- Li-san! Aqui estão os relatórios do departamento de RH.

                - Obrigado, Yamamoto-san – respondi à senhora que no momento era meu “quebra-galho”. Não havia muito tempo que me formara e fui enviado à Inglaterra para trabalhar numa empresa no setor produtivo, já que segundo minha mãe eu deveria aprender tudo sobre uma empresa na prática antes de ousar administrar os negócios da família. Como ela dizia, “para saber mandar é preciso saber obedecer”. Então, depois de 10 meses de muito trabalho sem descanso, voltei para o Japão, dessa vez para trabalhar de fato em uma das empresas da família. E, de novo, minha mãe não facilitou para mim.

                Não que eu esteja reclamando, não mesmo. Acho ótimo entender como a empresa funciona como um todo, para depois não cometer erros com o patrimônio de tantos anos da minha família. A questão é que eu simplesmente sou a pessoa que mais trabalha aqui. É até engraçado ver os olhares de pena que a Yamamoto-san de vez em quando lança para mim. Vive perguntando se eu não preciso de alguma coisa e desde que descobriu que eu sou a última pessoa a sair do prédio deixa uma caneca de café e biscoitos para mim.

                Wei é outro que também reprova o meu comprometimento tão grande com a empresa. Ele nunca deixa explícito o que está pensando, a não ser uma vez, quando acabei dormindo na escrivaninha e ele deixou um panfleto do meu lado que alertava sobre os perigos do stress e da falta de horas de sono.

                Claro que sei que não é exatamente saudável o que estou fazendo, mas não vou relaxar justo agora. Se tem um momento em que devo dar tudo de mim pelo meu trabalho, é agora. Ele deve achar que tenho quinze anos, quando a minha maior preocupação era conseguir acordar a Sakura a tempo...

                Ahh, a Sakura... Realmente faz muito tempo que não a vejo... Tanto faz. Ela que escolheu deixar de falar comigo. Não sei nem por que voltei a pensar nela, nem me lembrava dela...

                Ok, a quem estou mentindo? Quer dizer, ela foi a figura mais presente na minha vida por um tempo, não dá pra esquecer assim. O que quero dizer é que seria bom pelo menos saber se ela está bem, ou algo do tipo. Argh.

                - Ah, Li-san – Yamamoto-san me fez voltar ao mundo real – não precisa ficar até mais tarde hoje, afinal, amanhã começa a Golden Week(*). Saia um pouco e divirta-se – terminou com um sorriso maternal. Sério, as pessoas realmente acham que sou um adolescente.

                - Ah, sim, obrigado, Yamamoto-san – apesar de me tratar como uma criança, até que eu gosto desse carinho que ela tem. Bom, quem não gostaria de ter uma mãe assim?

                Claro que eu não iria sair mais cedo por causa do feriado. Na verdade, isso é mais um motivo para trabalhar mais. Mas até que não era uma má idéia sair um pouco para arejar a cabeça... Aliás, não ia a lugar algum desde que tinha terminado com a Ayane. Não é fossa nem nada, mas realmente não tive nenhuma vontade de sair por aí durante aquele mês. Aliás, acho que nunca fiquei na fossa, nem quando terminei com a Megumi, com a Akira, com a Yukari, com a Claire... Enfim, com nenhuma. Era mais um alívio, todas diziam que eu nunca tinha tempo para elas, e eu nem tinha como argumentar. Era verdade, mesmo.

                Saí do edifício já quase onze e meia da noite. Mesmo assim as ruas estavam cheias, Tóquio realmente nunca parava. Nada igual a Londres, lógico, mas mesmo assim assustava, e muito, quem não era acostumado às cidades grandes. E Tóquio é enorme, diga-se de passagem. A noite estava realmente fresca, e as árvores estavam incrivelmente belas, afinal, estavam no meio da primavera. Resolvi caminhar um pouco, antes de voltar para casa; não era sempre que se tinha uma noite tão boa para aproveitar. Meus pés me guiaram até uma grande praça, onde os mais animados (bêbados) ainda se divertiam em meio às árvores, mesmo que o Hanami(**) já tivesse acabado.

                Segui até uma barraca pequena e pedi uma dose de sake. Um pouquinho só não faria nenhum mal. Sentei-me em um dos bancos e sentia a brisa leve entre um gole e outro. Era uma sensação incrível, como se nada pudesse estar errado. Assusta um pouco como as estações tinham um efeito sobre as pessoas.

                Enquanto curtia o sossego daquela noite e da animação pelo feriado que se seguia, notei um grupo de pessoas que se reunia à minha esquerda. Riam bastante e alto, certamente já estavam lá faz tempo. Mas consegui diferenciar uma pessoa entre elas. Ria de leve, quase que timidamente. Claramente não tinha tomado todas como seus companheiros. O cabelo castanho-claro mal chegava aos ombros, a pele branca quase que brilhava ao luar. Droga. Mesmo se estivesse com o cabelo pintado de azul e cheia de piercings eu conseguiria identificá-la. Se não era Sakura, tinham trocado meu sake por absinto(***).

                Voltei a minha cabeça para frente como se não tivesse visto nada e terminei de beber meu sake. A noite já tinha acabado para mim. Levantei-me e fui embora para casa, rezando para que ela não tivesse percebido a minha presença.

(*)Golden Week é um super feriado japonês que começa dia 29 de abril e termina 5 de maio, com a seqüência de quatro feriados nacionais.

(**)É o período de florada das cerejeiras, marcando o início da primavera. Nesse período é costume ir para os parques fazer piquenique para apreciar as flores.

(***)Sim, é a bebida da fadinha verde de Moulin Rouge. Tem entre 40 a 85% de álcool. Ou seja, a parada é forte.