Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 57
Capítulo LVII




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A visão do quarto foi lentamente sendo processada por seu cérebro. Seus móveis estavam nos devidos lugares, a escrivaninha encostada à parede da esquerda com suas coisas sobre ela, Isaac sentado na cadeira, apoiando os cotovelos sobre a mesa e o rosto mergulhado nas mãos, um grande feixe de luz entrando pela cortina aberta e indo iluminar até o pé da cama, onde Estevão estava deitado com o tronco sobre o colchão e as pernas para fora, em um sono profundo e de boca aberta, as mãos largadas sobre a barriga. 

Irina tomou mais alguns segundos para tentar processar o que acontecera antes de fechar os olhos e adormecer contra a sua vontade. As últimas palavras de Ezequiel, o coração parando de bater e, antes que o calor que ainda restava no corpo dele arrefecesse, ela foi tirada de perto dele, por Isaac ou Estevão, ou até mesmo seu pai, o fato era que mal se lembrava do que acontecera depois. Somente podia dizer que houvera choro e muito choro e nada além disso, o resto eram borrões que lutava para buscar algum sentido. 

E o pior de tudo: aquela confusão não vinha de um pesadelo do qual somente se lembrava de alguns pontos soltos quando acordava. Era real, cruelmente real.

E quando tentava parar para entender como estava se sentindo ou pensar em como seria a vida dali em diante, não sentia nada. Era como se uma parte de si estivesse adormecida, entorpecida. Lembrava do desespero, lembrava da dor, porém parava ali. Eram lembranças. E lembranças eram tudo o que teria dali em diante. 

― Como está se sentindo? ― Isaac questionou, tendo endireitado-se na cadeira e apoiado os cotovelos sobre os joelhos nos poucos instantes que Irina perdera dentro da própria mente. 

Passaram-se segundos e não conseguiu responder. Parecia letárgica, seu corpo pesado e a cabeça mais ainda. 

― Eu não irei tomar mais nada para dormir ― ela declarou por fim, com uma voz rouca, não conseguindo responder à pergunta dele. Simplesmente porque não conseguia pôr em palavras como estava se sentindo. 

Sequer se lembrava de ter tomado qualquer coisa, apenas tinha certeza disso pelo gosto amargo na língua, a boca estava seca. 

― Nosso pai pediu para que o Dr. Salazarte te desse um pouco de Banksiae, você precisava descansar um pouco ― ele contou, levantando-se da cadeira e indo sentar-se ao lado dela na cama. Irina o acompanhou com os olhos, sentando-se com as costas contra o travesseiro e tendo certeza de que seu cabelo estava um caos, alguns grampos a incomodando e quase caindo. Continuava com a roupa que usara no jantar e Estevão ainda dormia ao pé da cama. ― Como você está se sentindo?

Isaac continuou a insistir e estava claro que ele não desistiria enquanto não obtivesse uma resposta. E havia apenas uma que ela poderia dar:

― Eu não sei. ― Suas mãos estavam largadas sobre o colchão, sem saber o que fazer com elas. Não conseguia tirar os olhos de Estevão, ainda preso ao sono. E talvez tendo um pouco de paz em sonhos. ― Eu sabia que esse dia iria chegar. 

Um longo tempo se passou, onde tudo o que ouviu foi a respiração constante de um e um suspiro do outro. A casa também estava em total silêncio depois da tempestade que arrasara com tudo. 

― Onde está nosso pai? ― Irina perguntou. — E Matias?

― Matias voltou para casa com o pai quando você adormeceu, e nosso pai foi tentar dormir agora de manhã. ― Teve uma resposta sucinta, seguida de uma breve pausa. ― Não era para esse dia chegar tão cedo. 

Ela virou o rosto na direção de Isaac, que não tirara os olhos dela desde que se sentara ali. O cabelo também estava despenteado, a camisa amassada e os olhos inchados, de sono, de choro ou dos dois. 

― Você me dizia que eu não deveria ter esperança ― Irina relembrou, soando amarga e até um pouco ressentida. 

― Eu dizia isso porque não queria te ver sofrer tanto ― ele confessou e ela desviou o rosto, voltando-se novamente para Estevão adormecido, sem conseguir encará-lo. ― Nós podíamos tentar, mas... Eu sabia que você ficaria destruída quando ele se fosse. Eu... ― A voz morreu no meio da frase e Isaac teve de limpar a garganta. ― Eu queria que você aceitasse a possibilidade de que ele poderia partir, para que você não sofresse tanto. 

Ela absorveu as palavras dele lentamente. Estevão soltou um resmungo confuso em seu sono e Isaac aguardou por uma reação dela. Não obteve nenhuma, nem seu clássico sinal de irritação. 

― Eu sabia que a Terra não permitiria que ele ficasse. Eu também sabia que esse dia iria chegar. 

― Você não pode estar mesmo acreditando naquela história sobre maldição que nosso pai nos contou. ― Ele segurou a mão dela, trazendo a atenção da irmã para si. Ela tentou puxá-la, não conseguindo. — É uma história, Irina! 

— Não é uma história! — ela gritou, fazendo Estevão acordar no susto. — Você irá perceber que não é uma história quando um de seus filhos estiver morrendo no lugar de Ezequiel! 

Isaac soltou a mão da irmã, encarando-a assombrado, enquanto o outro filho dos Gutiérrez se sentou, passando as mãos sobre os olhos para tentar limpá-los do sono. Irina nunca havia sido tão dura com as palavras daquela forma, mas era a realidade. E de que tentava tentar florear a realidade se aquele seria o destino?

— Digam-me que eu apenas estou aqui porque me encontraram bêbado na sarjeta e não tiveram coragem de me deixar largado lá. — Estevão olhou para os dois irmãos em busca de respostas, sem uma sombra de sorriso, apesar do tom jocoso de sua fala. Isaac e Irina estavam sérios da mesma forma que ele. — Digam-me que o caos que aconteceu nessa casa de madrugada foi apenas um sonho. 

— Ezequiel se foi — Irina afirmou, acreditando que a frase doeria mais quando fosse dita. Era frio e era real.

Estevão soltou uma longa respiração pela boca e jogou o tronco de volta para o colchão. 

— Eu não consigo aceitar. Eu não… — o pintor respirou fundo e Irina podia jurar que o irmão iria chorar. 

— Não era para ter acontecido assim — Isaac adicionou. 

— E como deveria ter sido? — ela questionou. 

Isaac se pôs de pé e começou a caminhar ao lado da cama, a mão fechada em punho em frente à boca.

— Não deveria ter sido — Estevão respondeu no lugar dele. — Era para Ezequiel estar aqui, não é justo… 

— Ela não é justa — Irina interrompeu o pensamento do irmão, que demorava para sair, dirigindo um olhar para ele. Sabia que entenderia do que estava falando. — Eu esperava que seria pior… Eu achei que… — Ela fechou os olhos, sentindo que o choro estava querendo subir. Respirou fundo para contê-lo. — Eu achei que Ela fosse fazê-lo sofrer mais. 

— Pelo amor da Mãe, Irina, pare de insistir nessa história! — Isaac berrou, parando de caminhar bem aos pés da cama. 

Estevão moveu-se sobre o colchão, indo sentar-se ao lado da irmã. 

— Acredite no que quiser — ela soltou, sentindo a voz trêmula, mas sem lágrimas. Estevão a envolveu em um abraço e balançou a cabeça na direção do irmão, pedindo para deixá-la. 

Isaac respirou fundo, caminhando novamente para perto da escrivaninha e encarando a janela. A julgar pelo sol que entrava, parecia ser uma bela manhã. E um dia horrível, sem a companhia de Ezequiel. 

— Como você está se sentindo? — Estevão repetiu a pergunta que o irmão fizera há pouco, mesmo sem saber. 

Como daquela vez, Irina tinha somente uma resposta para dar: 

— Eu não sei. — Ela encostou-se contra ele, mais uma vez tentando segurar o choro. Mesmo assim, sabia que as lágrimas estavam vindo. — Eu não consigo sentir… Eu me sinto culpada por isso, mas é como se… — Isaac tirou a atenção da janela, voltando-se para ela com a nova adição à resposta de sua mesma pergunta. — Eu não sei o que está acontecendo. 

— Não é sua culpa — Estevão tentou consolá-la. — Todos nós sabemos o quanto você amava Ezequiel, inclusive ele. 

Ela fechou os olhos outra vez, as memórias dos últimos momentos com ele em vida retornando com clareza. Uns dos únicos momentos que se recordava com clareza das últimas horas. 

— Ele sabia — Irina declarou, tentando controlar a respiração para poder falar. — Ele sabia como era amado por nós. 

Isaac pressionou um lábio contra o outro, parecendo estar lutando para se controlar. Estevão fechou os olhos e abaixou o rosto na direção dos cabelos da irmã, pouco se importando em conter-se, mesmo que em silêncio. 

— Ela o deixou voltar do delírio uma última vez — Ela abriu os olhos, enxergando o lado vazio de seu quarto, onde havia somente a parede e os baús com seus pertences — para que ele pudesse se despedir. — Fungou e, mesmo sem ver o que se passava às suas costas, ouviu passos se aproximando. — Ele apenas queria que eu fosse feliz, com uma família e um marido que me amassem. 

O colchão afundou sobre o peso de mais uma pessoa e Isaac ocupou o lugar onde antes estivera. Ele observou os dois irmãos mais novos, parecendo não saber como proceder. Uma mão parou sobre o lençol, muito próxima de Irina. 

— Você vai conseguir cumprir o desejo dele, eu sei que vai — Estevão murmurou com a voz abafada contra os cabelos dela e embargada. Assim como ela, fungou. 

Irina sentia que chorava, mas ainda era como se estivesse completamente entorpecida. Seu corpo processava o que estava acontecendo, mas sua mente, não. Parecia que o desespero havia sido liberado todo na madrugada, não restando nada além de um vazio. 

No fim, aquele pensamento não estava errado. Sempre haveria um vazio sem ele. Restavam apenas os três, sentados lado a lado na cama e lidando juntos com a própria dor. Sempre seriam somente três irmãos, não mais quatro. 

Ao menos Ezequiel fora feliz e amado com tudo que Irina tinha para lhe dar. 

 

 

Estevão foi se tornando cada vez mais difícil de ser enxergado no cair da noite. Irina o via ir embora na calçada vazia e, quando ele virou a esquina e sumiu de vista, ela continuou parada. 

Isaac havia partido antes dele e não era difícil para ninguém adivinhar onde ele teria ido, provavelmente voltaria em alguma hora da madrugada, fedendo a bebida e desmaiando na própria cama. Cada um lidava com sua dor e mágoas à própria maneira, colocando-a para fora sem receios como Estevão, afogando-a em álcool como Isaac ou… Irina não sabia como era o método dela de lidar com a própria dor. 

Naquele momento, sentiu que começava a chorar outra vez e passou rapidamente uma mão pelos olhos. Era como se todos os seus sentimentos estivessem congelados quando tentava acessá-los. De certa forma era bom, pois todos esperavam apenas o pior dela quando aquilo acontecesse. Enquanto sua mente… Bem, daquilo era impossível fugir. Principalmente quando vinham-lhe os pensamentos habituais, de seguir a rotina junto do irmão e logo depois a constatação de que não haveria mais rotina com Ezequiel, pois ele não estava mais lá. 

Ele não estava mais lá. Era um fato que ainda não conseguia processar. 

O vento bateu-lhe no rosto e decidiu que era hora de voltar para dentro de casa. Suas mãos apertavam contra o peito o bilhete de Matias que um dos empregados dos Salazarte entregara-lhe um pouco antes de Estevão partir.  Apesar de ter lido apenas duas vezes, recordava-se das palavras do noivo: 

 

”Sinto muito por não poder estar contigo hoje, meu amor. Infelizmente alguns problemas aconteceram com minha família e preciso ficar com eles esta noite. Mas amanhã estarei com você assim que puder. 

Não consigo tirá-la do pensamento e peço em preces para que tenha forças neste momento. Não peço à Terra, mas à Luz. Se Ela uniu a todos nisso, que Ela nos dê forças para suportar. 

Derrame suas lágrimas por ele e quando sentir que não conseguirá suportar, olhe para as estrelas e lembre-se dele. Se a jornada do outro lado é como ele diz que Dante descreveu, é lá que ele irá estar.

Com amor, M."

 

Irina rumava de forma plenamente consciente para o terraço. Era curioso que Matias tivesse escrito aquelas palavras quando Ezequiel dissera outras muito semelhantes justamente na última noite que passaram juntos lá. E quando ele dissera pela primeira que tinha plena certeza que partiria dali em breve, sem nenhuma esperança de ficar. Ao menos ser chamada de "meu amor" por Matias trazia um quentinho para o coração, a única coisa que parecia ter sido capaz de sentir ao longo daquele dia. 

Os empregados preparavam a mesa de jantar como se fosse uma noite comum e ao olhar para aquilo tinha menos vontade de comer. E teria ainda menos quando olhasse para uma das cadeiras vazias e tivesse de lidar com o pensamento de que Ezequiel não estava adormecido no andar de cima, mas que aquele lugar sempre estaria vazio. 

Ao passar pelas portas abertas, que guiavam para o terraço, viu a figura do pai sentada no mesmo lugar que Ezequiel ocupara quando o encontrara ali depois da noite que esteve fora de casa. Uma parte sua, por menos racional que fosse, desejava encontrá-lo no lugar que o pai ocupava. Colocou o bilhete de Matias no bolso do vestido. 

Antônio ergueu o rosto na direção da filha, seus passos se aproximando, e esqueceu o livro que tinha em mãos e que encarava até então. Com uma breve observação, Irina percebeu a capa que deveria ter sido preta em algum momento, mas que adquirira tons de cinza desbotado. Tinha a impressão de que era o livro de magia sombria que o pai trouxera da viagem. 

— Como você está? — ele questionou e ela ocupou o lugar ao seu lado. O mesmo que ocupara naquela noite com Ezequiel. 

Ela suspirou, tendo que lidar com aquela pergunta pela terceira vez naquele dia. Daquela vez, conformara-se por dar novamente a única resposta que tinha. 

— Eu não sei — confessou e encarou o próprio colo, sentindo que os olhos começavam novamente a se encher de lágrimas. — Por que eu não consigo sentir? 

Antônio deixou o livro abandonado sobre o colo e passou o braço ao redor da filha. 

— Cada um tem a sua forma de lidar com a dor, meu bem. — Ele depositou um beijo sobre os cabelos dela. — Essa talvez seja a sua. 

— Mas eu não deveria estar assim… — A visão do tecido preto de seu vestido recém-tingido foi se nublando e ela novamente passou a mão sobre os olhos. — Não por ele. 

O pai aguardou por alguns instantes e Irina havia secado as lágrimas, mesmo que não adiantasse muito, pois ainda haveria mais. 

— Você está sentindo, sim. — Ele se afastou um pouco dela e apontou para as lágrimas que voltaram a descer, secando algumas. — E o que importa é o quanto você o amou durante a vida. O depois… — Antônio hesitou, olhando para o livro em seu colo e a atenção dela acabou seguindo a mesma direção. — O depois o tempo dirá, minha filha, o tempo dirá… 

Ele soltou um suspiro para o ar e calou-se por mais de um minuto inteiro. Irina deixou que o pai tomasse seu próprio tempo em silêncio e somente enxugava lágrimas vez ou outra. 

— Vocês não mereciam passar por isso, nem você e nem nenhum de seus irmãos — Antônio declarou quase sussurrando. 

— Ela é cruel e injusta — Irina repetiu por sabe-se lá qual vez, pressionando os dentes com força.

— Não, minha filha, ela está fazendo justiça. É cruel, sim, uma crueldade sem tamanho punir uma criança… — Ele parou, tomando uma longa lufada de ar. — Mas nós começamos isso. Nossos antepassados, a sua crueldade, o seu egoísmo… Nós pagamos por erros que não são nossos e que nunca mais devem ser repetidos por alguém com o sangue dos Gutiérrez nas veias — ele terminou de forma rouca e Irina pôde sentir que o pai também tinha sua dose de raiva. Cada um tinha sua forma de manifestá-la. 

Antônio soltou a filha e se levantou, o livro em mãos. Caminhou alguns passos para o meio do terraço e atirou o objeto ao chão. Irina podia somente ver as costas do pai em seu casaco champanhe com a fita preta presa a uma das mangas. Ouviu um ruído de fósforo sendo riscado e ele se afastou. O livro queimava. 

— Essa maldição acaba conosco, acaba nesta geração. — O Sr. Gutiérrez caminhou até o banco e parou ao lado dela. Deu outra longa respiração. — Estevão já se foi?

Irina tirou os olhos do fogo, o cheiro de queimado começando a atingir seu nariz. Tomou alguns instantes para processar a súbita mudança de assunto. 

Estevão, Isaac e Antônio passaram boa parte do dia trancados dentro do quarto que fora de Ezequiel, e onde ela não fora permitida entrar enquanto eles preparavam o corpo e o banhavam com as ervas para o funeral que seria no dia seguinte. Talvez tivesse sido o ideal, pois não tinha ideia de qual seria sua reação se visse… 

— Ele partiu há alguns minutos. Disse que iria para casa tomar um banho e vestir roupas limpas. 

Antônio assentiu, encarando o livro em chamas, que deram um estalo. 

— E Isaac?

— Ele saiu. 

— Para onde? 

O rosto de Antônio se voltou para o da filha e a resposta pairou no ar entre eles. Ele murmurou algo incompreensível e virou as costas. 

— Para onde o senhor vai? — ela perguntou. 

— Buscar o seu irmão, não vou deixá-lo se afogar em um copo de bebida. Não quando eu estou aqui. 

Irina assistiu-o sair pelas portas abertas, sequer precisando perguntar para saber onde o filho estava. Considerando o que Estevão lhe dissera certa vez, quando se encontraram na casa de chá, era de se supor onde ele estava. E caso não… Talvez o pai tivesse de procurá-lo pela noite. 

Ela suspirou, sentindo o forte cheiro de queimado e vendo a fumaça subir em direção ao céu estrelado, o livro que dera início a todo aquele sofrimento tornando-se cinzas. Entendia muito bem porque o pai decidira dar um fim naquilo. 

— Mãe-toda-poderosa, o que está acontecendo aqui? Que cheiro de queimado! — Beatriz apareceu pela porta aberta e deu alguns passos no terraço, uma mão em frente ao nariz. — Quem foi o louco que fez isso?! — ela exclamou e virou o rosto para trás. — Tragam água! 

— Feche a porta se o cheiro a incomoda. — Irina se pôs de pé, caminhando em direção à mãe. — Esse livro deve queimar. 

A mãe voltou o rosto novamente em direção ao terraço, a mão ainda tampando o nariz. Os cabelos loiros estavam presos em um coque simples e apertado e trajada em um vestido preto, também tingido às pressas. O rosto tinha uma leve maquiagem, era visível mesmo sob a luz da lua cheia, e Irina se perguntava se a mãe tinha chorado alguma vez durante o dia e tentava esconder as marcas com a maquiagem. Se perguntava qual tinha sido a reação dela ao que acontecera, pois mal se lembrava de tê-la visto em suas memórias borradas da madrugada e também não a encontrara durante o dia, mal tendo saído do quarto. 

— É claro que isso tinha de ser obra sua — Beatriz riu. 

— Aquele foi o livro que deu início a tudo isso, ele deve queimar — Irina devolveu, cada uma de suas palavras soando ríspidas. Ouviu um outro estalo do fogo às suas costas. 

— É claro que tinha de ser obra sua — Beatriz repetiu, deixando que a mão saísse de frente do nariz e fazendo uma careta. — Tinha de ser você, Estevão e seu pai para acreditar nessa besteira de maldição. 

Irina decidiu que o melhor era não insistir em uma discussão, e nem tinha forças para isso, e estava pronta para partir para o próprio quarto, porém a mãe segurou seu braço. 

— Agora pode passar a se comportar como uma dama daqui em diante? Seu irmão se foi e você tem de se preparar para o papel que irá assumir como a esposa do herdeiro dos Salazarte. — Irina piscou algumas vezes após a declaração da mãe, tentando processar se estava mesmo ouvindo aquilo. — O casamento deverá acontecer daqui alguns meses e temos muito para preparar. 

— Como… — ela começou e parou, ainda tentando lidar com o que a mãe estava dizendo. — Como consegue pensar nisso quando seu filho acabou de morrer?! 

Beatriz fez outra careta e, quando respondeu, sua voz saiu baixa e séria: 

— Todos nós sabíamos que uma hora ou outra iria acontecer. — Balançou a cabeça, o fogo ainda estalando perto das duas. — O funeral será rápido. 

— Ele era seu filho! — Irina gritou no meio da noite, não conseguindo se conter. 

— Ele era uma criança defeituosa que a Mãe fez que viesse de mim! — Beatriz bateu contra o próprio peito. — Isso é tudo culpa do seu pai, pois veja só! — Ela apontou com a mão para a filha, que a encarava com os punhos cerrados, os lábios em uma linha fina. — Os dois filhos que saíram a cara dele são uma perfeita decepção, enquanto os que se parecem comigo… 

A Sra. Gutiérrez tentou se aproximar para tocá-la, porém Irina se afastou bruscamente. 

— Eu não tenho nada seu! — ela soltou entredentes. 

— Não? — Beatriz soltou a pergunta junto de uma risada. — Já se olhou no espelho, querida? Você é uma cópia quase perfeita de sua mãe na juventude. É uma pena que não tenha a mesma sagacidade para se comportar feito eu. — Ela pareceu tentar se aproximar outra vez, porém parou. — Para sua sorte, você tem a mim como mãe para encaminhar a vida para você. 

— Eu te odeio — Irina disse em um quase sussurro, sentindo os dentes doerem com a pressão que fazia. 

Apesar do volume com que a frase foi dita, Beatriz pareceu ter compreendido muito bem, qualquer sombra de sorriso ou riso desaparecendo de imediato. 

— Criatura ingrata. — A Sra. Gutiérrez subiu a voz na última sílaba. — Eu a botei neste mundo e o que você faz para me agradecer? Para agradecer por dar um casamento perfeito a você? — Ela suspirou. — Às vezes eu penso que deveria ter trancado a porta para Antônio depois do nascimento de Isaac, mas não, não! — Ela outra vez ergueu a voz, daquela vez não abaixando-a de novo. — Eu tinha de ser tola o suficiente para pedir por mais filhos! 

— Eu a odeio — Irina afirmou mais alto dessa vez. — E a partir do momento em que eu partir dessa casa, estará morta para mim.  

Ela deu as costas para a mãe e guiou os passos para fora do terraço, coisa que deveria ter feito há um bom tempo. 

— Criatura ingrata! — Beatriz gritou. 

Irina ainda foi capaz de ouvir perfeitamente a voz da mãe, porém preferiu ignorá-la. 

Como alguém…. Como alguém poderia ser tão narcisista e egoísta ao ponto de se importar apenas consigo mesma quando um dos filhos acabara de morrer? Irina nunca entenderia a mãe, e preferia nem o fazê-lo. O melhor a fazer era esquecê-la o quanto antes. 


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