Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 56
Capítulo LVI




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O silêncio na carruagem era denso e pesado, enquanto o dia amanhecia alegre do lado de fora. Matias tinha a sensação causticante de um aperto no peito, uma mão invisível que ia sufocando-o, ou algo que queria sair, mas parecia entalado. 

Ele e o pai tiveram que se retirar cerca de uma hora após o horário declarado como a morte de Ezequiel. Cinco e trinta e nove da manhã, Leônidas dissera ao tocar o pulso já sem batimento de seu paciente. E também após ele e Estevão conseguirem fazer com que Irina soltasse o corpo do irmão. Fora um pouco menos pior do que Matias imaginara que seria, porém, mesmo assim o Sr. Gutiérrez pedira por nem que fosse uma pequena dose de Banksiae para que a filha pudesse dormir. Todos precisavam dormir pelo menos um pouco, depois de uma madrugada como aquela. 

― Planeja retornar depois? ― Leônidas questionou, finalmente alguém tendo coragem para vencer o silêncio pesado instaurado dentro da carruagem da família. 

Matias tomou um tempo para ponderar, esquecendo a imagem do dia amanhecendo através da janela. 

― Devo retornar no final da tarde, para ver como estão.

― Talvez fosse melhor dar um tempo a eles ― o pai orientou, os dedos passando pela alça de sua valise. ― Sei que está preocupado com sua noiva, mas a família precisa desse tempo para si.

Matias assentiu em silêncio, tendo que concordar com ele daquela vez. Seus olhos se voltaram para o pai, que não parara de observá-lo desde que entraram no veículo rumo à residência dos Salazarte. 

― Será que as meninas passaram bem a noite? ― o filho perguntou, mudando ligeiramente de assunto. 

― Elas devem acordar logo mais, sequer devem ter percebido que partimos ― ele retorquiu, olhando para a janela e finalmente quebrando o contato. Talvez fossem os anos de experiência em sair de madrugada que trouxesse aquela certeza. Saídas que nem sempre deviam terminar ao lado da cabeceira de um doente. ― Tem conseguido falar com suas irmãs?

A frase terminou ali, mas Matias podia perceber o “desde que aquilo aconteceu” escondido nas entrelinhas. Com exceção de Matilda, que ainda estava abalada e falando abertamente com ele sobre os minutos traumáticos que vivera, ninguém mais tocava no assunto. Falaram o necessário para os Altos Membros de seu clã no Conselho, que colheram o depoimento dos três, e logo o inquérito terminaria com a culpa de um homem que já estava morto. 

― Meredith tem me evitado nos últimos dias e quanto à Matilda, o senhor sabe como ela está. 

Leônidas assentiu em silêncio. Sim, sabia muito bem, pois a filha mais nova estava evitando-o ainda mais. Nada além de palavras necessárias e olhares que se cruzavam sem querer à mesa do jantar. 

O veículo parou por um instante, dando a entender que haviam acabado de passar pelos portões da propriedade da família. Voltaram a rodar mais um pouco. 

Pai e filho não trocaram mais nenhuma palavra e o silêncio somente não os visitou outra vez porque logo entraram pela porta da frente. Leônidas partiu primeiro e foi interpelado pelo mordomo, enquanto tudo o que Matias conseguia pensar era em tombar no próprio travesseiro e fechar os olhos por alguns minutos que fosse. 

― Veio junto de um mensageiro de Mempolis agora no início da manhã, senhor ― o mordomo informou para o patrão, entregando-lhe um pedaço de papel. 

O Dr. Salazarte o desdobrou e, enquanto o filho esquecia os próprios planos e se aproximava para tentar ler o que estava escrito, o papel foi amassado. Olhou para o rosto de seu pai, vendo-o lívido como não o via há alguns dias. 

― Prepare meu baú para a viagem, partiremos daqui alguns minutos ― ele ordenou para o mordomo e o homem quase tartamudeou de tanta surpresa, restando somente correr para gritar as ordens para mais empregados. — E peça para que os cavalos sejam trocados, o percurso é longo. 

― O que aconteceu? ― Matias questionou, tendo que correr atrás do pai, que partiu em disparada pelo corredor. ― Tina disse algo? — Continuou a insistir quando não obteve nenhuma resposta. 

Passaram reto pela porta do escritório e foram até o final daquela parte da casa, que dava direto para a estufa. Leônidas escancarou a porta e entrou. Largou sua valise sobre a mesa lascada que ficava próxima à entrada e começou a pegar alguns frascos das duas prateleiras na parede ao lado da porta, lendo os rótulos anotados por ele. 

― Seu avô mandou um mensageiro para anunciar que Saul está morto. Preciso partir. — As frases saíram quase juntas numa só. 

— O que?! — Matias disparou assim que sua pergunta foi respondida. — Como isso aconteceu?

O pai não respondeu, selecionando alguns frascos das prateleiras e os pondo dentro da valise, sabe-se lá por quê. 

— E quanto à Tina? Ana? 

— Seu avô não me informou — o médico respondeu rapidamente e bateu o fecho da valise, pegando-a de volta para sair dali. — Partirei para saber o que aconteceu e mando notícias assim que puder. 

Ele disparou pelo corredor e Matias o seguiu. 

— Cuide de suas irmãs na minha ausência — Leônidas pediu e finalmente parou, girando nos calcanhares para se voltar a Matias, enquanto à distância dois empregados desciam as escadas com o baú do patrão, tendo aprontado aquilo em tempo recorde. As próximas palavras pareciam pender para sair. — Tente não forçar os seus limites também, você ainda precisa se recuperar. 

O Dr. Salazarte partiu junto dos carregadores do baú, o filho indo atrás junto de mais perguntas que eram atiradas e não obtinham respostas. 

— Irei partir com a carruagem, deixarei a sege para vocês — o pai informou, parando nos primeiros degraus da entrada. Ele olhou para o filho mais uma vez. — Peça à Mãe para que sua irmã esteja bem. 

Junto da frase que tiraria a sanidade de qualquer um, ele entrou na carruagem que deixara há menos de quinze minutos, ostentando uma palidez preocupante. Matias assistiu o veículo partir outra vez, tentando processar o que havia acabado de acontecer. 

A carruagem desaparecera de vista há um bom tempo e os empregados, depois de terem fechado o portão, retornaram ao trabalho e renderam ao acontecimento nada além de breves comentários. Matias continuou parado, o sol esquentando suas costas e a nuca e servindo para dissipar o frio.

Quando tudo parecia estar voltando aos eixos de alguma forma em sua família, restando a eles juntar os cacos para se remontarem outra vez, mais uma tragédia os atingia. Questionava-se se sua irmã tivera tempo para escrever uma resposta à última carta que enviara e o que estava acontecendo na fazenda. Pelo que lera na carta de Saul para seu pai, deduzia que as coisas também não estavam nada bem em Mempolis. E ele queria falar sobre maldições…

― Devo preparar a mesa para o desjejum? ― O mordomo apareceu às suas costas, lançando-lhe a pergunta. ― A Srta. Matilda chamou pela criada e deverá descer em breve.

Matias se virou, observando a fachada da casa, onde o sol ainda não atingia. Entrou pela porta aberta.

― Sim ― respondeu sucinto, deixando o homem cumprir suas funções e partiu para o próprio quarto.

Perguntava-se como seria capaz de manter a rotina de sempre depois de tudo que acontecera nas últimas doze horas. Mais uma vez, parecia ser mais do que era capaz de lidar.

Feita sua toalete, rumou para a sala de jantar, onde a mesa estava posta em uma refeição maior do que quatro pessoas poderiam desejar. E ainda sobraria mais, com apenas três presentes. Puxou sua cadeira de sempre e se sentou, trazendo um guardanapo para o colo. Cortou um pedaço de pão sem o mínimo de vontade para comer e, enquanto o trazia para o prato, ouviu um farfalhar de saias às suas costas.

― Bom dia ― Matilda desejou e passou por ele, indo ocupar seu lugar do outro lado da mesa.

― Bom dia ― retribuiu, começando a comer e fingindo que tudo estava bem. Ela ocupou a cadeira à frente e não conseguia desviar os olhos dele. ― Dormiu bem essa noite?

― Sim ― Matilda respondeu lacônica e pegou outra faca para cortar um pedaço do bolo. Tão diferente de dias passados, em que emendaria um falatório direto. ― Aconteceu alguma coisa?

Matias engoliu e sentiu o pedaço de pão descer pesado como uma refeição completa. Ela trouxe o bolo para o prato e ele usou a frase mais suave que conseguiu pensar.

― Nosso pai partiu para Mempolis agora cedo. Nosso avô mandou uma mensagem para avisar que o marido de Tina faleceu.

Matilda imediatamente parou o que fazia.

― Como assim?!

Ele bebeu um gole de chá, desejando que aliviasse um pouco o peso do estômago.

― Não temos mais informações além disso. Nosso pai disse que mandará notícias assim que puder.

― Mais um segredo que ele irá esconder de nós. ― Ela riu e começou a quebrar o bolo em pedaços para comer. ― Ao menos Tina deverá falar alguma coisa, se pedirmos.

― Não é culpa dele dessa vez.

― O que não significa que não vá acontecer de novo ― Matilda arrematou de forma amarga e Matias esqueceu completamente do próprio pão. Era quase outra pessoa evoluindo ante seus olhos. ― Meredith não irá descer?

― Não viu alguma movimentação no quarto dela quando você saiu? ― ele recebeu uma negativa em resposta. ― Talvez ela ainda esteja dormindo.

― Ou nos esperando terminar de comer para descer. Mas é melhor assim, sem precisar aturar uma pessoa que acredita que a culpa por tudo de ruim que acontece nessa família é nossa.

Matias deu um olhar longo e repreensivo para a irmã, que simplesmente focou-se em seu bolo. Tentou obrigar-se a comer pelo menos metade do pedaço de pão que cortara.

― Não deveria falar assim dela. Ela apenas está tentando lidar com tudo o que aconteceu.

Matilda soltou outra risada, um leve tom de sarcasmo aparecendo.

― Lidar com tudo colocando a culpa em nós, exatamente como ela fez comigo quando mamãe morreu. ― Matias respirou fundo, sentindo que não tinha cabeça para discutir tão cedo e ainda mais depois de tudo o que passara nas últimas horas. ― Isso é tudo o que ela sabe fazer, ser desagradável com todo mundo.

O irmão ficou calado, percebendo que repreensão nenhuma teria efeito nela, mais ocupada em reclamar do que ouvir. Deixou o silêncio cair e, por sua insistência e bons goles de chá, conseguiu terminar o pedaço de pão. Por educação, aguardou a irmã terminar de comer e cada um se retirou para seus próprios afazeres.

Matilda teria aula de poções dali uma meia hora e Meredith também, portanto, antes de rumar para o próprio quarto e tentar descansar um pouco, nem que fosse o corpo, partiu para o quarto da outra irmã, encontrando a arrumadeira lendo um pedaço de papel.

― Meredith já desceu? ― ele questionou de súbito, surpreendendo a mulher. Ao virar-se em sua direção, viu as bochechas dela coradas, provavelmente envergonhada por ter sido pega no flagra.

― N-não, senhor ― gaguejando, ela estendeu-lhe o papel. ― O próximo navio parte às nove.

Matias estranhou a afirmação e passou rapidamente os olhos pelas linhas com a letra da irmã.

 

Querida família,

Estaria mentindo se dissesse que tomo essa decisão com pesar. Eu deveria tê-la feito muito antes, pois não é a primeira vez que Charles ou Henrik me fazem a proposta de partir para a costa do Brasil, mas antes eu ainda tinha esperanças de que tudo fosse diferente. Eu esperava que a morte de mamãe e Bernardo fossem trazer alguma mudança para vocês, mas eu estava errada.

Mandem lembranças minhas a Tina, a única pessoa que acredito que de fato sentirá minha falta.

Matias, eu esperava mais de você, mas acho que as lembranças sempre vão acabar sendo melhores do que a verdade.

Matilda, sinto muito por tê-la culpado pelo que aconteceu com mamãe. Nunca foi sua culpa e hoje entendo isso. Perdoe-me.

Quanto a você, pai, nunca irei perdoá-lo pelo que fez com mamãe, ou Bernardo ou comigo.

Adeus a todos.

Meredith

 

Matias leu e releu as poucas linhas no papel ao menos quatro vezes, para ter realmente certeza de que tinha compreendido. A empregada ainda assistia às suas reações e, sob o olhar dela, saiu em busca de Matilda. Encontrou-a lendo na biblioteca.

― Quem são Charles e Henrik? ― ele demandou saber, fazendo-a erguer os olhos do livro. Viu-a apoiar o cotovelo sobre a mesa e voltar o rosto para cima. ― Meredith fugiu.

O pedaço de papel foi entregue para ela, que também correu rapidamente os olhos pelas linhas.

― São algumas daquelas pessoas que Meredith fez amizade, para aprender sobre magia elemental ― Matilda explicou, recebendo um olhar inquiridor quando devolveu o bilhete. ― Você não sabia que Meredith andava para cima e para baixo com essas pessoas? Quase sempre que ela saia de casa era para se encontrar com eles.

De memória, a única coisa de que Matias se recordava daquilo era da fala do pai em um jantar que precedera a primeira discussão dos dois, sobre “sua irmã ter se enfiado onde não devia em busca de livros de magia elemental”. Além de Matilda ter provocado a irmã sobre suas companhias várias vezes. 

― Ela estava estudando magia elemental com eles? ― ele questionou.

― Ela os conheceu quando estava procurando por livros de magia elemental. Depois começou a se encontrar com eles para ser uma aprendiz, até que nosso pai descobriu e tentou proibi-la. ― Matilda endireitou-se na cadeira, porém, tudo que teve em resposta foi o irmão dando-lhe as costas e partindo para fora da biblioteca. ― Matias!

Ela tentou chamá-lo, contudo, ele saiu em disparada pelo corredor, escancarando a porta da frente ao atingi-la. Ao encontrar o cocheiro na estrebaria, viu o homem escovando a crina de um dos cavalos.

― Para o píer, em dez minutos.

― Mas, senhor, os cavalos...

Matias sequer o ouviu, entrando na sege e batendo a porta. Quando ele estava prestes a abri-la novamente para ver se o cocheiro ainda estava lá, foi empurrado para trás com um solavanco ao começarem a se mover.

Seguiram em uma corrida desembestada pelas ruas da cidade, plenamente despertas em plenas nove horas da manhã. Torcia para chegarem a tempo ao píer, tinha que chegar em tempo. Mesmo que não fizesse ideia de como convencer a irmã a voltar, além de arrastá-la de volta com ele, ainda que ela fizesse um escândalo.

Passara semanas junto de Meredith, mas, no fim das contas, era como se não conhecesse realmente aquela nova versão da irmã. O pai insistira que ela escondia sobre suas amizades por querer mantê-lo ao lado dela, mas será mesmo? Tinha dúvidas e inúmeras considerações, porém não era hora para aquilo.

Assim que viu a orla da praia entrar em seu campo de visão pela janela, avançou no banco e saltou da carruagem quando ela parou, sequer se importando em esperar para que descessem os degraus.

O píer era uma confusão de vozerios como da vez em que ele próprio era como uma daquelas pessoas que deveriam ter retornado de um navio que aportara. Ao mirar os olhos onde um deles deveria estar, não viu nada. Se forçasse a visão, poderia enxergar um navio que não passava de um ponto escuro se afastando em direção ao horizonte.

Havia chegado tarde demais. 


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