Fate - Supremacy Rota Um: Desejo escrita por Goldfield


Capítulo 3
Desejo, Dia 02: Inserção




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Desejo, Dia 02: Inserção

         Jorge despertou com uma claridade forte e repentina em seu rosto. Tentou, instintivamente e resmungando palavrões, cobrir-se com o lençol e voltar a dormir, porém a voz apressada e enérgica da mãe impeliu-o a saltar da cama:

         - Vamos, filho! Temos logo de pegar a estrada para chegar cedo em Franca!

         De fato, ainda era madrugada, como o garoto logo comprovou fitando o céu escuro através da janela que dona Nádia abrira à força – fato agravado pelo ainda vigente horário de verão. Bocejando, o rapaz sentou-se sobre o colchão e apanhou rapidamente as peças de roupa que deixara prontas, no dia anterior, junto ao encosto de uma cadeira. Enquanto se vestia, a mãe avisou-o, deixando o quarto:

         - Termine de se trocar e venha tomar café. Logo o senhor Costa chegará para nos levar. E ah, seu pai disse que ligaria antes de irmos.

         Jorge apenas concordou com a cabeça, sonolento. Terminando de colocar a fiel camiseta do Scorpions e as calças, calçava agora seus coturnos. Quem diria que as semanas entre a aprovação e a matrícula passariam tão rápido! E seu pai, só para variar, encontrava-se viajando... A última vez que retornara para o lar fora há pouco mais de uma semana, tendo permanecido poucos dias. Sua presença em casa era cada vez mais escassa e sua ausência bem mais sentida, ainda mais agora que o filho se mudaria e somente o veria nos raros fins de semana em que voltasse e também conseguisse encontrá-lo ali. Bufando, o garoto concluiu a tarefa de vestir-se e rumou para a cozinha. Um modesto, porém saboroso, café da manhã composto de café com leite e pão com manteiga o aguardava.

         - Estamos adiantados, pode comer sem pressa – dona Nádia parecia se contradizer, ao mesmo tempo em que, sentada à mesa, também se alimentava.

         O filho igualmente acomodou-se junto ao móvel e pegou uma fatia de pão. Nunca haviam tido muito dinheiro, como o aspecto da residência e a vida cotidiana que levavam facilmente fazia supor. A mãe sempre realizara bicos, trabalhando desde faxineira até recepcionista em diversos locais da cidade. Estava, no entanto, atualmente desempregada, passando todo tempo apenas a cuidar da casa. Já o pai, apesar do emprego que lhe demandava tanto tempo e afastamento, jamais conseguira contribuir com grandes somas ao orçamento familiar. Jorge, filho único, nunca trabalhara, impedido pelos próprios pais, que desejavam que o filho se dedicasse unicamente aos estudos, para só então vir a ter um emprego – um bom o bastante. Talvez por isso a perspectiva do menino dar aulas de História não os agradasse tanto. A escolha, no entanto, era dele. Jorge quem deveria decidir o que fazer de sua vida, e ser feliz assim.

        

         TRIIIMMM! TRIIIMMM!

         - É o seu pai! – falou dona Nádia após um gole de café.

         O telefone fixo da casa era bem antigo, de campainha. Jorge não podia dizer que achava o aparelho antiquado, já que adorava coisas antigas. Levantando-se da mesa, correu até a sala e atendeu à ligação. Depois de breve silêncio, a voz do pai, Adalberto, manifestou-se do outro lado:

         - Bom dia, filhão.

         - Bom dia, pai.

         - Deve estar se preparando para pôr o pé na estrada, certo? Façam boa viagem. Espero que corra tudo bem lá em Franca, e que a matrícula seja rápida. Lembre-se de já ver algum lugar para morar, nem que seja uma república temporária. E me desculpe por não poder estar presente nesse momento, tanto para lhe dar os parabéns, quanto para ajudá-lo.

         - Relaxa, pai. Onde o senhor está agora?

         - Indo com meus colegas levar um carregamento de batatas para Casa Branca. Conhece?

         - Nunca ouvi falar.

         - Estarei de volta o quanto antes, e torço para que eu o veja antes de você se mudar definitivamente para lá. Mais uma coisa: eu pedi à sua mãe para lhe dar algo antes de partirem. Trata-se de uma correntinha que era minha e agora quero dar a você. Esteve comigo desde a adolescência e creio que lhe trará boa sorte, além de passar adiante, de forma simbólica, o legado de nossa família. Acho que é isso. Até mais, filhão.

         - OK. Tchau, pai. Bom trabalho aí.

         - Boa viagem e boa matrícula. Até.

         Jorge desligou o telefone. Não conseguira evitar falar com Adalberto num tom desanimado, pois a ausência dele em sua vida realmente o entristecia, ainda mais àquele momento tão marcante para si. Não havia muito que pudesse fazer, no entanto. Tinha de avançar de cabeça erguida, pronto para os novos desafios que surgiriam em seu caminho. E estava certo de que não seriam poucos...

         Voltando-se para a mãe, que caminhara até a sala, viu-a, sorrindo, com uma correntinha de metal em mãos, na qual se destacava um estranho pendente. Tratava-se, ao que aparentava, de uma pequena tira de couro bastante velha, possuindo em sua extremidade superior algo como uma ainda mais diminuta peça dourada presa. Aquele era o presente que o pai desejava dar a Jorge, então. Estendendo-o ao filho, Nádia falou, em tom sério, apesar da alegria que a envolvia:

         - Cuide bem dele. Era de Adalberto, e ele sempre o estimou muito. Usava-o como uma espécie de amuleto, ainda que eu não acredite nessas bobeiras... Enfim, era importante para seu pai. Agora ele o está dando a você.

         O garoto apanhou o artefato. Examinando-o em suas mãos, tateou o cordão metálico, seus dedos sentindo o relevo oscilante dos minúsculos segmentos da corrente. Chegaram então ao pingente de couro, tão antigo que Jorge até temeu que viesse a se desintegrar com o contato. Manteve-se firme e sólido, porém, o componente dourado refletindo a luz da lâmpada acesa do cômodo e aparentando, devido à sua posição, ter mantido antes uma continuidade da peça colada àquela do colar, a mesma provavelmente tendo se perdido com o tempo. Aquilo devia estar com sua família há muitas gerações, realmente.

         - Depois quero perguntar ao pai qual a origem disto, fiquei curioso... – murmurou o rapaz, inserindo o presente em torno de seu pescoço.

         BIIII! BIIII!

         Novo som, agora oriundo da rua em frente à casa. O senhor Costa havia chegado – antes que o previsto, convinha salientar. Dona Nádia apressou-se em direção à cozinha enquanto exclamava:

         - Mande-o esperar um pouco, filho. Vou preparar seu lanche, para comer no caminho, e ir ao banheiro!

         Jorge assentiu, abrindo a porta da sala e atravessando o pequeno jardim de hortaliças entre o interior da moradia e o muro que a circundava, rumo ao portão de ferro. O céu azul escuro da madrugada começava a ganhar seus primeiros contornos alaranjados... E a odisséia francana do futuro historiador estava apenas no início.

* * * * *

         A manhã permaneceu nublada, com os raios solares perfurando a espessa camada de nuvens cinza aqui e ali. A paisagem climática fechada permaneceu a mesma de Santa Cecília do Oeste até os arredores de Franca, como se cobrisse o estado inteiro. Apesar das reclamações da mãe relativas ao tempo feio, Jorge não o interpretou como mau agouro. Até preferia dias cinzentos, para falar a verdade. E, enquanto não chovesse forte, tudo continuaria bem.

         O caminho, apesar de composto de um amálgama de estradas municipais e trechos de rodovias maiores, parecia constituir um trajeto reto com raros desvios. O cenário predominante era o de relevo de planaltos, elevações onduladas compondo extensos paredões ou colinas solitárias pintadas de verde. Em meio a essas formações naturais, cidadezinhas amigáveis e usinas de cana de açúcar imperavam. Havia, entretanto, urbes de tamanho maior ao longo do trajeto. A que mais encantou Jorge foi Ribeirão Preto, pólo agrícola bastante desenvolvido e aglomerado de prédios altos e modernos no sertão dos bandeirantes. Só a partir de tal ponto na viagem que o garoto, livrando-se também do sono que até então lhe vinha acometendo de freqüentes “pescadas” no assento do carro, passou a determinar com atenção os nomes das localidades por que passava. A povoação seguinte, quase colada a Ribeirão Preto, era a pequena cidade de Brodowski. Ali vivera Candido Portinari, famoso pintor que morrera intoxicado pelas próprias tintas. Depois veio Batatais, maior que a anterior mas igualmente reduzida, predominando em seu panorama a igreja de cúpula chamativa que abrigava várias pinturas do mesmo artista citado. Jorge gostaria de visitar seu interior numa outra ocasião, quando tivesse tempo. Bem, com quatro anos passando por aquelas redondezas, oportunidades não faltariam.

         Em seguida a estrada assumiu intenso “sobe e desce”, revelando que a região aumentava em altitude. Vieram alguns pedágios, viadutos. Placas indicavam outra cidade, “Restinga”, mas ela não passou pela estrada. O céu de nuvens carregadas parecia assumir cores cada vez mais escuras conforme o carro se aproximava de Franca, lá provavelmente já chovendo. Numa analogia engraçada, Jorge lembrou-se de “Mordor”, da trilogia “Senhor dos Anéis”. Só esperava que em seu novo lar não o aguardasse nenhum “Sméagol”, nem nenhum “Sauron”...

         Mais algumas elevações, curvas... Uma interessante pista de aeromodelismo à esquerda da rodovia, outdoors... Dona Nádia comia o lanche do filho, após este ter afirmado não ter fome... O senhor Costa, de cabelos grisalhos, continuava dirigindo com uma expressão facial serena e despreocupada... “Franca – 11 km”... Mais curvas, um viaduto nomeado com o nome de alguém que havia sido importante na cidade... Um posto de gasolina, uma base da polícia rodoviária... E o destino do veículo finalmente surgiu, como que brotado de trás de um morro após aproximadamente três horas de viagem.

         A paisagem urbana fez Jorge sorrir, aparentando a si ser bastante convidativa. Logo de cara observava-se vários prédios, coisa rara em sua terra natal. O centro da cidade, situado numa colina proeminente, parecia já se encontrar logo à entrada, os demais e abundantes bairros ocultos atrás de si, espalhando-se por elevações e mais elevações. À esquerda do cenário, um shopping center desenhava-se baixo e amarelado, ostentando alto estandarte do “McDonald’s”, como uma águia romana. Ao redor de si via-se diversos condomínios em construção – aparentemente a urbe encontrava-se em expansão para aquele lado. Pousando seus olhos novamente sobre o centro, o rapaz admirou a torre azul e branca da Catedral de Nossa Senhora da Conceição, igreja antiga e vistosa que, de acordo com o que pesquisara, recebia iluminação própria durante a noite. Erguia-se inserida num complexo de prédios mais velhos e uma abundância de verde – aspecto que chamava bastante atenção na paisagem como um todo. Manobrando através de uma rotatória próxima de um ginásio chamado “Pedrocão”, principal palco de atividades esportivas em Franca e lar de seu estimado time de basquete, Costa passou pelo posto de gasolina “Galo Branco”, um dos points da população local, e ganhou uma avenida possuindo córrego, as placas de sinalização indicando seu nome: “Dr. Ismael Alonso y Alonso”. Nome curioso, no mínimo. De acordo com o que Jorge vira no Google Maps, compunha uma das vias de acesso à Avenida Getúlio Vargas, que por sua vez levava às proximidades do campus novo da Unesp, local onde o rapaz cursaria História e onde seria efetuada a matrícula.

         Esparramando-se no assento do carro, ao lado do motorista, o garoto suspirou. Nova vida... Mal podia acreditar...

         Após percorrerem praticamente metade da urbe, os ocupantes do automóvel chegaram à avenida da faculdade, chamada Eufrásia Monteiro Petráglia, ou “Petruglia”, Jorge não conseguindo determinar muito bem o sobrenome italiano. Não fora difícil encontrar a mesma, bastando realmente só seguir algumas vias principais. O rapaz achava-se surpreso com o isolamento do campus. Encontrava-se situado praticamente fora de Franca, sua paisagem de fundo constituindo vasto descampado, com serras e mata ao longe, além de um amontoado de casinhas em torno de uma igreja que não se sabia ser um bairro mais afastado ou já uma outra cidade. O garoto lera na Internet que, até o final de 2008, a Unesp funcionara no centro, logo atrás da catedral, no prédio do antigo Colégio Nossa Senhora de Lourdes, um internato para moças. A estrutura deste, supostamente, já estava bastante desgastada, apresentando incontáveis pontos de risco de desabamento e limitando as atividades dos cursos e extensão, a mudança para o longínquo novo campus se fazendo assim necessária da forma mais rápida possível – com intuito, é claro, também politiqueiro. Esse aspecto era denotado pelo enorme outdoor com o rosto sorridente de um deputado existente no terreno baldio diante da entrada da universidade. O entusiasmado Jorge, porém, considerou até a expressão “Colgate” do parlamentar como mais uma congratulação de boas-vindas.

         Manobrando pela rotatória diante da guarita com cancela que constituía “portão” do campus, o senhor Costa descobriu, por meio de um segurança, não ser permitido estacionar lá dentro. Desse modo, em meio a um resmungo de dona Nádia, o idoso percorreu a avenida mais alguns metros, encontrando uma vaga junto à calçada logo à frente. Desligou o motor e abriu a porta ao lado de seu banco, saindo a assoviar. Já Jorge, por sua vez, conferiu maior ritualismo ao ato. Aquele seria seu primeiro passo em Franca, sua nova casa. Acionando lentamente a alavanca da porta, afastou-a de modo ainda mais devagar e, esticando a perna direita como se fosse o primeiro humano a descer na lua... fez seu coturno pousar sobre a calçada. Ia conferir igual caráter épico ao segundo passo naquela terra estranha, mas sua mãe, empurrando o assento e insistindo para que saísse rápido, quebrou completamente o clima do momento. O rapaz apenas suspirou enquanto a mulher também deixava o veículo e o trio, unido, passava a caminhar até a entrada do campus.

         Passaram pela guarita, cumprimentaram o segurança de antes e desceram pelo declive asfaltado que, assemelhando-se a uma rua secundária, avançava faculdade adentro, dividindo-se em outros estreitos caminhos que pareciam percorrer toda a extensão do lugar. Percebendo que uma dessas vias efetuava contorno circular em torno do que pareciam os prédios principais da instituição, Jorge imaginou o quão seria legal montar ali uma pista de kart. Logo descartou a idéia, porém.

         Seguiram descendo. À sua direita o garoto viu uma edificação um tanto ampla com a placa “Biblioteca”. Seu provável recanto de estudos principal nos próximos quatro anos. À esquerda, logo abaixo, após um pequeno canteiro regado com dispositivos automáticos, avistou uma casa de força e, atrás dela, uma espécie de pátio com bancos de pedra e palmeiras recém-plantadas. Ao fim desse espaço existia outra construção de dois andares, extensa, abrigando as salas de aula dos quatro cursos disponibilizados pela Unesp Franca: História, Serviço Social, Direito e Relações Internacionais. Havia outros prédios ao redor – três ou quatro, sendo que um deles ainda não havia sido concluído – no entanto as atenções do calouro e seus acompanhantes focaram-se de modo total naquele bloco... principalmente devido aos prováveis estudantes que, em grupo, vieram recepcioná-los com gritos eufóricos:

         BIXO! BIXO! BIXO! BIXO! BIXO!

         Jorge gelou. Tão empolgado com a aprovação no vestibular e a nova cidade, o rapaz acabara nem pensando nisso antes... O trote. As terríveis brincadeiras dos veteranos com os calouros das quais tanto ouvira falar. O que fariam com ele? Droga... Ao menos estava junto de sua mãe. Não poderiam cometer um ato homicida logo ali! Esperava ao menos que aquele campus não tivesse piscina...

         BIXO! BIXO! BIXO!

         Eles o cercaram, garotos e garotas. Alguns vestiam camisetas de seus respectivos cursos, estas possuindo ora desenhos variados, ora o emblema da faculdade: o contorno territorial do estado de São Paulo montado com algumas figuras triangulares. As aulas ainda estavam um tanto longe de começar, então aqueles alunos realmente haviam voltado mais cedo para Franca somente para zoar os “bixos”. Um tanto trêmulo, Jorge viu seus veteranos mergulharem os dedos em vidrinhos de guache... e os passarem sobre sua pele de forma desordenada, manchando suas bochechas, queixo, braços, mãos, roupa... Uma menina, por sinal bem sorridente, demorou-se mais no processo, aparentemente escrevendo algo na testa do calouro. Descobriria pouco depois, ao olhar-se no espelho de um dos banheiros, tratar-se da palavra “bixo”. Eficiente forma de identificação.

         - Qual curso, bixo? – inquiriu um rapaz próximo.

         - História! – exclamou o recém-chegado, um tanto aturdido. – História noturno!

         - Aí, é o novo Hobsbawn, bixão!

         Ignorando quem seria o tal Hobsbawn, Jorge seguiu avançando prédio adentro. Sua mãe, no início um pouco assustada com a situação, agora ria. Pelo visto eles apenas pintariam o filho com aquelas tintas, e não passaria disso. Certo temor tomou o jovem quando um aluno de Direito surgiu com uma tesoura em mãos, apontando-a de forma ameaçadora para o convicto cabeludo, mas quando este disse que se possível gostaria que seus há tanto tempo cultivados cabelos compridos não fossem cortados, o veterano respeitou-o e simplesmente se afastou. É, muito do exagero envolvendo os trotes parecia de súbito ter se tornado lenda. Ao menos ali.

         Após a folia inicial, mãe e filho, na companhia do senhor Costa, procuraram se informar a respeito de onde a matrícula estava sendo feita. Descobriram que deveriam rumar até o anfiteatro localizado no térreo daquele mesmo prédio, e seguir as instruções dos funcionários. Logo Jorge encontrou outros calouros de seu curso, tanto do período diurno quanto do noturno, além de ingressos em outros. Passou, com dona Nádia, pelo processo burocrático necessário, apresentando documentos, recebendo outros... Falou com alguns alunos responsáveis pela produção das carteirinhas de estudante, cedeu a eles o material necessário... e também comprou os convites para as festas da chamada “Semana do Bixo”, a qual correspondia à primeira semana de aula – ainda que tal tipo de coisa não o entusiasmasse. Teria tempo, depois, para se decidir se iria ou não.

         Um de seus veteranos mostrou-lhe a sala em que estudaria: a classe do primeiro ano de História era a única de seu curso situada no térreo da construção, as outras três localizadas todas no andar superior. A porta era a primeira de um corredor que, estendendo-se diante de um pátio interno onde existia uma rampa para deficientes, abrigava também as quatro salas de Relações Internacionais. Junto a cada entrada via-se um pequeno dispositivo de álcool em gel: resquício da epidemia de gripe suína que tanto amedrontara o mundo no ano anterior. Dentro da classe, as cadeiras azuis – cor do curso – pareciam bastante confortáveis e, além de lousa, dispunha de recursos como computador com retroprojetor e TV de plasma, ainda que uma veterana garantisse nunca ter visto nenhuma delas ligada. Descontraído, Jorge participou de brincadeiras, conheceu gente e, num dado momento, sentiu vontade de ir ao banheiro. A direção de um dos lavatórios masculinos lhe foi logo indicada, o garoto comprovando, diante da placa indicando ser mesmo aquele o local, não se tratar de um trote.

         Tranqüilo, o futuro historiador adentrou a sala vazia e dirigiu-se até um dos cubículos dotados de vaso sanitário, já que não apreciava mictórios, baixando o zíper da calça e assim aliviando a bexiga do café com leite bebido mais cedo aquela manhã. Levou alguns instantes na tarefa, até fechar novamente a calça e voltar-se para as pias com o intuito de limpar as mãos... quando viu algo que o empalideceu.

         De repente Jorge não sabia mais se o que enxergava era realidade ou não, perguntando-se se, de tanta ansiedade, não acabava sonhando com a faculdade na noite antes da matrícula e ainda estivesse por acordar...

Havia mais alguém ali dentro, uma pessoa que não causara ruído algum, nem o de um mísero passo, ao entrar. Pior: era uma garota. Uma mulher num banheiro masculino. Se a situação já soava estranha demais, dever-se-ia então acrescentar o fato de a jovem vestir hábito branco e preto, trajes de freira. Que aquilo significaria? Seria algum trote por parte de seus veteranos, algo do tipo “pegadinha” ou coisa parecida? Imaginando ser isso, o garoto, até então sem saber como reagir, apenas riu, ainda que um intenso frio na espinha o imobilizasse. Na verdade, todo o ar do banheiro aparentemente ficara mais pesado, densamente ameaçador. E a suposta religiosa, com alguns fios de cabelo loiro lhe caindo sobre a testa e tendo um crucifixo dourado pendurado junto ao peito, falou sem mais nem menos, entre risadinhas, num tom de voz demasiado infantil:

- Você já deveria ter invocado seu servo, garotão. Espero que esteja se preparando...

Jorge arregalou os olhos, o mal-estar gerado pela moça e a sinistra aura que parecia dela provir chegando ao ápice, enquanto balbuciava sem entender:

- Q-quê?

Depois disso, não mais pôde manter a cabeça erguida. A sensação ruim converteu-se em ânsia, enjôo, o mundo ao redor de si girando enquanto acreditava que acabaria botando para fora o que comera horas atrás na cidade natal. Trôpego, deu dois ou três passos para trás, olhos no chão cujo piso parecia se fragmentar, se misturar... Conseguiu firmar o corpo, porém, evitando uma queda, mas ainda acreditava firmemente que vomitaria. Então veio um vento gélido, uma lufada súbita que tomou todo o banheiro, enrijecendo seus poros... A tontura foi, de forma misteriosa, passando... e quando levantou de novo a face, não viu mais ninguém. A freirinha sumira como se sequer houvesse um dia existido, diante do calouro havendo apenas a fileira de pias e os espelhos que refletiam seu semblante incrédulo, aos poucos voltando a ganhar cor. Esfregou os olhos, usando-os em seguida para vasculhar pela visão cada canto do recinto... não encontrando nem vestígio da pitoresca personagem. Já começava a questionar se o guache dos veteranos possuía algum tipo de alucinógeno ou droga similar, quando ouviu uma voz familiar chamá-lo, quase o fazendo novamente desmaiar de susto:

- Filho!

Era sua mãe. Ainda um pouco abalado pela soturna aparição, e lembrando-se agora das histórias macabras que seus amigos haviam lhe contado semanas antes, Jorge dirigiu-se para fora do banheiro, encontrando dona Nádia, de pé, impaciente no corredor. Ela disse ao rapaz:

- Por que demorou tanto? Vamos, tem um moço do terceiro ano de História que chamou você para conhecer a república dele. Quem sabe já não consegue um lugar para ficar? Venha, venha.

Quase puxado pela mulher, o “bixo” não teve muita opção senão acompanhá-la e tentar esquecer a aparente alucinação que sofrera no banheiro. Não descartava ainda, porém, a possibilidade de se tratar de uma brincadeira de mau gosto. De uma forma ou de outra, acreditava que cedo ou tarde descobriria mais a respeito...

O rapaz ao qual a mãe de Jorge se referia era um sujeito um tanto corpulento, de cabelo castanho curto e liso, alguns fios ainda assim lhe caindo sobre as sobrancelhas e chegando a tampar parte de seus olhos às vezes, ao que sempre levava uma das mãos à testa para removê-los. Usando uma camiseta do time do São Paulo, bermuda jeans e chinelos de dedo, o estilo do estudante condizia com o apelido que possuía: “Baloo”, o popular urso do desenho “Mogli: O menino lobo”. Era inclusive difícil não rir da figura do veterano quando este apresentava sua alcunha, sendo que todos o chamavam por ela, seu nome real compondo verdadeira incógnita.

- Então você vai me mostrar sua república? – indagou Jorge após as devidas preliminares de diálogo.

- Isso mesmo, bixo! – riu, alegre, o aluno do terceiro ano de História. – Aliás, precisamos achar um apelido para você, hem!

- É mesmo necessário? – o calouro inquiriu um pouco desconcertado.

- Claro que é, bixão! E você sabe o que dizem, né... Quase sempre o apelido de bixo acompanha a pessoa pelo resto dos quatro anos de curso... Isso se não persistir até depois que ela se formar!

Sim... No caso de Baloo, ao menos, seria difícil desvinculá-lo do divertido pseudônimo...

- Você mora longe, rapaz? – desejou saber dona Nádia. – Precisaremos andar muito até sua república?

- Bem, na verdade sim, um pouco... Eu e meus colegas moramos no centro. A maior parte dos estudantes continua a viver lá, pois este lado da cidade ainda está se desenvolvendo com o novo campus e levará algum tempo até que disponibilize todos os serviços que há por lá. Preferimos ter mais comodidade no dia-a-dia e pegar ônibus para vir pra cá, nada muito dispendioso ou complicado, principalmente se o bixo aqui fizer a carteirinha para pagar meia.

- Eu posso levar vocês até a casa do moço, só ele me guiar pela cidade – propôs o senhor Costa, aproximando-se.

- Fechou então! – sorriu Baloo.

- Pode ser, mãe? – Jorge quis confirmar, voltando-se para Nádia.

- Sem problemas, muito gentil de você, Bambu! – a senhora agradeceu feliz.

- Baloo, hehe! – o veterano corrigiu-a sem cerimônia. – Vamos então!

* * * * *

O carro do senhor Costa acolheu bem seu novo ocupante. Assumindo o lugar antes preenchido por Jorge no assento da frente ao lado do motorista, Baloo mostrou-se um animado e atencioso guia de Franca, explicando aos outros três, nos mínimos detalhes, praticamente tudo que viam. O tour começou antes mesmo de entrarem no automóvel, já que o veterano, apontando para o outro lado da rua, indicou, quase em frente à posição em que haviam estacionado o veículo, uma lanchonete chamada “Rainha”, cujos salgados, segundo ele, eram os melhores que já provara. Ficava a dica de um bom local para se comer algo nos intervalos das aulas, ou quando algum professor faltasse e Jorge quisesse ficar batendo papo com seus colegas. Esse segundo quadro, inclusive, era bem comum, de acordo com Baloo.

O motor do transporte foi ligado e eles então passaram a rodar as ruas francanas. As primeiras informações cedidas pelo guia tratavam da região em torno do campus. A Unesp encontrava-se bem próxima do Hospital do Câncer e do Coração, do Shopping do Calçado e – algo um tanto sombrio – de um cemitério, chamado Santo Agostinho. Descendo pela Avenida Getúlio Vargas, que na ida o senhor Costa utilizara para chegar à faculdade, Baloo indicou alguns cruzamentos, e acabaram saindo de frente para uma bonita igreja junto a uma praça, o templo possuindo duas torres simétricas e estendendo-se para os lados no que parecia se tratar de um convento, seminário ou outro lugar do tipo. Tratava-se da paróquia Nossa Senhora Aparecida, popular “Capelinha”. Desceram então para um largo que, possuindo perto de si algumas casas nobres, remetia a um aspecto de campo aberto, apesar das construções ali presentes. Dentre elas, o veterano frisou a rodoviária do município, local que Jorge deveria guardar na memória devido às suas vindouras viagens entre a terra natal e Franca. Quase de frente, o novo prédio da Câmara Municipal, em vias de ser concluído, exibia seus contornos modernos. Perto dali, sobre uma colina, enxergava-se os altos refletores de um estádio de futebol, de nome “Dr. Lancha Filho”.

Tomaram outra rua. A dois quarteirões da rodoviária, a via desembocava na Avenida Alonso y Alonso, algum tempo antes também tomada pelo motorista. Viram então um complexo universitário que dominava boa parte da área, o vulgo “Brejo”: a Faculdade de Direito de Franca e a Uni-FACEF, o “Centro Universitário de Franca”, ambas municipais. Além dessas duas e da Unesp, existia uma terceira universidade na urbe: a Unifran, particular – situada, assim como a pública, quase em seus limites. Avançando pela avenida e seu córrego, Baloo explicou que ela e uma outra via similar e paralela, a “Avenida Dr. Hélio Palermo”, consistiam duas das principais artérias da cidade, contornando sua colina central e encontrando-se mais à frente, no posto do Galo Branco visto quando haviam chegado a Franca. Seguiram pela Alonso y Alonso por vários quarteirões, um restaurante de fast-food árabe e um bonito posto de gasolina todo em madeira chamando a atenção de Jorge, quando de repente o automóvel tomou acentuado declive, todos em seu interior sentindo um frio na barriga... E, ao olhar para sua esquerda, o calouro teve uma surpresa...

O córrego que corria pelo meio do caminho se alargava, as duas pistas se afastando uma da outra e descendo pela elevação, enquanto, no meio desta, as águas canalizadas se precipitavam numa atraente e até alta cachoeira. A queda d’água gerava efeito onírico, batendo nas pedras em sua base e gerando pequeno lago que, apesar do aspecto refrescante, não permitia se esquecer que aquilo se tratava de esgoto a céu aberto. A paisagem, ao menos, era algo diferente e inspirador em meio à quase sempre monótona aparência urbana. Seria interessante morar numa casa ou apartamento possuindo vista para aquele local...

Nisso, o carro, após uma indicação de Baloo, virou à esquerda, logo à frente, num cruzamento, contornando através de uma ponte a área diante da cachoeira e em seguida tomando a segunda pista da avenida, no sentido contrário. Começaram a subir pela elevação, quando o veterano apontou para um prédio de três andares situado na esquina seguinte, pintado em amarelo e possuindo janelas marrons. Composto de apartamentos, possuía uma kitnet em seu topo, seu tamanho menor contrastando com o resto da estrutura.

- Minha república fica ali naquele predinho! – revelou o guia.

Jorge sorriu. Seu desejo fora realizado! Ao menos poderia apreciar a vista da queda d’água pelo tempo em que permanecesse ali...

O senhor Costa manobrou pelas redondezas, sendo obrigado a dar uma volta em torno do quarteirão, e então estacionou diante da porta do edifício, situada acima de uma escada de poucos degraus e dotada de tranca eletrônica. A placa com o nome do local tinha várias letras faltando, Jorge conseguindo determinar com clareza apenas um “Renata”. Baloo adiantou-se, retirou do bolso um chaveiro do qual pendia o escudo do São Paulo e abriu caminho tranqüilamente. Depararam-se a seguir com mais uma escada, agora interna, um banco coberto de correspondências, e as primeiras portas de apartamentos, todas numeradas, junto a um outro bloco de degraus que levava aos pisos superiores.

- Vamos subir! – o veterano apontou para cima. – Minha república fica no seis!

Eles venceram as escadas e, já no andar seguinte, depararam-se com a entrada da dita morada. O número seis metálico pendurado à porta encontrava-se um pouco enferrujado, tendo abaixo de si um adesivo com o símbolo da Unesp. Baloo usou outra chave e abriu-a, apresentando aos recém-chegados a sala do apartamento.

- Sejam bem-vindos à República Kamelot! – exclamou rindo.

O cômodo encontrava-se relativamente organizado, com móveis e chão limpos – algo difícil de esperar de uma república masculina. Talvez isso se desse devido a ainda estarem de férias. O ambiente possuía um par de sofás, mesinha de vidro, uma estante com TV e DVD... Vida confortável levavam ali, afinal de contas. Mas algo em especial havia despertado a curiosidade do calouro:

- Kamelot? Referência ao Rei Arthur, ou à banda?

- Ambos! – esclareceu o veterano.

- Também sou fã da banda, hehe!

Mostrou-lhes então o resto do apartamento. Era constituído pela sala, dois quartos, uma suíte com banheiro anexo – pertencente a Baloo – e um outro banheiro separado, no corredor. A cozinha era ampla, os moradores ali tendo inclusive aproveitado parte do espaço para nela inserir uma mesa de jantar. E, por fim, uma área de serviço com varal e tanque, ainda que apertada, servia bem às necessidades domésticas. Tudo muito arrumado, impressionando particularmente dona Nádia. Ela, em dado momento, perguntou ao inquilino do lugar:

- Vocês moram em quantos aqui?

- Eu e um rapaz do segundo ano de Direito, o Marcos. Um dos quartos, o menor, está vago. Queremos justamente encontrar alguém sossegado para preenchê-lo, e de quebra nos ajudar com as contas e a limpeza. Nada muito pesado: apenas os percalços básicos de se viver longe dos pais.

- Espero me adequar aos pré-requisitos – afirmou Jorge. – Mas acho que sou sossegado... Acho...

- Relaxa, bixão! – riu o veterano, esfregando uma das mãos sobre o cabelo do calouro. – Isso a gente vai vendo com o tempo!

Voltando-se para a mulher e o motorista idoso, o aluno do terceiro ano acrescentou:

- Querem subir até o centro para almoçar? Já está na hora.

- Oh, pode ser! – os olhos da mãe brilharam. – Você conhece algum bom restaurante?

- Alguns, e baratos. Venham, eu os guiarei até lá também.

Todos assentiram e, contentes, acompanharam Baloo para fora da residência. Jorge, por sua vez, só via sua empolgação aumentar. Tudo estava dando muito, muito certo! Praticamente já possuía teto em Franca, tendo apenas de contribuir com parte do valor do aluguel e demais despesas – algo que sairia bem mais leve do que arcar com tudo sozinho. Só mesmo um bom almoço, agora, para complementar aquele dia tão realizador.

Algo, no entanto, continuava a incomodá-lo, e não podia negar. A aparição da freira misteriosa no banheiro do campus. Tão repentina, sorrateira, soturna... Ainda esboçava mil teorias a respeito, das explicações mais simples e bobas, até as que passavam pelo sobrenatural... E, com o estômago roncando enquanto descia as escadas até o térreo, decidiu que não seria benéfico continuar a pensar naquilo. Ao menos não por enquanto...

* * * * *

Enquanto o automóvel subia por mais uma avenida, a “Champagnat”, Jorge se deu conta de que o centro da cidade realmente estava localizado numa colina. As construções de arquitetura mais antiga tornaram-se predominantes, entre as quais um amplo e bonito colégio com o mesmo nome da via em que se situava. Viraram numa rua, o “bixo” tendo o vislumbre de um muro contínuo que Baloo explicou cercar um outro cemitério. O campus antigo da Unesp, por sinal, encontrava-se nas redondezas, apesar de não terem passado em frente a ele... Parecia sina a universidade possuir sempre próximo a si um terreno em que descansavam os mortos. Assustador, no mínimo.

Continuaram em frente, e logo a imponente catedral desenhou-se diante de seus olhos, agora bem mais de perto. Seus contornos alvo-azulados combinavam com as cores do manto de Nossa Senhora da Conceição – uma imagem da mesma, em grande tamanho, estando cravada na fachada pouco abaixo da torre solitária. O templo parecia bem antigo e devia ter passado por diversas restaurações para conservar seu aspecto. Recém-restaurada, conforme contara o veterano que os guiava, era a praça existente diante da igreja, também dedicada à santa. Ampla, ostentava abundantes árvores e uma série de encantos. Além da estátua branca do Cristo de braços abertos na direção da catedral, havia mais adiante uma espécie de palco para apresentações ao ar livre, um relógio de sol e – mais marcante – uma fonte azulada, adornada com esculturas em estilo greco-romano e projetando ao redor de si intensos jatos d’água: alívio dos dias quentes, ainda que aquele não fosse bem o caso. Em torno do largo reuniam-se algumas das principais lojas de Franca – filiais de grandes franquias – bancos, farmácias, e alguns locais para comer, de salgaterias a restaurantes. À esquerda e à direita da praça, tomando a igreja como referencial, estendiam-se calçadões que abrigavam mais estabelecimentos comerciais, principalmente bazares e sorveterias. O calçadão da esquerda, descendo a colina, levava ao terminal de ônibus de onde partiam os circulares que trafegavam dentro de Franca. O da direita conduzia à conhecida “Praça do Itaú”, onde se aglomeravam barracas de ambulantes.

O que mais chamou a atenção de Jorge foi a profusão de estabelecimentos que supostamente pertenciam a um tal “Luca”: “Suco do Luca”, “Sapataria do Luca”, “Cachorro-Quente do Luca”, “Luca Lanches”... Ao indagar sobre isso a Baloo, o calouro obteve a seguinte réplica:

- Ah, “Luca” é o apelido de Lucas Cândido, um empresário muito bem-sucedido aqui de Franca. Está expandindo os negócios dele cada vez mais, gerando opções à população e ganhando rios de dinheiro. Um dia quero ser que nem ele!

Jorge sorriu, ao mesmo tempo em que o senhor Costa encontrava uma vaga para estacionar e, logo depois, passavam a se dirigir calmamente até um restaurante próximo. Dona Nádia se impressionou com os preços: o prato-feito era bem barato e as marmitas igualmente acessíveis a um bolso leve. O custo de vida em Franca era baixo, por isso estudantes não encontrando ali muitas dificuldades em se manter. Sentando-se junto a uma mesa, começaram a almoçar de forma descontraída, Baloo contando casos engraçados a respeito de sua vida francana e até sobre os anos anteriores em sua cidade natal, Barretos. O calouro achava tudo muito engraçado, contendo-se para não gargalhar de boca cheia. Apesar do clima leve, entretanto, o encontro inexplicável de horas atrás, no banheiro, seguia a atormentá-lo. Com o garfo em sua mão direita, brincava com o macarrão no prato, alongando seus fios para lá e para cá, numa vã tentativa de se distrair. Até que, aproveitando um momento de silêncio na mesa, somou coragem e inquiriu ao veterano:

- Baloo... Que tipo de trotes vocês costumam fazer por aqui?

- Ah, no geral, apenas pintar com guache mesmo, aquilo que você viu... Às vezes também botamos os bixos para fazer pedágio, outras brincadeiras leves. Algumas repúblicas costumam pegar pesado, disso já ouvi falar. Mas não se preocupe. Nós, “Cavaleiros da Távola Redonda”, teremos o máximo respeito para com nosso novo ingresso, “Sir George”.

Baloo pareceu bastante sincero em suas palavras, apesar do tom brincalhão a si característico. Ainda assim, Jorge não pôde se acalmar. Como explicar a freirinha então, com seu papo esquisito e jeito de psicopata? Tentou insistir:

- Nem brincadeiras com moças vestindo hábito... ou simulações de convento?

Dona Nádia arregalou os olhos, o senhor Costa não demonstrando reação. Quanto ao veterano, encarou o calouro durante alguns segundos, sem entender, para então desatar a rir de modo debochado. Quando conseguiu se conter, instantes depois, respondeu a Jorge:

- Não sei que filmes de besteirol norte-americano você andou vendo, bixão, mas não, nós não fazemos nada disso. Em sua posição, eu só ficaria preocupado com esse cabelo comprido. Esteja alerta: vai ter muita gente na faculdade querendo raspá-lo!

A preocupação com seus estimados fios capilares acabou tomando o lugar dos pensamentos na freira, e ao menos temporariamente o jovem se tranqüilizou. Entre risadas e mais casos inusitados, o quarteto terminou de almoçar.

* * * * *

Cerca de uma hora depois, Jorge e seus acompanhantes preparavam-se para deixar Franca. Dona Nádia quisera antes passar em algumas lojas para comprar sapatos e roupas, mais baratos ali do que em Santa Cecília do Oeste, porém seu impaciente filho e, por incrível que pareça, até o passivo senhor Costa, exerceram pressão para irem embora logo. O passeio os agradara o suficiente, porém, e a matrícula estava feita. Para ser melhor, só mesmo fazendo tempo bom – como a mãe do calouro fez questão de salientar.

- Foi um prazer conhecê-los! – disse Baloo, inclinado sobre o carro com um dos braços apoiados do lado de fora. – Agora é só você vir pra cá o quanto antes, bixão! Kamelot estará de portas abertas para um novo cavaleiro. E nada de ficar em casa na Semana do Bixo, hem! Nem que você não queira ir às festas, é importante pela integração com o pessoal!

- Certo – concordou Jorge, feliz. – Logo nos veremos de novo, então.

- Nem sei o quanto lhe agradecer pelo que está cedendo ao meu filho! – dona Nádia, encantada, falou ao veterano. – Muito obrigada, do fundo do meu coração.

- Ora, sem problemas. Na Unesp somos todos uma família. Bem, melhor se apressarem, pois logo vem chuva e não é bom dirigir numa rodovia quando cai água. Até breve! Estarei aguardando seu regresso, Sir George!

- Será mais rápido do que imagina, “King Baloo”! – brincou o “bixo”.

- Tchau, Bilu! – despediu-se a mãe, errando mais uma vez o nome do veterano.

Este se limitou a rir gostosamente, de pé na calçada, enquanto o veículo se afastava. Prédios, árvores, ruas, avenidas e, mais notadamente, a torre da catedral, foram ficando para trás. Com as primeiras gotas de chuva batendo no vidro de sua janela e por ele escorrendo, Jorge deu uma última olhada para a urbe que se distanciava, imersa em cinza, e concluiu que aquele cenário parecia ocultar de si incontáveis aventuras; as quais, aquele dia, deixara que ele espiasse apenas de soslaio, ainda por vir o momento de vivê-las em plenitude...

Momento, todavia, cada vez mais próximo.


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