Fate - Supremacy Rota Um: Desejo escrita por Goldfield


Capítulo 4
Desejo, Dia 03: Despedida / Acolhida




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Desejo, Dia 03: Despedida / Acolhida

E os poucos dias antes da viagem definitiva para Franca passaram mesmo rápido... Antes que Jorge percebesse, viera a noite anterior à partida. Mal conseguira pregar os olhos, tamanha sua ansiedade.

Às nove da manhã, o despertador de seu celular tocou. Era a hora que programara para acordar, por mais que agora não tivesse vontade disso. Virou-se para o outro lado da cama, afofou o travesseiro com as mãos... para então desligar o aparelho que ainda emitia apitos irritantes, levantando-se a total contragosto. Espreguiçou-se, bocejou, e então se botou de pé. Seria um dia difícil, principalmente as últimas horas em casa antes de tomar o ônibus às duas da tarde. O pai continuava viajando, não tendo voltado para a família, como de praxe, desde a última vez em que falara com o filho pelo telefone. Por isso sua mãe, àqueles dias, andava bem mais carente e chorosa do que de costume, vivendo com angústia os derradeiros momentos antes da mudança efetiva de Jorge. Aquele domingo marcaria o ápice dessa emotividade, o garoto tendo de ter muito cuidado com o que fizesse ou falasse. Mas tentaria não pensar muito nisso, pelo menos não antes de passar uma boa água no rosto...

Depois de lavar-se, o rapaz retornou ao quarto, dirigindo-se até o guarda-roupa... porém deteve-se no meio do caminho. Olhando para a escrivaninha, viu, perto do monitor de seu PC, a correntinha que pertencera ao pai e que dele indiretamente recebera. Mantinha-se onde a havia deixado, e tinha de confessar estar começando a nutrir crescente estimo pelo artefato. O fragmento de couro que dele pendia, junto com seu pequeno anexo metálico, a si pareciam exóticos e misteriosos, e lamentou-se mais uma vez por ainda não ter tido a oportunidade de perguntar a respeito daquilo a Adalberto. Apenas apanhou o colar, antes mesmo de tirar o pijama, e inseriu-o em volta de seu pescoço. Não sabia explicar direito, mas sentia-se bem quando o usava... Parecia mais forte, mais autoconfiante. Seja qual fosse o motivo – por certo algo meramente de sua cabeça – era provável que aquela peça faria com que encarasse dotado de maior firmeza os novos desafios que estavam por vir em Franca. Contente, trocou então de roupa.

Minutos depois, Jorge ganhou a cozinha, onde seu café da manhã, composto de pão, leite e biscoitos, fora deixado pronto por sua mãe. Pensou que deveria aproveitar ao máximo aquelas mordomias, já que, prestes a morar sozinho, elas se encontravam bem próximas do fim. Dona Nádia saíra cedo para ir à missa. Apesar de considerar-se católico, o filho era do tipo mais relutante, indo à igreja somente quando tinha mesmo vontade. Ainda que fosse bastante religiosa, a mãe era mente aberta, e não o forçava a nada. Afinal de contas, não teria se casado com um ateu – como o pai do calouro se declarava – caso se enquadrasse no perfil de uma fanática. Já há algum tempo, aliás, desde a ocasião da matrícula, Jorge vinha se perguntando sobre a lógica de um homem que alegava não acreditar no místico surgir repentinamente com a história de ter um amuleto que desejava legar aos seus descendentes. Difícil de compreender. Mas o garoto já estava acostumado... A figura paterna sempre lhe parecera, desde a mais tenra infância, extremamente complicada.

Comeu sem demorar-se muito. Ao tomar o último gole de leite, eram ainda nove e meia. A mãe chegaria depois das dez, provavelmente, pois passaria à feira no caminho de volta. Jorge, incerto sobre a maneira mais recomendada para um jovem “bixo” passar o último dia em casa no espaço de no mínimo algumas semanas, tentava se decidir entre navegar pela Internet ou assistir TV, quando a campainha do telefone na sala ressoou por toda a residência. Surpreso, foi atender à ligação, totalmente incerto a respeito de quem seria. Tinha consigo que o pai, caso o contatasse, o faria mais perto da hora da viagem, assim achando não se tratar dele...

- Alô?

Uma voz feminina, bastante conhecida pelo rapaz, manifestou-se do outro lado:

- Oi, Jorge. Bom dia. É a Cíntia.

Ele sorriu. A amiga constituía uma das pessoas que menos esperava que o ligassem, ainda mais depois do passeio de despedida na noite anterior, quando já haviam trocado, junto com os demais meninos da turma, diversos abraços calorosos e desejos de sucesso. E, não podia negar, Cíntia era um tanto especial para si. Eles haviam ficado algumas vezes, na época do colegial. Ainda que não tivessem mais nada além de amizade, continuavam muito próximos e costumavam sempre se abrir um com o outro, até tratando dos assuntos mais íntimos. Falar em particular com ela antes da partida para Franca, considerando todas as incertezas e receios que dominavam Jorge, seria algo muito benéfico. Isso é, se ela houvesse telefonado realmente para isso...

Porém, como se lesse os pensamentos do rapaz, ela disse, num tom de voz alegre:

- Seu ônibus parte às duas, né? Pensei em talvez sairmos para dar uma volta, antes do almoço, para não te atrasar também... Claro, se você quiser...

- Eu quero sim! – o filho de Nádia e Adalberto respondeu entusiasmado. – Onde te encontro? Daqui quanto tempo?

- Na esquina da minha casa mesmo, daqui uma meia hora, pode ser? Aí damos uma caminhada lá pela área da represa.

- Está bem. Já já sairei daqui. Até lá!

- Até.

Jorge desligou o aparelho, sorrindo. Encontrara a opção perfeita para as horas antes de sua viagem. Cíntia por certo o deixaria mais calmo e seguro, característica inata às palavras sábias que ela costumava lhe falar – excetuando-se casos isolados como o papo sobre chakras em Franca semanas antes. Pegando a chave reserva da morada, o garoto trancou tudo e saiu poucos minutos depois.

* * * * *

A região da represa, situada a cerca de quarenta minutos a pé do centro de Santa Cecília do Oeste, constituía área florestada semelhante a um bosque, a prefeitura tendo nela instalado bancos, brinquedos, banheiros e outros atrativos para que a população ali fizesse caminhadas e saísse aos domingos em família. Era através de uma das trilhas desse espaço, cercada de árvores e com passarinhos voando e cantando entre os galhos, que Jorge e Cíntia andavam sob o agradável céu azul matinal. A garota, como de costume, trajava sua saia indiana, camiseta branca sem manga e tinha o cabelo preso num penteado arrojado composto por três coques que formavam uma espécie de triângulo atrás de sua cabeça. Já o rapaz, apesar do calor, insistia nas roupas pretas com estampas de bandas, no caso “Guns n’ Roses”. Animados, conversavam sobre diversos assuntos, o calouro se sentindo à vontade de uma forma que só conseguia na presença daquela menina que tanto o fascinava...

- Você se lembra de quando o Eurico foi botado para fora de sala uma vez, na aula da Teresa? – indagou a “mística”, rindo.

- Ô se me lembro! – respondeu Jorge, quase gargalhando. – Ele quase a matou com aquele estojo no ventilador! Aliás, olha só a idéia, né! Jogando aquilo para cima sem imaginar que bateria numa das pás e assim sendo rebatido para qualquer direção da sala, inclusive a cabeça da professora!

- Essa foi a melhor mesmo, haha!

Subitamente o assunto morreu, nenhum dos dois conseguindo se recordar de mais algum fato engraçado dos tempos do colegial, e logo o silêncio passou a reinar. Com a cabeça erguida e os olhos fixos no caminho à frente, evitando a qualquer custo fitar a amiga ao seu lado, o garoto confirmou que realmente odiava ficar calado, a sós, na presença de Cíntia. Isso costumava deixá-lo extremamente constrangido desde a época em que haviam ficado, quando então era hábito ele abraçá-la e beijá-la quando as palavras davam trégua. Depois de terem prometido um ao outro conviverem apenas como amigos, cerca de dois anos antes, Jorge tinha vontade de sumir toda vez que essa situação se repetia, esforçando-se ao máximo para não ficar vermelho ou demonstrar qualquer outro sinal de vergonha. Era por isso que se sentia mais seguro em sair com a garota na companhia de André e Renato, ainda que adorasse estar com ela sem ter de ficar ouvindo gracinhas da parte dos dois...

Somando coragem e vendo que seria uma boa saída para evidenciar naturalidade, o jovem voltou a face para a adolescente... percebendo que ela olhava para si de modo fixo, sem nem piscar, focando mais precisamente a região logo abaixo de seu queixo. Estranhando isso e sentindo seu coração acelerar, ele questionou:

- O que foi, Cíntia?

- Essa correntinha – replicou ela de forma simples, apontando ligeiramente uma das mãos para a peça junto ao pescoço de Jorge. – Não tinha reparado nela antes. É recente?

- Sim, meu pai me deu no dia da matrícula na Unesp – explicou o garoto, tateando o fragmento de couro que pendia do artefato. – Bonita, não é? Há algo nela que me chama muito atenção, não sei explicar bem o que é... Algo misterioso, instigante...

- Místico! – exclamou a menina, usando a palavra que mais se aproximava do que o amigo procurava e que também mais combinava com si mesma.

- Talvez... Se bem que de místico meu pai não tem nada...

- Ele te contou a origem desse pendente?

- Nada... Para você ter idéia ele nem o entregou pessoalmente. Como sempre estava viajando, e assim transferiu o encargo à minha mãe. E ela também não faz idéia do que possa se tratar, só mencionando ser um “amuleto” que ele sempre estimou muito... Estranho, né? Ainda mais por meu pai sempre ter afirmado ser ateu. Hoje em dia as crenças das pessoas mudam num piscar de olhos...

- Ele é mesmo ateu, ou só alegou ser esse tempo todo para esconder a verdade sobre sua pessoa? – Cíntia lançou a hipótese num olhar astuto.

- Quê? – atrapalhou-se Jorge, apoiando-se ao tronco de uma árvore assustado com a velocidade de pensamentos da amiga. – Como assim?

- Nunca passou por sua cabeça o motivo de seu pai ser tão ausente, de transparecer tão pouco a respeito de si próprio? Será que ele não escondeu algo de vocês esse tempo todo? E por que motivo ele daria um suposto artefato de caráter místico ao filho logo agora, num momento decisivo da vida deste? Há peças faltando no quebra-cabeças, Jorge. Você realmente deveria começar a se questionar mais sobre a figura do senhor Santos, esforçando-se para entendê-la e quem sabe até não acabar compreendendo mais no tocante a si mesmo...

Em primeira instância, as sentenças sinceras da jovem poderiam soar como total besteira, porém eram dotadas de um forte sentido que Jorge não poderia ignorar. De fato, seu pai aparentava mesmo ocultar algo da esposa e do filho, ao longo de todos aqueles anos. Viagens constantes a trabalho, mas que sempre inseriam pouco dinheiro em casa... Raras falas com os familiares, mistério a respeito de suas convicções e passado... E agora o estranho presente concedido ao herdeiro, indo contra seu suposto ateísmo previamente professado. Adalberto tinha algo, por certo, que deveria ser descoberto pelo filho... Não podia, no entanto, focar-se nisso agora. Partiria para Franca dentro de algumas horas, cursaria História numa universidade pública e voltaria para a terra natal em incertos fins de semana e feriados. Muitas outras coisas ocupariam sua cabeça para que pudesse pensar no que seu progenitor fazia ou deixava de fazer durante suas estadas longe do lar...

- Faz sentido isso tudo que você falou... – afirmou Jorge, olhando para frente e procurando afastar o indesejado silêncio. – Porém, acho que...

Não pôde concluir a frase. Repentinamente sentiu-se agarrado pela esquerda e, quando deu por si, os braços de Cíntia envolviam seu pescoço, suas narinas sentindo o agradável perfume da garota enquanto ela levava os lábios até os do rapaz e iniciavam demorado beijo. Surpreso, mas não desapontado, Jorge perguntou-se, de olhos fechados em meio ao ósculo, qual o motivo da ex-ficante ter de súbito ansiado por relembrar os velhos tempos. Seria o abalo da despedida? Era uma possibilidade, apesar de nunca ter sequer suspeitado que ela pudesse ser emotiva a tal ponto. As bocas permaneceram coladas por mais alguns instantes, até a garota concluir o enlace com um selinho e, afastando o rosto e abrindo os olhos, dizer em voz baixa:

- Não posso negar... você é muito especial pra mim.

- Digo o mesmo... – o calouro replicou, inebriado pela fragrância da moça. – Mas aquela vez, você me disse...

- Esqueça aquela vez.

Puxando a cabeça do garoto para si, Cíntia tornou a beijá-lo. Os lábios que se tateavam valiam por ilimitadas declarações amorosas que pudessem proferir. Ficaram unidos por mais um bom tempo, somente aproveitando aquele momento inesquecível... E, quando os semblantes se afastaram, foi a vez das mãos se unirem, sem qualquer vergonha ou receio. Desse modo passaram a caminhar para fora do bosque, já que a hora começava a tardar. Jorge perguntou à menina:

- Não quer almoçar comigo? Acho que minha mãe vai fazer lasanha.

- Desculpe, mas não posso... Meus tios vão comer lá em casa e meu pai exige que eu faça sala para eles. Sabe, deve ser preferível ter um pai misterioso como o seu do que um abertamente chato como o meu...

- Ah, vai saber!

Ambos riram, aproximando-se da saída do parque da represa. Ganhando a calçada, até seus passos por ela parecendo agora mais próximos entre si do que nunca, o calouro sussurrou à garota:

- Agora tenho um motivo a mais para tentar voltar aqui mais vezes...

Cíntia sorriu encabulada, e eles seguiram adiante.

* * * * *

- Ai, eu não acredito! Chegou mesmo a hora do meu Jorginho ir embora! Por que, meu Deus? Por que esses meninos têm de crescer e se afastar de suas casas, onde estão seguros e são bem-tratados, para tentar a sorte em terras distantes e perigosas? Que tristeza! Meu canarinho vai abrir suas asas e voar!

O desespero da mãe pareceria exagerado a um espectador menos habituado a dramalhões, mas a verdade era ser mesmo sincero. Dona Nádia chorava e pronunciava tais lamentos desde que o filho retornara da rua para almoçar, e ele ainda tivera de agüentar a bronca por tê-la feito pensar, desnorteada, que fora embora mais cedo sem nem ter se despedido dela. Já começando a se acostumar com a agonia materna, comia agora, sentado à mesa da cozinha, cheio de aparente tranqüilidade – porém o fator “Cíntia” somava-se à sua vasta monta de preocupações e inseguranças. Quem diria que a antiga ficante voltaria atrás e simplesmente o agarraria do nada? A sorte parecia sorrir para o “bixo”... ainda que fosse uma sorte regada a muito frio na barriga e, naquele momento em particular, lágrimas...

- Jorginho, mude de idéia, filho! Faça Jornalismo na UniCeci, ou algum outro curso numa cidade vizinha! Não vá para Franca, pela mamãe!

O rapaz, no entanto, sabia que Nádia se encontrava sob domínio do poderoso “surto psiônico do filho que vai embora”, e por isso não falava realmente sério com aquelas palavras. Tinha certeza, inclusive, de que ela viria pedir desculpas pelas frases impensadas antes que ele entrasse no ônibus. Seria melhor ignorar, ou ao menos concordar com “hums”. A lasanha estava boa...

O pai adentrou novamente suas reflexões, sua figura agora iluminada de forma parcial pela teoria que Cíntia havia lhe exposto há pouco. Seria uma boa coisa para se pensar durante a longa viagem de ônibus até Franca: Jorge chegaria ao seu destino apenas à noitinha. Isso é, se não acabasse hibernando em seu assento.

* * * * *

A rodoviária de Santa Cecília do Oeste era simples, para não dizer singela: os ônibus simplesmente paravam enfileirados numa extensão de rua enquanto uma escada, coberta por um toldo, dava acesso ao pequeno espaço fechado que abrigava os guichês de venda de passagens, alguns depósitos e uma lanchonete de salgados caros e ruins. Nesse ambiente iluminado por pequenas lâmpadas brancas, ainda que fizesse sol descoberto do lado de fora, surgiram, apressados, dona Nádia e seu filho Jorge. Faltavam poucos minutos para a chegada do ônibus direcionado a Franca e, se não fosse graças à gentil carona oferecida pelo sempre disponível senhor Costa – que ficara esperando no carro – eles provavelmente teriam aparecido tarde demais.

- Rápido, filho, rápido!

- Calma, mãe... Calma, mãe!

O calouro não podia deslocar-se muito rápido, já que trazia consigo duas malas pesadas, uma em cada mão. Dona Nádia, por sua vez, disparara feito uma bala na direção do guichê da empresa que realizava as viagens rumo ao norte do estado, nem mesmo percebendo que seu rebento ficava para trás. Ela mesma comprou a passagem e retornou com ela em mãos, antes que Jorge conseguisse alcançá-la. Inseriu o bilhete em meio aos dedos de um dos membros do esbaforido garoto e falou, ainda chorosa:

- Vá com Deus, filho... Ah, me dá um abraço!

Apertou-o então com força, os músculos do viajante não mais agüentando e acabando por soltar momentaneamente a bagagem. A mãe o manteve no amplexo por vários instantes, até que o alto som de um freio ecoou pela improvisada plataforma... Era o ônibus que chegava.

A mulher beijou então o rosto do filho e, acenando-lhe calorosamente, acompanhou com lágrimas no rosto sua trajetória veículo adentro – este partindo pouco depois, contornando a rua e logo desaparecendo atrás de uma praça...

Tão rápida, tão sofrida, aquela despedida... Mas no coração cheio de amor da mãe germinava, com muita esperança, a expectativa do retorno.

No interior do transporte, Jorge, por sua vez, observava as construções da cidade passando pela janela, cedendo lugar à paisagem campestre após pouco tempo. Contemplando a própria face através do reflexo do vidro, pensava em si e sua mais recente conquista, nos obstáculos e oportunidades pela frente, em seus pais, em Cíntia... Tantas coisas! Foi assim que, sentindo-se perdido em meio ao turbilhão de tópicos que trafegavam por sua mente, pegou no sono sem perceber...

* * * * *

        

         Uma cena de dez anos atrás...

         Céu estrelado. Um dos fins de semana em que o pai retornara para casa, numa época em que ele se fazia mais presente. Ainda que não permanecesse todos os dias ali, era figura muito mais viva na trajetória do filho do que atualmente. Jorge era então feliz, e não sabia...

         Tratava-se de um domingo, pouco depois das oito da noite. Algum tempo antes terminara, na TV, um jogo do Corinthians, time pelo qual a família torcia com muito afinco. Ganhara da equipe adversária e, pelo bairro, os torcedores haviam começado a disparar rojões e propagar o hino do clube através de alto-falantes em comemoração. O pequeno Jorge adorava o clima festivo decorrente das vitórias do “Timão”, torcendo pelos jogadores mais devido à alegria decorrente das partidas vencidas do que pelo próprio placar em si. Principalmente quando, assim como naquela noite, a mãe fazia algum prato especial para o jantar, num intuito de celebração. A vez era de panquecas de frango, as quais já haviam sido devidamente saboreadas, há pouco, pelos três membros da família. Agora pai e filho, sentados sobre o chão em meio ao jardim de frente para a casa, faziam a digestão com os olhos perdidos entre os brilhantes astros celestes. Àquele período a fachada da residência não era obstruída pelo muro, sendo então possível contemplar também, através das grades do portão, a festa que ainda se desenrolava na rua.

         Entre as estrelas compondo nítidas constelações e os planetas de luminosidade ligeiramente distinta que na presença delas se disfarçavam, uma grande e bonita lua cheia se destacava, sua claridade pálida e imponente tornando a noite menos escura, como se o satélite exclamasse a todos poder ser tão esplendoroso quanto seu irmão sol. Sempre intrigavam o menino Jorge, na superfície da esfera, as manchas escuras que não pareciam compor qualquer imagem coerente, por mais que em cima delas sempre forçasse sua imaginativa mente de criança. Tentando com vontade conseguir ver naqueles aparentes rastros de sujeira maculando o astro noturno algum sentido, o garotinho acabou por se virar para o homem ao seu lado e perguntar, vencido:

         - Por que a lua está encardida, pai?

         Adalberto, sentado com os braços sobre os joelhos dobrados, ergueu a face para o firmamento e, rindo da ingenuidade do filho, respondeu:

         - Ela não está suja. Aquelas manchas formam uma figura.

         - Mas que figura, pai? – revoltou-se o pequeno, estreitando os olhos sem ainda nada conseguir determinar a partir daquelas sombras. – Parece que algum invejoso simplesmente jogou poeira na cara da lua...

         - Muito pelo contrário, filho. A lua exibe com orgulho aquelas marcas, porque elas compõem o desenho de São Jorge, montado em seu cavalo, fincando sua lança no coração de um dragão maligno!

         Seria mesmo? Forçando mais a vista, o menino tornou a fitar o satélite... E, subitamente, conseguiu nele identificar os contornos da cena descrita pelo pai. Na porção esquerda da esfera, pôde enxergar o dito santo, com seu capacete de penacho vermelho, galopando seu cavalo branco, que se mantinha erguido somente em cima dos dois cascos traseiros. Atravessando o centro da lua, a comprida e afiada lança do guerreiro, na diagonal, ia encontrar o peito de um dragão asqueroso à direita que, quase jogado para fora do astro, estrebuchava derrotado; as estrelas, como se batessem palmas, destacando a vitória do cavaleiro com o brilho que pareciam lançar sobre a façanha.

         - Eu vi! – exclamou a criança, empolgada. – Valeu, pai, agora eu vi!

         - Por isso colocamos o nome dele em você, Jorge – explicou o pai, afagando com uma das mãos os cabelos do filho. – Um herói bravo e destemido, como eu sei que um dia você também irá ser!

         - Só não entendo uma coisa...

         - O quê? – Adalberto sorriu.

        - Isso quer dizer que Deus é corintiano? Se não for, por que motivo ele desenharia um São Jorge na lua?

         Rindo, o pai abraçou o menino com carinho, enquanto, com os olhos fixos no céu, continuavam admirando o espetáculo astronômico daquela noite tão agradável...

* * * * *

         Acordou num sobressalto, impelindo o tronco para frente e por pouco não batendo a testa no assento diante do seu, pois deteve o deslocamento da cabeça a tempo. Aturdido, viu-se com o corpo um tanto suado, roupas conseqüentemente molhadas, e olhou através da janela do ônibus logo ao seu lado. Entardecia lá fora, o céu assumindo tons enferrujados enquanto os condomínios característicos da área mais desenvolvida de Ribeirão Preto davam o ar de sua graça. O rapaz esfregou a fronte com uma das mãos: realmente dormira ininterruptamente por horas, o que o levara a ter sonhos estranhos relembrando sua infância. Como cogitara, acabara realmente hibernando junto ao duro banco que, como agora constatava, lhe acometera de incômoda dor nas costas...

         - Ai... – murmurou, massageando-as com uma das mãos.

         Logo estaria em Franca, e esperava poder descansar no apartamento que lhe serviria de morada provisória. Fitando os demais assentos do transporte, notou que boa parte dos passageiros neles acomodados quando do embarque em Santa Cecília do Oeste já havia descido do veículo. Por quantas cidades aquele ônibus passara, qual rota exatamente fizera? Bem, graças a seu sono, o garoto só poderia agora descobrir isso na viagem de volta para casa, dentro de três semanas ou mais...

         Suspirou, deitando sua cabeça sobre as palmas de ambas as mãos. Mesmo tendo acordado há poucos segundos, já não conseguia se recordar com clareza do que sonhara. Sabia apenas envolver a si, seu pai e... São Jorge? Por certo não deveria passar de um reflexo de seus pensamentos na figura paterna e no mistério que supostamente a cercava, fruto das afirmações de Cíntia aquela manhã... Procurando, mais uma vez, esquecer essas questões, o calouro decidiu tentar manter-se relaxado – e, se possível, acordado – até a chegada a Franca.

         O ônibus seguiu adiante. Brodowski, à noite, parecia ainda mais encantadora do que sob a luz diurna, suas casas e pequenas igrejas iluminadas aparentando saudar quem passasse pela rodovia que a cortava. Batatais, também tomada por pontos brilhantes nas tonalidades branca e amarela, igualmente ganhava aspecto atraente, e o rapaz riu ao identificar, na fachada de um dos botecos da cidade, uma representação do clássico personagem de videogame “Super Mario” representando o dono. Viajar grandes distâncias e ver coisas curiosas pelo caminho parecia estar se tornando uma diversão para si.

         Veio então um trecho de estrada mais extenso sem povoações pelo caminho, as placas de “Restinga” mais uma vez indicando um local que aparentava não existir. As primeiras colinas francanas logo se fizeram anunciar, com subidas um tanto acentuadas e outdoors pelo trajeto. Um deles, inclusive, fazia propaganda de uma danceteria chamada “Agito do Luca”, provavelmente mais um dos empreendimentos do homem de negócios que, segundo dissera Baloo, vinha conquistando tanto espaço na cidade. E, de trás do mesmo morro com a mesma base da polícia rodoviária, a paisagem noturna de Franca materializou-se.

         A silhueta composta de construções variadas era a mesma antes vista sob a luz do sol no dia da matrícula – mas agora, nas sombras, apresentava um contraste de claro e escuro bem interessante. O shopping center amarelado ostentava diversas áreas claras destacando logomarcas e nomes chamativos, os prédios em obras perto de si, por sua vez, parecendo semifundidos à penumbra. O centro, na colina principal, era espetáculo à parte com seus edifícios em que pipocavam janelas acesas e a torre da catedral, iluminada num azul vivo e intenso e fazendo-se, assim, visível de qualquer ponto da urbe interiorana. O ônibus, como Jorge logo percebeu, entrou por um lado diferente desta, passando em frente ao grande e atraente campus da Unifran – no ponto da universidade descendo um grupo de estudantes.

O transporte continuou avançando e virou perto de um viaduto, adentrando um dos bairros mais ao norte de Franca. O calouro sentiu-se de início meio perdido; porém, ao vislumbrar o centro se aproximando com a igreja bastante perceptível – como um farol em meio ao cenário ainda não tão bem conhecido por si – concluiu que todos os caminhos levavam para perto da República Kamelot ou, no mínimo, para a rodoviária. Teria só de prestar atenção aos arredores e descer na parada que julgasse correta...

Foi quando algo atraiu sua visão.

Reduzindo a velocidade, o veículo passou a manobrar para poder avançar através de um trecho da rua que, pouco adiante, encontrava-se em parte bloqueado por viaturas da Polícia Militar, sirenes ligadas. Jorge, observando pelo vidro, de início pensou se tratar de uma blitz rotineira – prática comum em cidades maiores – mas sem demora concluiu haver algo realmente errado quando avistou manchas de sangue em cima do asfalto. Arregalou os olhos e forçou o pescoço para tentar enxergar melhor, prejudicado pelo ângulo do transporte em relação ao que desejava examinar. Diversos policiais caminhavam pela área com suas armas em punho afastando curiosos, enquanto dois homens aparentando pertencerem ao IML carregavam um saco plástico negro para dentro de uma ambulância... Teria ocorrido ali um homicídio?

Ainda olhando para a provável cena de crime, sua curiosidade favorecida pela lentidão do ônibus em se afastar, Jorge mirou uma dupla de oficiais em particular levando um sujeito algemado para o interior de uma das viaturas. Precisariam atravessar a rua para fazê-lo e, nesse meio tempo, o calouro conseguiu observar de frente a figura do provável assassino: pele branca, jaqueta preta, camiseta cinza sem estampas por baixo, calça jeans desfiada em alguns pontos, tênis nos pés... Sua cabeça era coberta por uma série de fios compridos de cabelo, loiros e finos, até seus ombros... E o semblante, mais pálido do que seria considerado normal, possuía sardas em profusão, contornos ásperos, a boca semi-aberta revelando em sua seção frontal alguns dentes podres...

Subitamente, como se tivesse sua percepção despertada de forma intensa por algo desconhecido, o criminoso levantou os olhos... encontrando os de Jorge a encará-lo, através da janela. O jovem de imediato sentiu seu corpo gelar, as pupilas daquele indivíduo possuindo algo de muito aterrador, de perverso... Por um momento achou ser acometido de náuseas como quando se deparara com a inexplicável freira no banheiro da Unesp, porém a péssima impressão foi deixada para trás junto com a aglomeração de policiais... E, respirando aliviado, o assustado rapaz procurou não pensar mais a respeito...

O trajeto desdobrou-se numa ampla e comprida avenida, que em dado momento converteu-se num “sobe e desce”... acabando por atingir uma via que o “bixo” memorizara em sua vinda anterior à cidade: a Avenida Champagnat. Aturdido, apanhou rapidamente suas duas malas e seguiu desajeitado pelo corredor do ônibus, esbarrando em algumas pessoas sentadas e pedindo-lhes desculpas diante de suas caras feias. Deu então duas batidinhas na porta que separava a cabine do motorista dos passageiros e, fazendo-lhe um sinal, conseguiu que ele parasse num ponto na Avenida Alonso y Alonso para sair. Ofegando, Jorge saltou pelo último degrau e viu se encontrar numa pracinha diante do que parecia uma distribuidora de refrigerante.

Em Franca, mais uma vez.

Contente, o estudante pôs-se a atravessar uma rua seguindo a direção da avenida que levava ao prédio em que Baloo e seu amigo moravam, a poucos quarteirões dali. Tivera sorte de existir um ponto nas redondezas e não ter de descer apenas na rodoviária, o que o teria obrigado a deslocar-se uma distância bem maior até a república. Distraído, fitava o restaurante de fast-food árabe iluminado numa esquina logo à frente, anunciando em grandes letreiros suas esfirras abertas custando poucos centavos, e o posto de gasolina em madeira situado do lado oposto da via, alguns carros e caminhonetes ali parados enquanto abasteciam com o som alto...

VRRAAAAMMM!

Num imenso susto, Jorge saltou para trás após dar os primeiros passos fora da calçada, recuando instintivamente de um carro preto que passou em alta velocidade diante de si, por muito pouco não o atropelando. Com o coração aos pulos e faltando-lhe ar, o calouro passou alguns instantes recobrando-se – pensando se não seria aquela sensação a descrita nos filmes como “ver a vida toda passar diante dos olhos”. Teria de tomar mais cuidado dali em diante: encontrava-se numa cidade maior, de trânsito presumivelmente mais caótico, e se não prestasse maior atenção ao redor, poderia acabar logo entrando para as estatísticas. Tornou a caminhar, agora bem mais atento, demorando-se a atravessar cada rua, principalmente a rotatória em que a Champagnat cruzava com a Alonso y Alonso.

Passando pela mesma calçada do posto de madeira e dessa vez, assim, conseguindo observá-lo mais de perto, Jorge constatou haver nele, entre outras pequenas lojas e serviços, uma atraente padaria – memorizando sua fachada por acreditar que ainda viria muito comer ali. Continuando pela avenida, logo desceu pelo declive anteriormente visitado e, olhando para sua direita, fitou a cachoeira do córrego em seu aspecto noturno. Parcialmente clareada pela luz dos postes de ambos os lados da travessia, continuava despejando água sobre as pedras em sua base num som baixo, quase mudo, esperando o retorno da luz do dia para que todos voltassem a admirar sua graça em meio à selva de concreto. Dobrou então uma rua, contornando um muro amarelo dotado de alguns portões... E, satisfeito, o recém-chegado, mãos cansadas pelo peso das malas, viu-se mais uma vez diante da porta de metal e vidro do edifício que, ao menos por algum tempo, lhe serviria de lar.

Concluindo que a entrada se encontrava trancada, o rapaz aproximou-se do painel de interfone existente ao seu lado, pressionando o botão do apartamento seis. A campainha eletrônica ressoou através do aparelho e, pouco depois, a voz abafada, mas reconhecível, de Baloo, fez-se ouvir do outro lado:

- Quem é?

- É o Jorge.

- Ah, sobe aí, bixão!

Houve um estalido férreo, e a tranca da porta foi automaticamente liberada. Carregando sua bagagem da melhor forma que conseguia, seus dedos até marcados pelas alças das bolsas, o calouro empurrou o obstáculo semi-aberto com um dos ombros e entrou, vencendo a pequena escada interna... uma lâmpada branca sendo acesa em seu caminho. Sorrindo, torceu para que seus demais passos em Franca, a partir daquela noite, fossem igualmente iluminados.

Subiu pela outra escada, sem demora parando em frente à porta do apartamento seis. Deu duas leves batidas sobre a madeira – suficiente para que o ruído de uma chave girando na fechadura fosse escutado, o caminho sendo liberado logo em seguida. Jorge, então, viu-se encarando a corpulenta figura de Baloo, potenciada pelo fato de, naquele momento, estar sem camisa e trajando apenas uma bermuda marrom. Seu peito era muito peludo, o que certamente contribuía para o apelido de urso. Sorrindo, ele afastou-se para o calouro entrar, dizendo:

- Aí, seja bem-vindo, bixo! Fique à vontade. Pode colocar suas malas lá no quarto!

Cruzando a sala de estar, erguendo as bolsas para que não esbarrassem no sofá ou na TV ligada, Jorge rumou para o corredorzinho que fornecia acesso ao cômodo que lhe fora reservado. Acionando o interruptor da luz, constatou que o ambiente encontrava-se totalmente vazio, as paredes brancas possuindo algumas marcas de sujeira e o piso cinza mais elevado em relação ao chão do que deveria ser. A única coisa ali presente, antes de depositar sua bagagem no chão, era um colchão forrado por um lençol azul, dotado também de travesseiro sem fronha. O garoto agradeceu mentalmente à mãe por ter incluído uma ou duas delas em sua carga...

- O Marcos te emprestou esse colchão, pode usar pelo tempo que precisar – informou Baloo, que acompanhara o “bixo” até ali. – Quanto a armário, infelizmente vamos ficar te devendo. Caso você se torne morador fixo daqui, pode comprar algum na cidade. Mas por enquanto acho que terá de usar suas malas como guarda-roupa mesmo.

- Sem problema! – o novo morador de Kamelot anuiu tranqüilo.

Nisso, o veterano encaminhou-se até a janela marrom fechada do quarto, abrindo-a. Através dela, como Jorge logo percebeu, era possível ter vislumbre parcial da cachoeira da avenida. Rindo, Baloo apontou para fora e afirmou:

- De brinde, você também terá acesso visual à nossa Avalon particular, hehe!

O calouro também riu, achando graça na analogia. Saindo de perto da janela, o aluno do terceiro ano de História indicou em seguida o corredor e falou, já o adentrando:

- Venha, depois você arruma suas coisas. Vou te apresentar o Marcos.

         O outro assentiu com a cabeça, seguindo-o.

         Passaram de novo pela sala, vazia, e ganharam a cozinha. Nela, junto à mesa de jantar redonda – que lembrava, de fato, a távola arturiana à qual a república remetia – havia um outro jovem sentado. Magro, cabelos negros curtos, quase raspados, óculos no rosto, camisa e calça jeans lhe cobrindo o corpo. Distraído, saboreava um prato de comida e só se deu conta da chegada dos demais universitários quando estes surgiram bem diante de si. Levantou então a cabeça e, depois de terminar de mastigar um pedaço de carne, indagou a Baloo:

         - É esse o bixo?

         - Isso! – confirmou ele. – Jorge, esse é o Marcos, um dos raros unespianos que conheço que conseguiram sair do primeiro ano sem nenhum apelido. Marcos, esse é o Jorge.

         - Prazer, cara! – falou o estudante de Direito, estendendo uma das mãos para o novo colega.

         - Prazer – respondeu o calouro um tanto tímido, correspondendo ao cumprimento.

         - Também fui bixo do Baloo. Estou aqui desde o ano passado. Confie em mim: ele é um veterano bonzinho!

         - Espero que sim... – o “bixo” riu de forma um pouco forçada.

         - Não sou bonzinho! – negou o outro veterano, dirigindo-se até o fogão situado atrás de uma espécie de bancada que dividia a sala. – Como diria um certo professor do curso de História, eu sou “magnânimo”.

         Ele retornou pouco depois com duas panelas em mãos: uma contendo feijão e a outra arroz. Colocando-as sobre a mesa, apanhou então um prato contendo pedaços de bife que se encontrava em cima da pia e, indo abrir então a geladeira, de onde retirou uma jarra de suco de laranja, disse a Jorge:

         - Eu presumo que você não tenha comido nada desde o almoço, pelo horário em que viajou. Sente-se e jante com a gente.

         O filho de dona Nádia mal tinha palavras para agradecer. Sentando-se também à mesa, pôs-se a comer e beber com os novos companheiros de teto. A ceia, como logo descobriu, fora preparada por Baloo, que mostrava-se um ás do fogão. O feijão estava bem temperado, o arroz soltinho e o bife, além de suculento, bem macio de se mastigar. O suco de laranja, ainda que artificial, fora mexido na medida certa para lembrar o natural o máximo possível. Alimentaram-se de maneira descontraída, o veterano-mor da república, como vinha evidenciando ser um traço marcante de sua personalidade, contando casos engraçados que lhe haviam acontecido. Já Marcos, quieto, comia olhando para o próprio prato e trocando raras palavras até com Baloo. Aparentava até ser mais tímido que Jorge, e olha que já morava ali há um ano...

         - Bem, agora que terminamos de comer... – disse o são-paulino, empurrando para frente seu prato vazio. – Está na hora da cerimônia de sagração!

         - Sagração? – o “bixo” olhou sem compreender, tomado por leve receio.

         - Sim, para você se tornar um integrante efetivo da três vezes honrada e respeitada República Kamelot! Um digno cavaleiro da Távola Redonda!

         - Não ligue para isso, é mania dele... – murmurou Marcos para Jorge num esboço de sorriso, limpando a boca com um guardanapo.

         - Ó cavaleiro das nobres leis romanas preservadas e aplicadas nestas sagradas terras bretãs, traga-me Caliburn!

         - Está bem, está bem...

         Claramente entediado e nada disposto a tomar parte na brincadeira – a qual o calouro torcia para não consistir em nenhum trote constrangedor – Marcos levantou-se e seguiu até a área de serviço. Voltou rápido, carregando numa das mãos, pelo cabo, uma vassoura de revestimento carcomido e várias cerdas faltando. Ainda que não correspondesse à lendária espada bretã em sua aparência, devia ser tão, ou mais, antiga do que ela. O estudante de Direito entregou o utensílio doméstico a Baloo numa pretensa forma solene, este tomando-a em suas mãos como se fosse realmente um artefato místico e ordenando ao recém-ingresso aluno do curso de História:

         - Bixo, prostrai-vos.

         - Quê? – replicou um confuso Jorge ainda sentado.

         - De joelhos, ingênuo escudeiro!

         Temendo represálias do “rei” por não cumprir a instrução, o calouro pôs-se imediatamente de joelhos sobre o azulejo gelado do chão. Caminhando até si em seguida, portando a vassoura como uma legítima espada sagrada, Baloo deteve-se de pé de frente para Jorge e passou a falar, conforme fazia os clássicos movimentos com o sabre de mentirinha sobre cada ombro do investido:

         - Eu o sagro... Sir George from Saint Cecil of the West, grande condado… Cavaleiro de Kamelot!

         O pobre “bixo” permaneceu mais alguns segundos prostrado, cabeça baixa, antes de ouvir por parte daquele que o nomeara:

         - Pode se erguer, cavaleiro.

         Jorge o fez sorrindo; Marcos, junto à geladeira, batendo palmas sem vontade. Logo depois Baloo colocou uma das mãos no ombro direito do novo morador, encarou fundo seus olhos e revelou, num tom épico:

         - Já possui uma nobre missão, honrado Sir George. Uma demanda de cujo sucesso dependem a paz e a estabilidade nesta gloriosa república.

         - Qual? – perguntou o calouro de olhos arregalados, curioso.

         - Enfrentar o terrível Mordred da louça! – esclareceu o veterano, ao mesmo tempo em que apontava para as panelas, pratos, copos e talheres sujos em cima da mesa.

         O garoto incumbido da tarefa suspirou...

         O fim de noite veio rápido. Às dez e meia Jorge já se encontrava deitado no colchão para dormir, luz apagada, tendo consciência do dia cheio que teria pela frente logo que o sol raiasse. Apesar de sua aula ser somente à noite, pretendia passar o resto do dia procurando emprego pela cidade. Nada muito ambicioso: apenas um encargo de meio-período que o auxiliasse nas despesas de morar sozinho. Baloo e Marcos também haviam lhe informado sobre as bolsas de pesquisa e auxílio que a faculdade oferecia – valioso recurso que o rapaz também planejava perseguir. Procurava conter a ansiedade enquanto se acostumava ao leito desconhecido, desejando com todas as forças que ele não acabasse por prejudicar suas horas de sono, ainda mais por já sofrer com a dor nas costas que o assento do ônibus lhe causara. Adormeceu, no entanto, sem muita demora, sua cabeça podendo finalmente descansar depois de mais um dia repleto de descobertas e aventuras – como sua vida inteira vinha se tornando desde aquela realizadora aprovação no vestibular...


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