Verdade e Consequências escrita por Lara Boger


Capítulo 19
Omissão


Notas iniciais do capítulo

Ainda insisto nessa história. Não dizem que brasileiro não desiste nunca? É, eu não desisti.

Se alguém ainda se aventurar, boa sorte.



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Dentro do quarto de hospital, o rapaz entediado lutava contra seus revezes.

 

Suas formas de lutar eram bem diferentes das quais já estava acostumado. Nada que envolvesse armas, golpes de artes marciais, megazords ou morfadores. Sua batalha agora era por atos cotidianos, mas isso não queria dizer que fosse mais fácil. Muito pelo contrário. A rotina podia ser uma batalha muito mais árdua.

 

Não era como lutar contra bonecos de massa, ou piranhatrons, nem contra adversários em um ringue. Se antes seus adversários eram bem claros e lutavam de igual pra igual, agora não era mais assim.

 

Como lutar contra seu próprio corpo durante todos os dias e todas as horas?

 

Não havia “bem” ou “mal” . Não havia regras ou garantias. Pelo contrário: tudo apontava contra qualquer reação de sua parte.

 

Lutar era apenas uma teimosia sua. Não um capricho, mas um instinto de quem não estava acostumado a desistir.

 

Como ranger, aprendera a apanhar e suportar os golpes, pois sabia que as lutas eram parte de uma batalha maior. Naquele tempo era o bem contra o mal.

 

E agora? estava lutando contra o que? Contra seu corpo? Seus atos?

 

Contra si mesmo?

 

Nessa batalha não havia vencedores. Mesmo porque sabia que não ia sair vivo. Lutar era simplesmente a única coisa que podia fazer.

 

Se não podia contar com uma vitória, podia ao menos fazer isso por questão de honra.

 

Poderia não ter a sua vida, mas ao menos tinha sua honra. Mas ainda era muito estranho  crer que tentar ir ao banheiro sozinho, comer a comida insossa do hospital ou ler um livro fossem uma tentativa de manter um mínimo de dignidade.

 

Riu-se ao pensar nisso: o ex-ranger, que enfrentava todos os inimigos, tinha livros e papas como adversários.

 

Quem diria...?

 

 

ooOOoo

 

 

Hora do almoço. Adam estava sentado na cama, tendo a sua frente uma bandeja com sua comida. Pelo menos era assim que chamavam aquela papa sem cor que estava em seu prato.

 

Ainda tinha sérias dúvidas se aquilo era realmente comestível.

 

Brincava com a papa, remexendo-a com a colher. Se fosse criança, poderia fazer um bonequinho, mas a maturidade excessiva o impedia de tal ato, por mais que houvesse vontade.

 

Maturidade excessiva ou vergonha? As duas coisas, talvez.

 

Algumas pessoas costumavam dizer que Adam parecia mais velho do que realmente era, mais maduro do que deveria ser nos seus quase dezenove anos.

 

Bem, não era difícil amadurecer rápido quando sofria bullying na escola, ou quando seu crescimento foi atrelado aos valores das artes marciais: aquilo que o livrara das gozações, mas não do senso de honra e de responsabilidade. Nada que lhe fosse imposto pelos pais, por mais que a vida de famílias orientais pudesse ter uma dinâmica diferente.

 

Bullying, família, artes marciais... power ranger. Sim, tivera bons motivos para amadurecer, especialmente pela última razão.

 

Agora, sua maturidade lhe tinha alguma serventia. Sua calma e senso de responsabilidade impediam-no de ter reações como choro ou revolta... reações que qualquer adolescente normal poderia ter. Qualquer um menos Adam Park.

 

Difícil acreditar que dezoito anos pudessem lhe pesar nos ombros. Talvez um octogenário pudesse ser mais jovem que ele.

 

Ser assim era estranho. Amadurecer no começo não fora por vontade própria e sim circunstâncias de sua rotina, necessárias apenas para fins não mais úteis que sua sobrevivência. Ser um menino tímido e fracote não tornava sua vida muito fácil. Saber se defender tornou as coisas mais seguras e confortáveis... mas nada que fosse útil para os outros.

 

Já ser ranger fora escolha própria. Nada que lhe fora imposto, e sim uma decisão. E foi ali que crescera de verdade, onde se sentiu importante, onde se sentiu útil.

 

Não era apenas sobreviver e sim fazer alguma coisa.

 

Agora, pensava se suas escolhas foram certas, se tudo tinha valido a pena, afinal elas o tinham levado àquela situação.

 

Certamente tinha valido. Não se arrependia. Não lamentava.

 

Por menos sentido que tudo isso fizesse, não se arrependia de seus atos. Não importava que isso o obrigasse a voltar para o ponto inicial.

 

Lutar por sua sobrevivência não era mais como antes. Agora, essa batalha era fruto de sua escolha. Não seria por motivo menor e nem egoísta.

 

Era sua última luta e certamente a mais difícil delas. Mas talvez não fosse mais difícil que engolir aquela papa sem cor e sem gosto.

 

Rolou os olhos e suspirou, exasperado. Comer era parte do jogo. Era preciso.

 

Remexeu um pouco a comida e ao levar a colherada à boca sentiu ânsia de vômito.

 

Naquele momento pensou que preferia enfrentar um exército de monstros do que ter de comer aquilo, mas era necessário.

 

Se sua memória não estivesse falhando, era o dia em que não podia decepcionar. Se estivesse certo, precisaria dar uma demonstração de força para sua família, e tinha de parecer despretensioso. Um ato natural.

 

Se estivesse certo, sua família não teria um bom dia.

 

Más notícias estavam por vir. Era certeza.

Tudo já estava claro. Adam sabia o que ia acontecer.   

 

 

 

ooOOoo

 

 

Jin Park estava sentado no corredor. Cabeça baixa, tentando acalmar-se e formular pensamentos coerentes.

 

Precisava disso. Não podia se dar ao luxo de ficar tenso, pelo menos por enquanto. Não no lugar onde estava.

 

Sua cabeça estava dando voltas, seu estômago ardia com o nervosismo. Sentiu frio de repente, e esfregou os braços numa tentativa de aplacar uma sensação que ninguém mais sentia. Tentou controlar também o nó na garganta... digerir a má notícia, suportar os efeitos e se controlar, pelo menos enquanto estivesse ali.

 

Respirou fundo, tentando dizer a si mesmo que deveria ficar calmo, que era apenas um problema a ser resolvido. Devia controlar sua frustração do mesmo jeito quando havia um problema no seu trabalho, tentando pensar que aquilo era apenas algo que dera errado mas era apenas um problema temporário.

 

Precisava pensar assim. Tinha de pensar desse modo e manter a calma.

 

Histeria não ia ajudar seu filho. Tinha de pensar que aquilo significava apenas uma alternativa a menos. Na verdade era isso que as circunstâncias significavam.

 

Mas, ao contrário de seus negócios, o caso era muito grave. Significava uma esperança a menos.

 

Os últimos exames de Adam mostravam que os remédios não surtiam os efeitos esperados. Os médicos apelariam para novas alternativas. O problema era que não havia muitas opções.  

 

Não houvera melhora. Jin tinha esperanças de que Adam pudesse sair do hospital. Esperança irracional de cura rápida, mas que as últimas notícias fizeram o trabalho de abalar.

 

“Eu preciso me acalmar... ele não pode me ver desse jeito.”

 

Ficou alguns segundos sentado, esperando um pouco de calma. Queria entrar no quarto para ver seu filho, mas não poderia faze-lo desse jeito. Não com aquela cara.

 

Todos os dias passava longas horas lhe fazendo companhia, mas se ele o visse assim, acabaria lhe fazendo perguntas.

 

Adam não precisava daquele estresse. Temia que a notícia pudesse abala-lo, prejudicar ainda mais o seu tratamento.

 

Então decidiu que seu filho não precisava saber.

 

Não seria a primeira vez. Já se calara por outras duas.

 

Não gostava da idéia de esconder a situação, mas temia as conseqüências. E se Adam entrasse em depressão? Aquilo o faria definhar mais rápido.

 

Aquilo poderia matá-lo.  

 

Esconder era o que tinha a fazer. Infelizmente era preciso. Tinha de protegê-lo e assim o faria, mesmo que significasse mentir.

 

Mentir era o menor preço a pagar pela vida dele. Assim seria.   

ooOOoo


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