o filho em outras... até que este, vendo que a conversa estava próxima do fim, resolveu perguntar algo que o interessava:

         - Mãe... meu pai está por aí?

         - Não, Jorginho. Viajando, como sempre. Mas, quando ele voltar, avisarei que você mandou um abraço.

         - Há previsão de quando ele volta?

         - Só no outro fim de semana, depois desse próximo agora.

         - Certo. Tentarei voltar para aí nessa data então. Aí vejo vocês dois.

         - Isso, venha sim! Estaremos aguardando ansiosos seu retorno! Bons estudos aí, filho. E juízo, hem?

         - Pode deixar, mãe. Beijos.

         - Beijão!

         A comunicação foi encerrada, o estudante não conseguindo deixar de pensar no pai. Vinha cogitando, desde a noite em que se tornara mestre, interpelá-lo a respeito do catalisador mágico que ele lhe dera e tudo mais que poderia disso advir assim que voltasse para casa. Talvez ele não lhe respondesse, inventando alguma outra história, ou desse respostas insuficientes... mas Jorge tinha ao menos de tentar.

         Três e meia. Jorge tinha ainda tempo de tomar banho – já que era certo que rumaria direto para a faculdade após o encontro com Daniela – antes de sair. Hipólita, calada, permaneceu sentada no quarto enquanto seu mestre se lavava, e logo este, já com outra roupa, chamou-a para acompanhá-lo até a residência da maga. Por sorte parara de chover, um sol maroto surgindo de trás das nuvens que se dissipavam. O clima em Franca, realmente, vinha se mostrando bastante impetuoso.

         Os dois deixaram o apartamento e, saudados pela estiagem, puseram-se a caminho da Estação.

         O que mais incomodava no caminho até a casa de Petruglia era, com certeza, as subidas. A primeira tinha de ser vencida para se chegar ao centro – sendo logo depois, porém, contra-balanceada por uma descida levando ao córrego que separava a colina central da colina onde vivia a professora. Mas, chegando-se aos pés desta, uma outra escalada cansativa por ruas íngremes aguardava aqueles que tinham necessidade de desafiar a elevação a pé. Ao término de quarenta minutos de caminhada, mestre e servo chegaram, esbaforidos, à rua repleta de árvores onde se situava a morada de Daniela. Não demoraram a avistar a esquina onde eles deveriam encontrá-la, e ela nela já estava – possuindo, no entanto, companhia.

        Jorge e Hipólita aproximaram-se timidamente, como se não passassem de simples transeuntes na calçada. A idosa estava acompanhada de três garotas que deviam ser pouco mais novas que o garoto, cada uma segurando caderno, livros e estojo. A primeira, baixinha, possuía cabelo castanho encaracolado e olhos no mesmo tom, usando blusa preta, calça jeans e sapatilhas. Já as outras duas, altas e magras, aparentavam ser gêmeas, diferindo entre si mais notadamente no cabelo: enquanto uma possuía fios ondulados numa cor castanha que pendia para o vermelho, a outra os tinha bem curtos, ainda que o tom fosse um tanto similar. Vestiam camiseta, calças também jeans e traziam tênis nos pés. O mestre de Berserker achou todas muito bonitas, porém não tentou qualquer aproximação. Isso poderia acabar por constrangê-lo, ainda mais diante de Petruglia...

         - Por hoje é só – disse esta às meninas, sorridente. – Amanhã continuaremos estudando sobre Roma. Lembrem-se de fazer os exercícios que lhes passei.

         - Certo, professora – assentiu a jovem de blusa preta. – Muito obrigada novamente.

         - É um prazer.

         O trio se despediu da senhora e desapareceu por uma rua. Só então Jorge e Hipólita aproximaram-se da maga. A serva, constatando que a rua se encontrava quase vazia, deixou sua forma espiritual, acreditando que não haveria problemas. Já o mestre, curioso, não deixou de indagar à idosa:

         - Quem são elas?

         - Dou aulas particulares de História quase todos os dias, à tarde – Daniela esclareceu. – Aquelas são algumas das minhas alunas: Valéria, Mônica e Monise. Irão prestar vestibular este ano, então estão intensificando seus estudos.

         - Ao menos dessa etapa eu já passei... – riu o “bixo”.

         Nesse momento a professora ergueu os olhos para fitá-lo e, percebendo sua cabeça raspada, falou num tom um tanto zombeteiro:

         - Sabia que não conservaria aquele cabelo comprido por muito tempo...

         - Ossos do ofício – Jorge também tentou soar divertido, sem muito sucesso. – Bem, aqui estamos.

         - Ótimo. E vejo que tanto você quanto sua serva se encontram em boas condições. Considere já isso um triunfo. Muitos mestres e servos foram mortos logo no primeiro dia após a invocação, nas guerras passadas.

         - Vou me lembrar disso... Para onde vamos? Você tinha dito que íamos ver alguém, não?

         - Sim, o supervisor.

         - Hum? O que é isso?

         Enquanto seguiam até o carro da maga, estacionado pouco à frente junto à calçada, ela explicou:

         - A Guerra do Cálice Sagrado de Franca, assim como as demais, baseia-se no modelo de Fuyuki. Lá, após a terceira, decidiu-se que a disputa entre os magos era perigosa demais para não ser supervisionada. Ninguém da Associação Mágica, no entanto, poderia ocupar tal posto, por dificilmente poder agir com neutralidade. Optou-se, então, por uma pessoa não-praticante de magia e, ironicamente, pertencente à instituição que por muito tempo foi a maior inimiga da Associação: a Igreja. Apesar de saber que o Graal invocado por nós magos não é a suposta relíquia que continha o sangue de Cristo, o Vaticano sabe que não pode deixar um artefato tão poderoso longe de seus olhos. Assim, agindo como uma espécie de árbitro, o supervisor enviado pela Igreja cuida para que os mestres não passem dos limites, zela assim como a Associação para que a guerra permaneça secreta e garante, por assim dizer, que o Cálice seja ganho pelo mestre mais “merecedor”, ou seja, aquele que sobrar ao término do conflito.

         - E onde esse supervisor fica?

         - No único local em toda Franca em que mestres e servos não podem lutar: solo sagrado. Uma igreja, que constitui área neutra. O supervisor permanece nesse templo durante a guerra para instruir mestres e também para abrigar aqueles que foram derrotados, sendo privados de seus servos. Buscando refúgio na igreja, eles estarão seguros até o fim do conflito de ataques vindos de outros mestres que queiram matá-los. A igreja em questão, nesta cidade, é a Igreja Santa Rita, situada nas imediações da colina da família Piemonte. Apesar de estar localizada na área de influência de uma das três famílias de magos francanas, o primeiro supervisor para cá enviado, na guerra de 1960, mostrou-se imparcial e rígido em suas ações. Não tenho razões para acreditar que desta vez será diferente.

         - Então você já conhece o atual supervisor?

         - Sim, conheço. E você agora também o fará. Vou levá-lo até a igreja.

         Jorge concordou movendo a cabeça, ainda um pouco confuso diante de mais uma avalanche de informações. Aquela disputa pelo Cálice Sagrado apresentava novas variáveis e características sempre que se procurava descobrir mais a seu respeito – e o jovem mestre tinha certeza de que não sabia ainda nem metade de tudo que deveria aprender. Calado, acomodou-se no assento ao lado da motorista, Berserker indo se sentar atrás também sem proferir palavra. Daniela manobrou o carro tranqüila e, logo em seguida, punham-se a descer a colina que fora subida a pé com tanto custo.

* * * * *

         O automóvel atravessou a colina do centro, passando pelos arredores da praça da catedral, e desceu-a também – ganhando a Avenida Alonso y Alonso. A diferença foi que, dessa vez, não seguiu nenhum de seus dois sentidos: cruzando-a, passou a subir pela outra elevação que se encontrava a ela adjacente. A terceira colina; onde, segundo Petruglia, a família de magos Piemonte predominava.

         Olhando atentamente através da janela, Jorge procurava memorizar todas as construções ou outros locais marcantes que pudessem lhe servir de pontos de referência no caminho até a dita igreja. Afinal, o templo constituía abrigo para aqueles que perdessem seus servos na guerra, e para lá deveria se dirigir caso eventualmente sua Berserker fosse eliminada. Lutaria até o fim para que isso não acontecesse, mas, se por desventura se tornasse realidade, deveria zelar por sua segurança se ocultando na tal área neutra até que o Cálice Sagrado fosse obtido pelo vencedor.

         Pelo que pôde notar, a área não era tão distante assim do prédio da república. A rua pela qual subiam até o topo da colina ficava a apenas alguns poucos quarteirões da Avenida Champagnat e, assim, a aproximadamente dez quadras do apartamento. Não seria grande problema deslocar-se da Kamelot até a igreja em caso de emergência, e isso sem dúvida era favorável ao jovem mestre. Algo vinha, entretanto, intrigando-lhe desde o encontro com Daniela na colina da Estação:

         - Por que o local neutro da guerra está situado no domínio de uma das famílias, afinal?

         - O primeiro supervisor de Franca era um membro da família Piemonte – a professora, atenta ao volante, começou a explicar. – Ele, porém, não era um mago. É costume entre as famílias de conjuradores que apenas o filho ou filha mais velho assuma o legado de seu predecessor; seus irmãos, se existirem, quase nunca aprendendo magia ou em alguns casos ficando até sem saber que ela é praticada. Franccesco Piemonte era o filho caçula de sua geração da família. Enquanto seu irmão mais velho tornou-se mago e lutou na guerra de 1960, ele logo cedo entrou para a vida religiosa e passou anos no Vaticano. Após algum tempo entrou para o Corpo do Oitavo Sacramento, a divisão da Igreja destinada a reaver relíquias sagradas e expulsar demônios deste mundo. Todos os supervisores das guerras do Graal pertencem a esse grupo; e assim, por já possuir um bom conhecimento da cidade e de todo o contexto das disputas aqui realizadas, Franccesco recebeu a incumbência de supervisionar a conflagração do Cálice Sagrado em sua terra natal, tornando-se pároco da Igreja Santa Rita, mantida há décadas por sua família, que sempre tivera grande devoção pela santa. Essa mesma igreja se tornou a área neutra das guerras em Franca, e Franccesco realizou muito bem sua função como árbitro, ainda que tivesse que lidar com o próprio irmão entre os mestres.

         - Entendo...

         Satisfeito com a justificativa, o rapaz tornou a olhar para frente... deparando-se com o topo da elevação pouco adiante, já imerso no céu alaranjado do crepúsculo. Erguendo-se em direção a ele, não muito alta, havia a singela torre amarela de uma pequena igreja, dotada de relógio em seus quatro lados e com uma cruz imponente em sua extremidade superior. Suas dimensões não eram tão consideráveis, porém o fato de estar situada bem no cume da colina tornava-a visível a uma boa distância dali – verdadeiro marco no panorama da cidade. E foi em frente a esse modesto templo que Petruglia estacionou, algumas crianças empinando pipa numa esquina próxima, perto de uma praça. Notando o número maior de pessoas nos arredores, Jorge recomendou a Hipólita:

         - Melhor ocultar sua figura.

         Obedecendo, a serva assumiu sua forma espiritual. Daniela deixou o veículo através do arrojado sistema que permitia a si girar o assento do motorista, o calouro e a amazona seguindo-a até a entrada do santuário.

         Atravessaram a via e detiveram-se diante da porta dupla de madeira, aberta, da igreja, inserida num pequeno nicho sob a torre que possuía portais em formato de arco. Jorge percebeu, ao lado da mesma, uma outra construção semelhante a um barracão que também possuía uma cruz acima da entrada. Imaginou se o local seria um outro templo ou algum tipo de salão de festas – coisa comum em paróquias como aquela. Logo, porém, teve sua atenção atraída de volta para o interior do primeiro lugar, subindo pelos degraus da pequena escada diante da entrada junto com Berserker enquanto Petruglia fazia o contorno através da rampa para deficientes. Adentraram, em seguida, o recinto que constituía “paraíso seguro” aos mestres derrotados...

         A igreja possuía formato clássico: um corredor central estendendo-se por entre duas fileiras de bancos até o altar. As paredes eram brancas, revestidas de madeira até a metade – a mesma, assim como os vitrais coloridos, refletindo a luz cada vez mais fraca do entardecer. Notava-se uma ausência de imagens pouco comum em templos católicos, as únicas duas visíveis sendo um Cristo crucificado atrás do altar e uma Santa Rita num suporte próximo ao mesmo, rodeada por um extenso buquê de rosas.

         E, de pé junto a uma das fileiras de bancos mais distantes em relação aos recém-chegados, havia uma mulher de óculos trajando hábito preto e branco, um crucifixo prateado pendendo-lhe do pescoço...

         E Jorge não pôde evitar lembrar...

         Você já deveria ter invocado seu servo, garotão. Espero que esteja se preparando...

        

         A inexplicável aparição da freirinha no banheiro da Unesp, durante a manhã do dia da matrícula. Aquela irmã era diferente em aparência e estatura da outra surgida como um espectro diante do jovem, parecendo possuir vários anos de idade a mais do que a outra teria. Mas não deixava de relacionar as duas figuras, imaginando se teriam algum tipo de ligação...

         - Então a supervisora da Guerra do Cálice Sagrado é uma freira? – Jorge fez em voz alta a pergunta que despontara em sua mente, caminhando pelo corredor central junto com Daniela e Hipólita.

         - Monja agostiniana – a clériga corrigiu-o com uma voz firme, talvez até um pouco fria. – Prazer, mestre Berserker. Sou Ravena Piemonte.

         Então, mais uma vez, o árbitro daquela disputa pertencia a uma das três famílias. Será que aquilo era mesmo justo? Levando em conta o que Petruglia afirmara antes, aqueles supervisores logravam exercer suas funções com neutralidade, mas... não deixava de ser estranho. E, ainda por cima, como aquela mulher conseguira descobrir qual a classe de sua serva? Teria Daniela lhe dito algo previamente?

         - C-como sabe? – indagou ele, um tanto inseguro.

         - Estive por anos no Corpo do Oitavo Sacramento, meu caro, assim como meu tio – ela afirmou, andando até eles com as mãos atrás da cintura. – Aprendi a detectar presenças mágicas com exímia eficiência. E, como sua serva é a que mais demanda prana de seu mestre, não foi difícil sentir o vínculo de energia que os une. Aliás, Franccesco Piemonte iniciou uma nova tradição em nossa família, com a filha mais nova da geração seguinte também entrando para a vida religiosa e, devido às boas graças do Vaticano, igualmente se tornando supervisora da guerra em Franca.

         - E, como posso presumir, sua irmã ou irmão mais velho está participando da mesma como mestre, certo? – Jorge deduziu.

         - Irmã. E estava, na verdade.

         - Como assim? – Petruglia, calada até então, manifestou-se com evidente espanto.

         Suspirando, Ravena seguiu até uma pequena mesa à esquerda do altar, no término de um dos corredores secundários da igreja, onde costumavam ser disponibilizados folhetos informativos ou envelopes de campanhas aos fiéis. Sobre ela, àquele momento, também havia alguns exemplares de jornais francanos. A monja pegou um e, retornando até os visitantes, estendeu na direção deles a manchete, acima de uma foto mostrando uma rua da cidade à noite, com marcas de sangue no asfalto e policiais ao redor:

MULHER MORTA A TIROS EM PLENA RUA NO PARQUE PROGRESSO

         - Ocorreu domingo à noite – a supervisora explicou. – Minha irmã foi atacada a tiros na rua, falecendo de imediato. O autor dos disparos, presumivelmente um dos outros participantes desta guerra, não se incomodou de o caso vir a público por conta de ter utilizado um método convencional. Não sei o que houve com o servo dela, mas presumo que tenha enfrentado o servo do atirador em outro lugar. De qualquer modo, acho pouco provável que ainda esteja neste plano de existência.

         Os três ouvintes mostraram-se espantados diante da revelação, ao que a religiosa parou por um instante para tomar ar – ainda que não demonstrasse qualquer abalo emocional diante da morte da irmã – e continuou:

         - Tenho suspeitas acerca de quem tenha sido o mestre autor do crime. Porém, como supervisora, não posso revelar essa informação a outros participantes do conflito. Estaria sendo parcial. É a mim permitido apenas, dentro de minhas funções, informar-lhes que um dos mestres, no caso minha irmã Giovanna Piemonte, já não está mais entre nós. São apenas seis mestres agora.

         Jorge, por sua vez, também tinha suas suspeitas... e elas o afligiam. Resolveu perguntar à monja, para sanar suas dúvidas:

         - Perdoe-me, mas sou novo em Franca. Onde fica o Parque Progresso?

         - Não muito longe daqui, ao sul. Perto de uma das entradas da cidade.

         O jovem gelou, várias imagens passando desordenadamente e rápido por sua cabeça como um filme sendo rebobinado. Suas memórias remeteram à noite em que chegara a Franca, passando de ônibus por uma das avenidas principais... e observando, pela janela, peritos levando um corpo num saco plástico em direção a uma ambulância enquanto policiais conduziam um homem algemado até uma das viaturas... jaqueta, pele pálida, cabelos loiros compridos... semblante soturno e olhos intimidadores, contendo a loucura sã característica de um legítimo psicopata.

         O rapaz ligou os pontos... aquele, muito provavelmente, era o assassino da irmã de Ravena.

         Manteve-se calado quanto à questão, no entanto. Não achou prudente expor aquilo à supervisora e, se ela possuía mesmo um suspeito como afirmara, então devia saber até mais a respeito do homem misterioso do que ele. Uma valiosa informação era arquivada agora em sua mente, porém: o tal loiro ameaçador tinha grandes chances de ser um dos mestres a serem enfrentados.

         Mas então... se ele havia sido detido pela polícia... Será que poderia ter “deixado” ser preso? Porque, sendo um mago, conseguiria facilmente desaparecer da cena do crime...

         - Espero que esteja pronto para lutar pelo Cálice – a voz marcante da supervisora tirou-o de seus pensamentos. – Caso acredite ser um fardo que não queira assumir, eu tenho o poder de remover seus feitiços de comando, e assim você deixará de ser um mestre.

         - Nem pensar! – o garoto replicou prontamente. – Eu e Berserker lutaremos até o fim. Confesso que caí de pára-quedas nessa disputa pelo Graal, mas deve haver um válido porquê para eu estar aqui lutando. Meu pai me preparou para isto. Agora quero provar a ele e a mim mesmo ser capaz de vencer.

         Ao concluir a afirmação, o estudante inconscientemente apertou com uma das mãos a correntinha contendo o fragmento do cinturão de sua serva. Abrindo um leve sorriso, a monja falou:

         - Todos os mestres possuem suas razões para batalhar, e muitas vezes elas se baseiam na capacidade do Cálice realizar desejos. Você já pensou a respeito do que pedirá ao artefato, Jorge Aparecido dos Santos?

         Ignorando o fato de Ravena ter chamado-o pelo nome inteiro sem que ele houvesse se apresentado, o rapaz se deu conta de que, ao menos até aquele momento, não havia coisa alguma que pensasse em desejar ao Cálice Sagrado. Queria apenas chegar ao final daquela disputa para mostrar ser merecedor de tal dádiva por ter derrotado os demais mestres – só então pensaria sobre o que requisitar ao item mágico. Bufando, ele respondeu:

         - Isso ainda não passou pela minha cabeça.

         - Seja lúcido em suas escolhas, meu jovem. O Graal pode se mostrar um artefato de extrema benesse ou completa destruição. A índole de quem o obtém é algo muito importante a ser considerado. Uma de minhas tarefas é cuidar para que o Cálice de Franca não seja corrompido como o de Fuyuki.

         - Corrompido? – Daniela questionou intrigada, erguendo uma das sobrancelhas. – Como assim?

         - Não me surpreende que você não saiba, já que esse fato só chegou ao conhecimento da Associação após a quinta guerra ocorrida no Japão. Parece que os Einzbern foram longe demais em seus métodos para trazer o Graal a esta realidade. Ele se tornou um artefato totalmente maligno, uma reles fonte de mal que é ativada através do sacrifício em sangue dos servos invocados. Uma aberração disforme que só é capaz de trazer torpeza a este mundo. Devido a isso, é importante ter em mente que os rituais de obtenção do Cálice em outras partes do mundo ficarão mais acirrados, pois nos demais chakras ainda é possível materializá-lo em sua forma pura, através dos métodos desenvolvidos por outras famílias como os Percival.

         Petruglia fechou seu semblante. Para ela, era difícil associar o termo “forma pura” à facção mencionada, assim como desassociar dela a palavra “torpeza”. Manteve-se, no entanto, calada diante da revelação da supervisora.

         Mantendo-se igualmente quieta por alguns instantes, a monja caminhou até o suporte rodeado de rosas sustentando a imagem da padroeira da paróquia e perguntou, sem cerimônia, a Jorge:

         - Conhece a história de Santa Rita de Cássia?

         - Não, nunca ouvi falar – ele respondeu.

         - Ela nutria incrível fixação pela paixão de Cristo, sempre meditando acerca das dores e sofrimentos que ele sofreu em sua penúria até o Calvário. Até que, um dia, orando com grande fervor, ela pediu a Jesus que pudesse compartilhar consigo um pouco de tais provações. Com isso, um espinho acabou lançado da coroa da imagem no crucifixo, cravando-se em sua testa. O ferimento nunca foi curado, permanecendo em Rita por anos e piorando gradativamente até sua morte. Os magos que lutam pelo Cálice Sagrado não são muito diferentes da santa. Ela desejava obter ao menos um pouco da dor sofrida por Cristo quando esteve no mundo. Os mestres desejam o contrário, mas o princípio é o mesmo: a conquista de um artefato místico capaz de realizar qualquer desejo, equiparando-os às divindades. Eles buscam o poder absoluto, além dos limites da mortalidade. Mas, se mal usado, esse poder pode trazer a eles dores até piores do que aquelas que acometeram Santa Rita...

         A comparação de Ravena fez Jorge se lembrar das afirmações feitas por Hipólita mais cedo, a respeito da magia não passar de uma arte criada pelos homens para em vão tentarem se igualar aos deuses. Ele suspirou. Talvez ambas estivessem corretas...

         - Vá, Jorge! – a religiosa exclamou. – Assuma com sabedoria seu papel de mestre. E, em caso de necessidade, sabe que pode sempre me encontrar aqui.

         O calouro assentiu movendo a cabeça, dando as costas para a supervisora e pondo-se a deixar a igreja junto com a professora e Berserker – esta última não tendo pronunciado palavra alguma durante o tempo em que ali permanecera. Seu mestre julgava começar a se acostumar àquela postura. Ao menos ela não vira motivos para atacar a monja...

         Do lado de fora, o céu alaranjado cada vez mais cedia espaço ao tom azulado do princípio da noite. Seguiram até o automóvel de Daniela, ela avisando ao aluno enquanto nele entrava:

         - Preciso pegar alguns papéis na faculdade. Darei carona a você até lá.

         - Oh, obrigado...

         O transporte mostraria-se de incrível ajuda ao “bixo”, já que ele por certo não conseguiria mais chegar a tempo à Unesp caso fosse a pé – talvez nem mesmo se pegasse um circular. Acomodou-se aliviado no assento ao lado da motorista, Hipólita como antes sentando-se atrás... e partiram.

* * * * *

         O trajeto até a universidade durou poucos minutos e foi tranqüilo. Quando o carro atravessou o portão já era quase seis da tarde, Petruglia manobrando o veículo pelas vias no interior do campus para estacioná-lo numa das vagas reservadas a professores e funcionários. Antes que o deixassem, porém, ela disse ao rapaz:

         - Vou para o bloco da administração... Antes que eu me esqueça: quero encontrá-lo aqui na Unesp amanhã cedo, por volta das nove da manhã. Há mais coisas que quero lhe mostrar e explicar.

         - Err, amanhã cedo? – oscilou o garoto. – É que eu estive procurando emprego pela cidade desde que cheguei, e hoje consegui a chance de trabalhar num mercadinho... O período de experiência começará amanhã de manhã!

         - Hum... – a idosa levou uma mão ao queixo, pensativa. – Isso é complicado. Um trabalho assim tiraria seu foco da guerra, e acredite: você vai precisar de todo foco possível. Eu até sugeriria você não freqüentar a faculdade até que tudo terminasse, mas já acho que estaria pedindo demais... Você realmente não tem condições de se sustentar aqui sem um emprego?

         - Não, não tenho – ele replicou um pouco nervoso. – Minha família não possui recursos suficientes para me manter aqui por si só.

         - Bem, sendo assim...

         Dizendo isso, Daniela colocou sua bolsa sobre as pernas, abriu-a e, após vistoriar o interior por um momento... retirou dela cinco notas de cem reais, estendendo-as ao jovem e falando:

         - Isto deve dar para sustentar bem você e sua serva por enquanto. Se precisar de mais me avise.

         - M-mas... – balbuciou o mestre, sem saber ao certo como proceder.

         - Deixe de ser bobo e pegue o dinheiro! – a professora quase ordenou.

         Cedendo, Jorge apanhou as cédulas. Não podia dizer que concordava totalmente com aquilo, porém a ajuda era mais do que bem-vinda. O Cálice Sagrado, com certeza, era para si mais importante. E se trabalhar o atrapalharia na jornada até ele, então não trabalharia.

         - Muito obrigado – agradeceu.

         - De nada. Vejo-o amanhã às nove então, na frente da biblioteca.

         O estudante concordou, e saíram em seguida do automóvel.

         Jorge desceu até o bloco das salas de aula com Hipólita. Por um momento achou que seria extremamente interessante se ela pudesse ser vista pelos demais alunos, já que testemunhariam uma conhecida figura lendária andando pelos corredores de um curso de História. A idéia era no mínimo divertida – mas logo foi reprimida pela crescente seriedade do garoto. Teria de continuar agindo com discrição se quisesse chegar ao final daquela guerra. Manteve, assim, sua serva ainda oculta em sua forma espiritual.

         Adentrou sua classe e se acomodou na mesma cadeira de antes; Berserker, calada, indo sentar-se no chão de um dos corredores entre as fileiras, bem ao fundo, costas coladas à parede pouco abaixo da janela que permitia ver outras dependências do campus. Mantendo as pernas dobradas, braços cruzados sobre elas enquanto conservava seu semblante cabisbaixo e a espada de pedra ao seu lado, o calouro pensou que os outros estudantes achariam a figura de sua serva ao menos aterradora se pudessem enxergá-la.

         Poucos alunos apareceram aquela noite. A aula foi de Filosofia, a professora apenas fazendo uma apresentação do curso e passando o cronograma de textos a serem lidos. Tudo transcorreu normalmente, com exceção de algo que não passou despercebido a Jorge: Régis não apareceu. Deu graças aos céus por isso: não precisaria agüentar a arrogância do colega. Mas imaginou o que teria acontecido ao jovem, que parecia tão aplicado aos estudos, para faltar...

         A aula terminou cedo: nove e meia. O mestre ficou aliviado em saber que não precisaria descer muito tarde de volta à república, correndo o risco de confrontar outros mestres ou servos pelo caminho. Na verdade, passava por sua cabeça a idéia de tentar sair mais cedo de todas as aulas até o fim da guerra – justamente para sua segurança. Decidira continuar freqüentando a Unesp, então teria de tomar algumas precauções para não acabar caindo numa emboscada.

         Acompanhado por Hipólita, que continuava sem nada falar, embarcou no circular rumo à Alonso y Alonso. Quase adormeceu no assento: aquele fora um longo dia, e estava bastante cansado. Ao menos seu problema financeiro fora resolvido, e só teria de mentir para a mãe falando que conseguira mesmo trabalho. Desceu no ponto perto do predinho minutos depois e, cauteloso, entrou nele após fitar o céu carregado anunciando chuva, novamente, para breve.

         Mestre e serva subiram até o apartamento, a porta encontrando-se destrancada e as luzes acesas. Os veteranos encontravam-se mais uma vez ali. Jorge entrou discretamente, procurando não fazer qualquer ruído e efetuando um sinal para que Berserker o aguardasse na sala...

         Foi quando ele ouviu.

         RUUUUUUUUUUUOOOOOOORRRRR!

         O calouro lembrou-se de imediato de documentários aos quais já assistira na TV tratando da vida dos grandes mamíferos. Mais precisamente, veio em sua mente o ciclo de hibernação dos ursos pardos, que permaneciam adormecidos por meses em suas tocas... E, para Jorge, aquele urro remeteu diretamente a um urso que fora despertado antes do tempo de seu sono, tomado assim por grande fúria. O som bestial viera da cozinha. E o recém-chegado sabia quem fora seu autor...

         - Baloo... – murmurou consigo mesmo.

         Da sala ao lado veio uma exclamação agora mais humana, porém igualmente feroz:

         - Bixo, apresente-se!

         Uma verdadeira convocação militar. O rapaz olhou por um instante para Hipólita: permanecia de pé junto a um dos sofás, rosto ainda voltado para o chão. Acreditava que ela ficaria assim, e o temor de que entrasse em fúria passou. Pé ante pé, dirigiu-se até a cozinha. Viu primeiramente Marcos sentado à mesa de jantar, comendo passivamente uma fatia de pão com margarina. Depois visualizou Baloo, de braços cruzados perto do fogão. Parecia ter deixado toda a compostura de um cavaleiro medieval para assumir tom de ameaça característico de um policial do BOPE:

         - Cadê meu bolo, bixo?

         Jorge sabia que cedo ou tarde seria inquirido a respeito daquilo. Olhou para o chão, para o teto, e então respondeu timidamente:

         - Foi mal... é que eu estava com muita fome hoje de manhã...

         - Bixo, aprenda uma coisa: em Kamelot os cavaleiros dividem tudo igualmente, tudo. Um pessoal lá da faculdade diria que isso é comunismo primitivo, mas eu chamo de outra coisa: “kamelotismo”.

         - Kamelotismo? – o calouro sentiu dificuldade em digerir a palavra.

        - Exato. Na antiga Camelot, o rei Arthur supria todos os seus cavaleiros e súditos com o que precisassem. E todos eram iguais. Por que acha que a távola é redonda? Aqui também funciona desse jeito. Espero que você se enquadre, ou terá seu título de cavaleiro revogado.

         - Há algo que eu possa fazer para me redimir?

         - Lavar a louça até a quinta-feira da semana que vem seria uma punição exemplar! - opinou Marcos, entrando na conversa.

         Baloo lançou um olhar de aprovação para o colega e um de reprimenda para o “bixo”...

         O jantar foi calmo. Baloo fez comida novamente, demonstrando mais uma vez seus admiráveis dotes culinários. Depois, como fora imposto, Jorge lavou a louça. Isso não o incomodou, porém: logo os dois veteranos saíram para a última festa da semana, a Cervejada, deixando-o sozinho na república. Pôde então esquentar um pouco das sobras guardadas na geladeira para Hipólita, fazendo companhia a ela em seu quarto enquanto se alimentava.

         Nada mais conversaram. A Rainha das Amazonas mantinha seu silêncio de forma natural, como se não houvesse coisa alguma que sentisse necessidade de dizer a seu mestre. Este, por sua vez, também não sabia o que falar a ela, já que como a serva permanecera em sua companhia o dia todo, ouvira as mesmas explicações que si, estando igualmente à par de toda a situação.

         Então um dos mestres já havia sido eliminado, havendo apenas outros cinco a serem vencidos. Aquilo se mostrava favorável a Jorge, que agora só precisaria encontrá-los. Um deles, ao que tudo indicava, era o bandido visto no domingo à noite quando chegava de ônibus. Uma boa pista para começar. Talvez ele ainda estivesse preso – isso se já não houvesse sido tirado do cárcere. Mas era provável que não. Se fosse assim, ele teria evitado ser pego pela polícia em primeiro lugar – algo fácil para um mago. Talvez tivesse interesse justamente em ser levado para a cadeia... ou então não passava de um assassino comum que não era mago coisa nenhuma, e ele estivesse conjeturando demais...

         De qualquer maneira, sabia que podia contar com a ajuda de Petruglia. Talvez por não estar lutando naquela guerra, a ex-mestre decidira apoiá-lo como se ele estivesse batalhando em seu lugar. Não rejeitaria aquele auxílio, esperando através dele conseguir grandes feitos.

         Hipólita logo terminou de comer, recolhendo-se depois junto ao canto do quarto em que costumava repousar sentada. Jorge, por sua vez, apagou a luz e deitou-se no colchão. Mais um dia árduo estava pela frente. E tinha de recuperar suas energias para encará-lo preparado.


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