Como eu disse, Celéstica havia me avisado que agora as visitas seriam diárias na casa da Cheffia, e eu não teria direito às minhas reclamações. Porém, as visitas agora seriam durante a noite, e isso foi um dos motivos por que eu fiquei feliz. A noite meu estado trifásio começa, então minhas forças estariam melhores. O único problema é que os demônios do meu emocional estariam adormecidos, e eles me dariam mais força pra lutar. Pois bem. Chegamos na bendita mansão.

A mansão estava completamente trancada. Parecia vazia. Pensei por um momento "que ótimo, vamos voltar!", mas assim que Celéstica me conduziu até o jardim dos fundos, me surpreendi. Havia mais de cem pessoas. Todas anjos. Alguns eram claros e com uma beleza extraordinária, mas outros estavam no trifásio, como eu. Pensei que o treinamento havia virado uma festa.

Infelizmente eu estava errada. Todos as pessoas que se encontravam lá, se pareciam muito comigo. Como eu disse, eram anjos.

_ Celéstica, porque todas essas pessoas parecem estar sobre o efeito de trifásio? Porque estamos aqui? Porque temos que vir pra cá? Porque a mansão está trancada? Porque hoje Mag não se encontra presente? Porque todas essas pessoas ao menos estão aqui? Qual o objetivo delas estarem aqui? Isso é uma festa? Ainda vai ter treinamento? Que tipo de treinamento é este? Aonde está Dark? Porque o dia está claro? Porque as pessoas sobre efeito de trifásio ainda não chegaram na minha fase? Elas estão na unofásio?

_ Emil, calma. Essas pessoas são anjos malignos e estamos aqui porque vamos treinar com eles... A mansão está trancada porque Mag não a quer expor. A Cheffia viajou para buscar o resto dos outros anjos que não podem vir sozinhos. Isso não é uma festa e ainda vai ter treinamento, esse treinamento só quem faz que pode entender. Dark está terminando de se arrumar para começarmos o treinamento e o dia está claro porque enquanto Mag não está presente, a luz negra de Dark não é o bastante para deixar o dia escuro. As pessoas sobre o efeito de trifásio são anjos malignos "adolescentes". A fase deles ainda não é tão profunda. Você convive com isso desde os nove anos. Pra você é fácil - ela fez uma pausa para respirar -. Posso te fazer uma pergunta? O que você e Dark tanto fizeram ontem? Vocês dois sumiram do nada! Procurei vocês a tarde inteira e nem sinal. Aliás, vi você saindo pé ante pé do quarto dele.. O que aconteceu, Emil?

_ Celéstica, eu... não tenho como te explicar muito bem, entende? Você me conhece, sabe que faço tudo errado. Eu estava olhando as portas e decidi abrir a única que estava aberta; só que eu não sabia que Dark estava lá dentro.

_ O que você fez com ele?

_ Com ele? Nada! Ele foi quem acabou com a minha vida! Desgraçado! Não consigo nem fechar os olhos sem me lembrar do que aconteceu.

_ Do jeito que você está falando, dá até para imaginar que foi ele quem te forçou a fazer qualquer coisa. Se você já foge de casa pra poder curtir a vida, não duvido de que possa ter entrado no quarto do meu noivo e tê-lo forçado a se deitar com você.

_ Transamos. Mas não fui eu que o forcei.

_ Você sempre se supera com suas piadas... Ele sabe muito bem que todas a anjas devem manter sua virgindade até os vinte anos, e que as consequências para a perda da mesma são irreparáveis. Isso é uma regra. Foi imposta pela nossa Ordem! E você ainda quer que eu acredite que ele fez isso? Você é uma bastarda, mesmo.

_ Acho melhor você calar essa sua boca! Você é, realmente, uma prostituta. Seu noivo é um estuprador, você o trai com o pai dele, e ainda fala que eu sou a culpada da infidelidade de seu parceiro. Seu noivinho já beijou cada parte do seu corpo, Celéstica? Seus seios? Sua intimidade? Ele já te olhou com a maior cara de desejo do mundo, e te segurou com tanta força na cama que foi capaz de causar hematomas nos seus pulsos? Aliás, seu noivo já te tratou com tal impulso sexual que você teve de cantar no ouvido dele para que ele se acalmasse e te deixasse descansar? Eu acho que não. Porque enquanto ele estava descontando em mim todas as coisas que você nunca o deixou fazer, você o estava traindo com o seu próprio sogro. Você, Celéstica, é uma prostituta.

_ Saumensch! – ela sussurrou em alemão - Você sabe muito bem que o filho dos reis dos anjos malignos não quebraria uma regra que a Ordem impôs. Está mentindo pra mim! Aliás, você fez com que meu namorado me traísse. E você vai me explicar tudo isso direitinho, e digo mais: vai retirar tudo isso que disse sobre eu e a Cheffia. Você também não sabe se foi ele quem começou, ou não.

_ Não.. – falei quase tremendo - Não sei o motivo de seu noivo ter feito aquilo. Eu só queria dormir. Não te devo explicação alguma. Você é quem deve explicações a ele.

_ A partir do momento em que você cai na cama com o meu noivo e o meu prometido, com riscos de ficar grávida, eu tenho todos os motivos para entrar e sair da sua vida, no momento que eu quero, porque você mexeu com o que é meu, e o que é meu ninguém tira de mim, a não ser que eu mande tirar.

_ E porque ele foi violentar logo a mim, sendo que ele tinha uma mulher que simplesmente é louca por ele aos pés dele? Porque ele me escolheu? Qual é o seu problema, Celéstica? A culpa é minha de você ser, talvez, um projeto de vadia, que fica traindo o seu noivo com o seu próprio sogro? Não sei que informações quer, e seja como for, nunca as terá. Você acha mesmo que o que está acontecendo com você é pior do que aconteceu comigo? VOCÊ É UMA EGOÍSTA! VOCÊ É IGUAL A ELE!

Celéstica ousou em me dar um tapa na cara.

_ Como você ousa a falar assim de mim e do meu homem?

_ Eu não acho que ele pense que pertence só a você - e eu a deixei parada na frente do portão da casa.

Dark me encontrou no meio do caminho. Não consegui olhar na cara dele, era constrangedor e doloroso demais. Percebi que ele hesitou antes de fazer algo comigo - como me abraçar ou me beijar. Os olhos vermelhos, carregados de ódio e desejo cruzaram-se com os meus, escuros e ofendidos. Estremeci.

Dei-me o luxo de tirar alguns minutos para um devaneio; aquele arrepio me deu a lembrança de que eu conhecia aqueles olhos de um passado não muito distante. De um lugar onde eu ainda tinha esperanças de ser um humano normal. A marca em meu braço me dizia que eu não nasci daquele jeito, e também me dizia que meu abusador em potencial poderia ser a chave para as perguntas que não haviam sido respondidas há muito tempo.

O moreno de olhos vermelhos me guiou até o local onde aquela multidão de anjos uniam as mãos e diziam coisas esquistas, e depois eram teletransportados, voando como Peter Pan em busca da Terra do Nunca, para algum lugar que eu não conhecia. Alguns se vestiam de maneira sofisticada; pareciam verdadeiros forasteiros. Passei por alguns grupos de seres que se ajuntavam em quartetos, trios e duplas. Fiquei aquém em escolher alguém por conta própria, o que nem precisei fazer, pois uma mulher, com um sorriso nos lábios e pernas saltitantes veio em minha direção, apresentando-se como Stormie. Tempestade. Ela, toda falante, logo me contou que sua irmã também era uma anja maligna, e que a mesma estava ali do lado, treinando com outra pessoa. Seu nome era Alexandra. Lexi.

Quando acabamos de treinar, Dark veio diretamente a mim e fez questão de me apresentar a todo e qualquer ser vivente existente naquele lugar. Tratava-me como se me conhecesse há anos. Dizia às pessoas que eu finalmente estava de volta; e o pior de tudo era que todos me tratavam como se estivessem tomados por uma imensa saudade - e me abraçavam como se fossem meus amigos mais íntimos. Andar ao lado do monstro que me tirou a dignidade era a única maneira de eu não ser morta durante os treinamentos ou em qualquer outra situação. Aceitar e submeter-me à sensação de que eu era sua parceira, seja lá de cama, de treinamento, de família ou de qualquer outra coisa, era o único modo de manter meu coração vivo - ou quase morto.

Eu recebi os olhares de todos os que estavam a minha volta - menos os de Lexi e Stormie, as irmãs endiabradas que conheci hoje cedo. As mesmas moravam sozinhas há 15 anos, e não viam os pais desde então. Chamaram-me para dormir na casa delas, e como não avistei Celéstica e, sinceramente, não estava com a menor vontade de procurá-la, decidi passar a noite na casa humilde e pacata de minhas novas colegas.

Como o chefe não se apresentava em casa, os anjos foram encontrar recrutas e explicá-los os próximos passos de sua nova vida em cada canto do Globo. Dark os dividiu pelas províncias, e mandou que voassem até que encontrassem candidatos em potencial. Fiquei imaginando o que um humano desprovido de poderes como nós imaginaria ao ver uma porção de seres do tamanho de pessoas comum voando; o barulho de todas as asas juntas era ensurdecedor.

Ouvi de longe, através do barulho do bater das asas de meus companheiros, que Lexi e Stormie seriam separadas desta vez. Nessa missão de resgate, Lexi pertenceria à Alemanha, e Stormie ao Canadá. Eu sabia que não demorariam muito, mas eu esperava que voltassem o mais rápido possível.

Fiquei preocupada quando vi que todos os anjos haviam recebido as coordenadas de sua trajetória, menos eu.

Respirei fundo.

Fui a única pessoa que sobrou naquele jardim. Dark percorreu os olhos por todo o perímetro e se certificou de que não havia mais ninguém por lá. Assim que me viu sozinha, como uma donzela em perigo, aproveitou o útil e o agradável: encostou-me na cerca, segurou meus os pulsos, olhou em meus olhos e sorriu como um maníaco psicopata.

_ Me. Solta. - eu me desvencilhei de seus braços e virei as costas para o brutamontes que me olhava de cima a baixo a cada um segundo.

Ele não ouviu. Me encurralou em uma parede e colocou o braço contra o meu pescoço, forçando-o contra a parede, me fazendo perder a respiração. Ele nem ao menos me deixou gritar - a outra mão tapou a minha boca. Pensei que aconteceria tudo de novo. Mas ao contrário, ele apenas sussurrou alguma coisa em meu ouvido.

_ Se contar pra alguém, pequena Emil - ele deu um sorriso assustador quando citou meu nome -, você será morta. E pode tratar de pensar em todas as maneiras possíveis e impossíveis de se matar um anjo maligno, porque eu sou capaz de fazê-lo. Me entendeu bem? E se abrir a boca pra Celéstica, eu...

Eu o interrompi bem na hora, porque mordi a mão que tapava minha boca e lhe dei um chute na canela. Usei uma técnica de imobilização.

_ Ela já sabe - falei tímida, nervosa, não sabia por quanto tempo conseguiria segurá-lo. Como eu disse, foi por no mínimo três segundos.

Dessa vez ele não falou. Me jogou no chão e começou a fazer um ciclo - tapas, socos, pontapés. A cada soco e tapa que eu sentia, eu podia ouvir os demônios gritando dentro de mim, querendo que eu partisse para cima do homem que estava me espancando. A cada pontapé, os anjos se enfraqueciam. Meu emocional estava completamente machucado.

Dark conseguiu tirar um pedaço de uma das minhas asas. Não se preocupou. Apenas saiu dali e me deixou sangrando, com meus demônios enfraquecidos, morrendo, no chão daquele jardim. Os leões que Celéstica acariciou mais cedo estavam chegando perto de mim. Tentei reagir. Impossível. Dark era bem mais forte do que eu.

Fiquei sem reação por no mínimo sete horas. Dark não havia voltado para me buscar, e se voltasse, seria para satisfazer seus desejos sexuais. Quando eu pensava que iria morrer, vi dois anjos malignos sobrevoando o céu, e por minha sorte, eram Lexi e Stormie. Elas nem ao menos me viram. Bateram na porta, conversaram com o filho da Cheffia - que olhava para mim a cada segundo de novo - e assim que terminaram, viraram as costas. Dark fechou a porta antes que elas pedissem explicações.

Quando Alexandra se virou e me viu ali, estatelada no chão, toda machucada e com um pedaço de asa faltando, chorou, descontrolada. Tempestade se achegou ao meu lado e me colocou em seu colo. O último som que lembro de ter ouvido foi o de suas asas batendo, e a última sensação, a de estar levitando. O último olhar que avistei antes de apagar foi o de Lexi, que fitava a mansão com um desprezo imensurável.