Verdade e Consequências escrita por Lara Boger


Capítulo 6
O Embarque


Notas iniciais do capítulo

Adam volta para Alameda dos Anjos com o pai, que tenta digerir a notícia em meio a pensamentos cruéis.



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Numa heróica tentativa de ter uma gratificação, o motorista do táxi não media esforços para deixar os passageiros em seu destino o mais rápido possível. Como se quisesse bater algum recorde, seus pés pareciam bem mais a vontade com o acelerador que com o freio, fazendo a viagem para o aeroporto ser algo digno de desenho animado, como a “Corrida Maluca”. No banco traseiro, Jin e Adam passavam pela experiência de se sentirem como pipoca estourando na panela.

- Ei, por favor. Não precisa correr, não temos pressa. – disse Jin para o homem ao volante. Este não respondeu em voz alta, mas olhou-os pelo retrovisor e meneou a cabeça para indicar que entendera.

Respirou aliviado por pelo menos um momento enquanto olhou de soslaio para Adam. Ele não demonstrava qualquer incômodo com a alta velocidade e a direção brusca daquele motorista. Também não parecia muito disposto a falar. Seu rosto pálido não era muito expressivo naquele momento mas seus olhos estavam concentrados no que acontecia a sua frente. O trânsito sempre fora algo capaz de distraí-lo e certamente o tráfego intenso de Nova York era um prato cheio para que o tempo passasse.

Jin queria dizer alguma coisa mas não sabia quais palavras usar. Ainda sob o calor da notícia, não se sentia capaz de medi-las e encontrar um tom adequado para usá-las com segurança: motivo pelo qual era reconhecido. Em meio ao trânsito e a cacofonia que distraiam seu filho naquele momento, tentava livrar sua aparência dos indícios de choque. Fosse como fosse, não achava que aquilo pudesse ajudar em alguma coisa.

Teve sucesso, e ao fim de quase vinte minutos de uma corrida infernal chegaram ao aeroporto. Enquanto pagava ao motorista, viu Adam sair apressado para pegar a sua mala.

- Deixa eu dar uma ajuda. – estendeu a mão para pegar a alça da mala.

- Não precisa.

- Tem certeza?

- Absoluta.

Ainda tinham mais um pouco de burocracia pra cuidar. Tinha de comprar uma passagem para Adam, afinal até quase uma hora atrás sequer podia imaginar que o levaria de volta. O telefonema de Baxter não dera qualquer pista quanto a razão daquele chamado. Sequer teve tempo de se prevenir ou planejar algo. Comprou a passagem para o próximo vôo que sairia em duas horas. Um tempo que de início pareceu uma eternidade, mas foi uma sensação passageira.

- Ainda temos duas horas até o embarque. Não quer comer alguma coisa?

- Se você quiser... eu não estou com fome.

- Bem, eu preciso de um café. Por que não vem comigo? Aproveita e passa numa livraria e arranja alguma coisa pra ler. Temos muito tempo até o nosso horário.

Não foi preciso muito mais do que isso pois Adam concordou. Leitura sempre fora um bom argumento para ele e sabia que a idéia tinha sido uma pequena luz embora não fosse visível qualquer expressão de ânimo em seu rosto. Ânimo talvez fosse a última coisa que Adam estivesse sentindo. Jin sabia, e a última coisa que iria fazer era condená-lo por isso.

Ainda fez uma tentativa de oferecer algo para comer, mas Adam novamente recusou. Restou a Jin então um copo duplo de café numa tentativa de engolir a notícia e as prováveis reações de choque que viriam junto com ela.

- Você parece cansado. – disse Adam quebrando o silêncio pesado que havia se instalado por ali.

- Impressão sua. Você sabe que não consigo dormir dentro de avião, e vir de carro pra cá é impossível. – referiu-se a longa distância entre Alameda dos Anjos e Nova York – Eu tentei vir o mais rápido possível. Seu treinador costuma usar palavras com muita freqüência então achei melhor não duvidar.

- Baxter sabe bem como exagerar e assustar as pessoas.

- Ele não me pareceu estar exagerando.

- De fato, não estava. Mas ele está acostumado a fazer as coisas parecerem piores do que são.

Jin ficou sem saber o que dizer. Parecia estar se negligenciando mesmo com a aparente consciência de seu diagnóstico. Sentiu a necessidade de ser mais claro, para que ele pudesse entender.

- Baxter não disse nada no telefone. Só pediu que eu viesse rápido porque só poderia falar pessoalmente. Ele foi muito categórico quando pediu pressa.

- Pelo jeito, foi. – Adam constatou como se tudo aquilo parecesse óbvio demais. – E como fez com o escritório? Imagino que ter vindo pra cá atrapalhou sua agenda.

Jin imaginou ter sentindo uma certa acidez no tom daquela pergunta, mas aquele não era o caso. Eram o cansaço e o nervosismo atrapalhando a percepção. Como sabia que era uma pergunta válida, optou pela resposta sincera e costumeira.

- Um pouco, nada que uma madrugada não possa acertar.

Adam mordeu os lábios, num gesto de autocensura, e do mesmo modo que seu pai dera uma resposta rotineira, um pensamento ainda mais rotineiro veio a sua mente. “Isso é minha culpa, de novo.”

- Como elas estão? – peguntou, referindo-se a mãe e a irmã.

- Estão bem, do mesmo jeito como você deixou. As coisas não mudaram nada, você sabe como é Alameda dos Anjos.

- Ah, sei. – fingiu concordar. Não que Alameda dos Anjos fosse um lugar monótono onde nada acontecia. Sabia que seu pai ainda não se acostumara com a tranqüilidade de uma pequena cidade litorânea. Ele ainda pensava em lugares como Washington, Nova York ou Los Angeles. Não que não gostasse de Alameda dos Anjos: simplesmente preferia ter mais movimento a sua volta. – E elas sabem que estou voltando com você?

- Não. – deu um sorrisinho que pareceu sem graça – Vai ser uma surpresa.

- Uma surpresa desagradável.

- Não esquente a cabeça com isso. Não vai adiantar nada.

Sabia que aquilo não era uma censura, mas sim um conselho. Um conselho realista mas que não mudou em nada qualquer um de seus pensamentos. Foi quando Jin se deu conta de que isto não iria ajudá-lo em nada. Quis lhe dizer alguma coisa mas no momento em que precisou das palavras elas simplesmente não vieram.

- Tem razão. – disse Adam, cortando mais uma vez o fluxo de pensamentos – Não vai mesmo adiantar nada. – levantou-se, assustando seu pai, pois foi um movimento sem aviso.

- Pra onde está indo?

- Pra livraria. Vai ficar aqui ou prefere que eu te encontre em outro lugar?

Jin deu uma resposta qualquer e logo depois viu-o se afastando. Temia tê-lo ofendido mesmo que não fosse a intenção. Foi com esse temor que terminou com o café, sem saber se o efeito que precisava era a calma ou a agilidade de raciocínio. Adam tinha toda a razão em se preocupar com a reação da mãe e da irmã ainda que pouco pudesse fazer pra mudar isso. Infelizmente fora pouco hábil em dizer isso a ele. Muito pouco hábil. Será que ele encararia isso como uma bronca?

Decidiu parar de pensar nisso por pelo menos alguns minutos em função de parte de uma tarefa árdua: ligar pra casa, avisar que estava voltando e que Adam também voltaria junto com ele. Por mais que não fosse falar sobre a doença numa ligação telefônica – afinal isso seria uma loucura de sua parte – precisava prevenir a esposa de que sua volta não tinha exatamente um bom motivo, ou mesmo que não fosse de todo feliz.

Havia telefones a alguns passos de distância, dois deles desocupados. Adam ainda não voltara, mas a distância era tão curta que não havia chances de desencontro.Então, sem desculpas para adiar seu tormento, resolveu fazer aquilo de uma vez. Então foi até lá: no momento de discar os números pensou que não conseguiria, pois suas mãos tremiam. Chegou a errar duas vezes e quis desistir, crendo irracionalmente que aquele era um aviso. Logo desistiu de desistir ao pensar na reação das duas ao vê-lo de surpresa e da tristeza ao saber qual a razão de sua volta. Assim, forçou-se a discar novamente e bastaram poucos segundos e um breve som para que ouvisse a voz suave de sua mulher. Inconfundível, ainda que o telefone lhe alterasse levemente o tom.

- Alô?

- Alô, Ling?

- Jin? Puxa, finalmente! Eu já estava ficando preocupada. Onde você está?

- No aeroporto. O avião parte daqui a duas horas. – explicou, buscando alguma força para começar a falar. – Ouça, Ling... Adam está voltando comigo.

- Adam? Ele está voltando com você? – pareceu preocupada, mas procurou não demonstrar, controlando sua voz. – Aconteceu alguma coisa?

- Não, é que...

- Sua voz está diferente, Jin – ela interrompeu. – Eu sei que está acontecendo alguma coisa.

Bem que ele quis mentir mas desistiu por saber que não conseguiria, não para sua esposa.

- Não dá pra falar por telefone. Estaremos aí dentro de algumas horas e aí vamos poder conversar direito. – fez uma pausa e tentou mudar de assunto. – Como está a Cassie?

- Ela está bem, acabou de sair. – respondeu, sem demonstrar hesitação e Jin soube que ela estava usando de seu auto-controle para disfarçar – Como Adam está?

- Tubo bem. Foi até a livraria. Duas horas é muito tempo pra ele ficar parado. – usou um tom suave que deixou claro: se havia acontecido algo, isto não fora culpa de Adam. Ele não tinha feito nada errado. – Muito tempo pra ficar pensando no nada, você sabe.

- É, eu sei. – foi como se lamentasse. – Certo, vou esperar por vocês. – resignou-se.

Mais algumas palavras e logo se despediram. Jin optou por uma conversa curta e com apenas o essencial, pois havia realmente muito pouco a ser dito. Queria apenas tranqüilizá-la, apesar de sentir que o efeito fora contrário. Sabia que ela não iria sair de casa, esperando que chegassem e pudessem conversar. Largou o telefone, afastou-se, voltando para o seu lugar. Imaginou que deveria estar se sentindo mais leve por ter feito aquilo, mas sua tensão apenas aumentou.

Adam ainda não tinha voltado. Não o viu no local onde combinaram e nem ao redor. Preocupou-se, pensando que ele poderia ter se sentido mal no meio do caminho. Condenou-se por tê-lo deixado ir sozinho, e passou breves minutos com tais pensamentos e recriminações até lembrar que sua demora era esperada. Como todos aqueles que gostavam de ler, Adam poderia ficar horas dentro de uma livraria. Um pensamento que acalmou-o um pouco, muito pouco por ser uma tendência sua pensar nas piores possibilidades. Chegou a pensar em ir atrás dele, mas foi justamente nessa hora que viu-o se aproximando.

- Pronto, voltei. – sentou ao seu lado, carregando uma sacola com o logo da livraria. – Está aqui há muito tempo?

- Mais ou menos. Tudo bem?

- Sim, está. – respondeu, paciente, esperando por um interrogatório, mas sem se importar.- Tudo bem?

- Tudo.

Olhou para a sacola que o filho trouxera. Esperava que tivesse mais coisas pelo tempo que ele demorara, mas não fez perguntas. Indagou a si mesmo se por acaso Adam não tinha se sentindo mal, mas não poderia ter uma resposta julgando por sua aparência. Afinal ele já estava pálido desde a hora que o encontrou. Pensou se não era caso de estar exagerando, mas foram perguntas que não se materializaram em sua voz, permanecendo assim sem resposta.

- Pai?

- Hã? Que foi?

- Eu trouxe jornal. – estendeu a mão, entregando a ele o exemplar. – Não sei se por acaso já leu, mas...

- New York Times?

- As pessoas costumam ler isso quando estão aqui em Nova York. – deu de ombros, numa piada que lhe pareceu mal sucedida – Aí deve ter distração pra viagem toda.

- Com certeza, obrigado.

Viu de relance o que Adam comprou: duas revistas: uma de assuntos gerais e outra sobre cinema e música. Esperava mais já que seu filho era um leitor quase compulsivo... talvez não estivesse com disposição suficiente.

- Pensei que fosse trazer mais coisas.

- Não adianta trazer mais do que consigo ler. Acho que não estou nos meus melhores dias pra isso, devo ter perdido o hábito.

- Você não lia?

- No ginásio? Impossível! – riu, como se tivesse ouvido a coisa mais absurda do mundo – não tinha tempo pra isso. O negócio era treinar.

- E nas horas de folga?

- Eu dormia.

Foi de uma sinceridade tão grande que mais uma vez perguntas vieram a mente de Jin: Adam queria mesmo ter ido pra Nova York? Era muito intrigante, pois por mais talento que ele tivesse ainda era diferente do que imaginava que seu filho faria da vida. Ser atleta exigia sacrifícios, pouco tempo para tudo o que os garotos de sua idade gostavam de fazer, e no caso dele nem mesmo ler. Será que as artes marciais era realmente o que Adam queria?

Não lhe fez essa pergunta. Logo após a resposta viu-o abrir uma das revistas e começar a ler. Deixou-o então fazer sua primeira incursão em muito tempo nos acontecimentos de fora daquele ginásio.

Para Adam as duas horas para embarcarem não demoraram a passar, enquanto para seu pai não poderia dizer o mesmo. Após todos os procedimentos que não tomaram mais que alguns minutos, já estavam no avião. Jin viu-o pedir lenços de papel para a aeromoça, mas não sabia qual a utilidade daquilo, mais uma pergunta que permaneceu oculta. E foi em meio a voz do piloto avisando dos procedimentos de segurança, dos gestos artificiais das aeromoças e do silêncio dos dois que Nova York foi ficando para trás.


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