Eu ainda estava calada pelos olhares que aquele moreno dos olhos vermelhos me direcionava. Não foi um pedido muito bom, eu confesso, mas eu necessitava sair dali. Nas poucas semanas que estive perto daqueles clãs, daqueles chefes de províncias, me senti em uma família de novo, por mais que a minha família tenha morrido há tempos, e agora, eu os tinha visto morrer, lentamente. Alguns, com membros corporais decepados, outros, enforcados, esfaqueados. Eu já tinha traumas de mais, e não precisava de mais nenhum.

Ele ainda me fitava com cautela, e esperava que eu renunciasse a pergunta, pedisse outra coisa. Mas eu não o fiz. Fiquei esperando, olhando pro nada, inalando a fumaça do cigarro que o moreno tragava, e entre tosses. Finalmente ele abriu a boca, olhou para mim e balbuciou algumas palavras.

_ Tem certeza que é isso que quer, Emil? Você é uma anja desde os cinco anos de idade, e... – ele tentava achar alguma desculpa para que eu continuasse naquele estado, mas eu o interrompi antes que ele continuasse com aquela tortura.

_ Tenho a máxima certeza. Preciso reconstruir a minha vida urgente. Por favor... – olhei para o chão e fiquei encarando aquela grama por um bom tempo. Rosallio não estava no jardim, por isso estávamos conversando ali mesmo.

_ Você terá o que quer. Espero que faça bom proveito – ele tentou esboçar um sorriso – e, é claro, Emil, que se contar da nossa existência, você voltará a ter asas e a sofrer transformações de novo. E obviamente, será obrigada a assassinar para quem você contou – ele deixou o semblante sério novamente e tirou outro cigarro de dentro do bolso da calça.

Ele se levantou calmamente, limpou os pés no tapete vermelho que dava a entrada para os corredores e encostou a cabeça na porta. Fitou o sangue no chão por um tempo, olhou para os corpos jogados nos corredores. Ele abriu uma das portas do corredor e logo pude ver para onde ele iria – para a sala do trono.

Assim como ele, desci as escadas rápido. Ao chegar realmente na sala, eu percebi que ele estava temeroso. Mas não era do que aconteceria – ele possuía milhares de anjos que poderiam ter visões assim como eu tinha; o real medo dele era de não saber usar a coroa prometida a ele. Seu pai saberia exatamente como usá-la. Saberia cada segredo que aquela coroa aprisionava, cada choque de poder, o jeito certo de usá-la para espantar os inimigos do bem. E diferente da maioria dos produtos, aquela coroa não vinha com manual de instrução. Ela simplesmente foi feita com os poderes dos anjos malignos, em cada treinamento, até se tornar grande e forte daquele jeito.

_ O que acontecerá quando eu a colocar, Emil? – ele me perguntou ainda vendo a coroa, preocupado constantemente com a minha resposta.

_ Só a colocando para saber, Dark. Eu não espero muito dessa coroa, já que o verdadeiro dono não é você – abri um sorriso de orelha a orelha. – O verdadeiro dono dela é Mag, Dark. Você não precisa usá-la se quiser. Se transforme comigo... liberte todos – minha voz já empolgada ecoou na sala vazia.

_ Não posso abandonar o mundo dos anjos por você. Existem coisas na vida no qual não devemos abrir mão. Vou lutar pelo meu pai.

_ Lutar pelo seu pai? – eu esbravejei – Você o mandou matar. Convocou todas as províncias, montou um clã, armou a morte do seu pai friamente, arranjou chihad dos piores lugares desse mundo... e ainda fala que quer lutar pela honra e dignidade de seu pai? – cuspi no chão – Você é um tremendo hipócrita Dark. A única honra que seu pai tinha você roubou. O humilhou na frente de todos. Não lute pelo seu pai. Seu pai merece que um anjo de verdade lute por ele, não o filho babaca que ele não teve culpa de ter – me virei em direção a porta da sala e subi as escadas. Não demorei dessa vez.

Quando cheguei no corredor, sentei no chão e fiquei observando cada uma daquelas pessoas. Em pensar que Susaj e Gitié Maham poderiam ter uma história linda de mãe e filha. Tão bonitas. Em pensar que Pedro amava Clea, mas a traiu por ser um anjo. Todas essas províncias sem chefes. Todos aqueles anjos sem rumo por causa da imprudência de um anjo de cabelos azuis que desejava a liberdade mais do que tudo naquele mundo.

Bê estava branca e gélida e tentava se levantar. Ela olhou para mim com um olhar piedoso, pedindo para que eu a ajudasse, mas continuei imóvel. Me lembrei de quando isso havia acontecido comigo, e me lembrei ninguém me ajudou na hora. Tive que me levantar sozinha, me superar sozinha. Eu tive que passar por tudo sozinha, e não me interessa o quanto doeu, eu espero que ela veja agora quem o meio-irmão dela é.

Abri umas das gavetas da estante da sala de jogos e vi que tinha um caderno muito parecido com o que eu achei debaixo do travesseiro no quarto do chefe. Peguei, guardei no bolso e saí da sala, e me deparei com Dark sentado no mesmo lugar de antes, com um cigarro na mão e com uma faca. Mas para quê aquela faca?

_ Pronta para a sua mudança, Emil? – ele levantou a faca e me mostrou. Ele apoiou a faca perto do meu braço.

_ Você precisa se transformar pela última vez. Vai ser seu último treinamento, e será comigo. Pela sua sorte eu aprendi como posso sugar os poderes dos outros anjos – ele sorriu – e isso me aparenta ser muito divertido. Você sentirá um pouco de dor como sempre, mas faz parte.

_ Para quê essa faca?

_ Vou ter que tirar o símbolo que você tem que mostra que você é um anjo. Depois, vou arrancar suas asas, e por fim, roubarei todos os seus dons, para que você possa tomar chihad e não morrer sufocada pelos seus anjos.

_ Estou com medo – eu olhei para a ponta da faca que parecia muito afiada. Dark sorriu e fez tudo o que falou de uma vez só.

Aonde antigamente estava a marca dos dentes de Celéstica, agora estava um corte muito grande de faca, que sangrava. Como era de se esperar, meu emocional começou a duelar e quando comecei a me transformar, na primeira chance que Dark teve, arrancou minhas asas em um só golpe. Aquilo doía, mas valeria a pena pela minha liberdade.

Quando ele sugou toda a minha energia e derramou chihad em minha boca, senti um ardor por todo o corpo, mas depois, uma leveza que me deixou extremamente bem. Dark me olhava com a boca entreaberta, e parecia surpreso.

_ Você com toda certeza ainda é mais bonita como humana... – e virou em direção ao seu quarto, de onde tirou um espelho e entregou em minhas mãos.

Eu estava muito diferente. Meu cabelo estava incrivelmente longo e muito liso. Era de um tom marrom escuro, quase que um preto. Meus olhos eram negros como ébano, e eu era branca, muito branca, quase translúcida. Eu possuía algumas sardas nas bochechas, que também eram levemente rosadas. Eu era muito bonita.

_ Quer ajuda? – olhei para o extenso corredor.

_ Com...? – Dark balbuciou de dentro de seu quarto.

_ Com os corpos ensanguentados na sala. Eu sei que ninguém verá isso, mas para mim, você deveria criar um santuário em homenagens aos chefes da província.

_ Não se preocupe com o que não é mais de sua conta, por favor. Apenas saia por esse portão e nunca mais volte – Dark me empurrou para o jardim e trancou as portas da mansão.

Eu não possuía mais asas. O dia estava claro e todas as minhas cicatrizes haviam sumido. E eu finalmente pude ver as pessoas de um jeito bom, diferente e extraordinário, que sempre quis ver.

Não andei muito até achar a casa amarela que pertencia a Lexi e a Stormie. Bati na porta, e dessa vez, quem me atendeu foi o Ray, com uma calça samba-canção e sem camiseta.

_ Emil? Como você está... – ele tentou me definir.

_ Diferente? – eu sorri sem medo.

Vi que Lexi estava deitada no sofá e se levantou rapidamente.

_ Com quem está faland – ela me viu e mudou de assunto – EMIL! VOCÊ ESTÁ TÃO... MUDADA! – ela veio correndo e me abraçou.

_ Eu sou humana de novo – eu estava chorando quando menos percebi. Eu realmente estava feliz?

_ E isso é possível? – Lexi me fitou com desdém.

_ Tudo é possível para uma anja maligna... - sorri.

Ou para um ex-anjo.