Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 55
Capítulo LV




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O ponto brilhante ainda chamava sua atenção, perdendo-se de vista entre as árvores. Betina havia deixado há muito a proteção do próprio quarto para observá-la de mais de perto. Sim, porque sabia que aquele ponto era uma fada. Como e por que aparecera ali, não podia dizer, apenas tinha certeza de que era. 

O sol começaria a surgir dali alguns minutos e a fazenda ainda estava toda desperta. 

Os empregados se desesperaram com a perspectiva de haver um assassino na fazenda e a polícia mundana seria chamada assim que amanhecesse. Isso é, seria chamada se os bruxos não intervissem. Apesar de não haver provas de quem havia matado Saul, o palpite de todos os bruxos que estavam presentes naquele lugar era apenas um: Isabella Tremonti. 

O corpo de seu marido fora trazido antes da meia-noite e repousava na cama, no quarto que pertencera a ele. Dali algumas horas, alguns bruxos também chegariam para ajudá-la a preparar as ervas para que o corpo pudesse ser cremado para o funeral ainda naquela semana. 

Horas depois, ainda não sabia como se sentir. Deveria sentir a dor da perda, afinal, seria impossível perder alguém com quem conviveu por dez anos e não sentir nada a respeito disso, porém, era como se ainda estivesse um tanto entorpecida demais. Da mesma forma que ficara quando perdera a mãe e o irmão no começo daquele ano, era como se não conseguisse lidar, não conseguisse processar o que estava acontecendo. Em certos momentos, perguntava-se se tinha perdido a capacidade de sentir. 

O ponto desapareceu por alguns instantes e reapareceu, parecendo se aproximar. 

Não conseguindo ficar muito tempo no quarto que fora de Saul, Betina buscou refúgio no berçário, onde sua filha dormia serenamente, alheia a tudo o que estava acontecendo. Às vezes era invejável ainda possuir inocência. Fora lá que vira a fada pela primeira vez. Questionava-se se ela também era capaz de vê-la, pois devia fazer mais de duas horas que esperava à distância. 

Betina cedeu e não só saiu da casa como começou a se aproximar das árvores ao leste. 

― O que você acha que está fazendo? ― Tibério questionou às suas costas. Ela virou o rosto para trás, vendo-o se aproximar enquanto tirava uma mão de dentro do casaco e a outra segurava um lampião. ― As buscas não acabaram, a criatura ainda pode estar à solta na fazenda.

Betina voltou o rosto para o ponto brilhante, que continuava no mesmo lugar. 

Havia a grande possibilidade de que àquela altura Isabella estivesse bem longe dali, considerando o tempo que deveria ter se passado entre sua fuga ― ou Saul planejava tirá-la de lá? ― do monólito largado aberto, portanto, os bruxos se dividiram outra vez em grupos para buscas em regiões próximas, sob o comando de Inácio, durante a madrugada e somente meia dúzia ainda permanecia na fazenda. Para os mundanos não havia mais o que procurar e o melhor era serem discretos. 

― Ela parece estar querendo se comunicar ― a Sra. Tremonti respondeu, apontando com a cabeça na direção da fada. 

― Sim, eu estou vendo ― o avô retrucou, alcançando a neta. ― E nossas portas estão abertas, se ela deseja conversar. ― Ele colocou uma mão sobre seu ombro. ― Volte para dentro, Tina, é perigoso ficar sozinha aqui fora enquanto esse problema não for resolvido. 

— Não — disse simplesmente e aguardou pela reação do avô. Ele não mostrou surpresa, apenas suas rugas evidenciadas pelo franzir da testa. Não devia ter gostado nem um pouco de ter sido contrariado. — Não nós afastaremos muito da casa e sentiremos caso Isabella se aproxime. — Betina saiu do toque dele e começou a caminhar em direção ao ponto brilhante. — Ela deve ter algo importante para comunicar, se está aqui há tanto tempo — continuou, ouvindo que o avô resolveu segui-la. 

Os passos faziam barulho sobre a grama seca e foram se embrenhando por entre as árvores. Se bem se recordava das direções da fazenda, se seguissem por ali por alguns quilômetros, chegariam ao rio no fundo da propriedade. Em outras direções, viam somente campo aberto, as parreiras à distância e a linha de casas na direção oposta. Betina partira primeiro, porém Tibério insistia silenciosamente em manter-se alguns passos à frente, a mão com o lampião estendida para iluminar onde pisavam e a outra contra o peito. 

O ponto brilhante transformou-se para a forma esguia e alta de uma mulher, os cabelos loiros pálidos escorridos por seu vestido cor de vime, além de serem adornados por uma coroa feita de vinhas e somente três petúnias. 

— O que deseja? — Tibério soltou a pergunta antes mesmo que eles chegassem a ela. 

Os bruxos e a fada mantiveram um pouco mais de um metro de distância entre si. A fada analisou-os com um olhar penetrante e, quando os olhos ciano dela fixaram-se nos seus, Betina viu um sorriso se formar. 

— Bruxos — ela saudou com uma reverência um pouco destoante, curvando parte do tronco. — Isabella Tremonti precisa de vocês para terminar o que o irmão dela não teve coragem. 

Betina virou o rosto na direção do avô, vendo-o encarar fixamente a fada. A mão sobre o peito parou de segurar o casaco e foi levada para trás das costas. 

— Não era mais fácil pedir a um bruxo qualquer, senhorita, hm? — ele atirou com desconfiança. — Você conseguiria sentir que era um de nós e não um mundano que estava passando por perto, não era mais sensato pedir a um jovem do que a um senhor e uma mulher? 

— Não é a eles que a Luz quer — ela respondeu. — Ela quer a garça e o javali mais uma vez, para terminar o que deveria ter acabado. — Betina tentou trocar olhares com o avô, em uma muda pergunta do que a fada poderia estar falando, mas não conseguiu. — Se Ela quer vocês e não eles, é por algum motivo. Eu apenas cumpro. Sigam-me. 

A fada transformou-se para sua forma diminuta e começou a voar para longe. Betina ia partir atrás dela, porém Tibério segurou seu braço. 

— Isso não me parece sensato — ele comentou e o ponto parou de se mover, percebendo que não a acompanhavam. — Há algo de estranho em como as coisas estão sendo conduzidas, Tina. 

— Isabella amava as fadas — Betina tentou convencê-lo, mesmo que "amar" fosse uma palavra muito forte, pois não conhecia de fato a jovem que deveria ter sido sua cunhada. — Se ainda resta alguma sanidade nela, é compreensível que procure pelo que conhecia e pelo que era querido por ela. Por aquilo que traria algum conforto com tanto medo que ela deve estar sentindo. 

Tibério soltou a neta lentamente, ainda parecendo relutante, e observou a fada ainda os assistindo de longe. 

— Fique perto de mim — ele orientou e prosseguiu. 

A fada continuou a guiá-los como um ponto de luz entre as árvores, o céu começando a clarear e adquirindo tons alaranjados, se despedindo da noite. 

Tibério não tirava uma das mãos do peito, enquanto a outra ainda segurava o lampião que ia perdendo cada vez mais sua utilidade conforme a manhã se aproximava. Betina percebera muito bem o que ele guardava lá desde que se aproximara dela. A discrição parecia ter sido esquecida naquela situação. 

Tibério começou a diminuir o ritmo de suas passadas, sendo o primeiro a sentir o cansaço pela longa caminhada. Betina acabou acompanhando o gesto, enquanto a fada continuava sempre à frente.

O céu continuava a clarear, mas lá embaixo a luz não conseguia dissipar o sentimento de desespero que começava a abraçá-los. Betina se aproximou mais do avô, não somente para tentar ampará-lo. Tibério estava quase parando de caminhar. 

— É isso que seu marido tinha coragem de esconder nessa fazenda, Tina, sente? — ele murmurou. A fada mudou para sua outra forma e eles não conseguiram perceber. O ar parecia denso e a cabeça começava a pulsar como se a pior das enxaquecas estivesse para vir. — É isso que leva à loucura quem ousa se arriscar em um acordo com a Sombra. Ou a magia Dela o destrói de dentro para fora ou irá enlouquecê-lo. 

O Sr. Salazarte segurou com força o braço da neta. Ela tinha certeza que não era somente pelo seu senso de proteção, pois ele parecia vacilante demais. 

— Foi aqui que tudo aconteceu — a fada explicou, apontando para frente com a cabeça. 

O caminho que percorreram parecia nunca mudar, contudo, ali o ambiente contava uma outra história. No chão restavam toco de árvores e o espaço aberto mostrava o céu do início de uma nova manhã. Tibério parou e apoiou a mão sobre um dos troncos. Betina sentia subir uma súbita vontade de sugerir para que voltassem, mesmo ela não estando lá instantes antes. 

— Saia das sombras, Isabella — a fada disse para o nada. 

— Vô! — Betina exclamou ao vê-lo quase ceder ao chão. Passou os braços ao redor de seu tronco. 

Uma forma esquálida se agarrou a um dos troncos carcomidos por cupins que ainda restavam. Betina elevou os olhos para lá, sentindo a garganta se apertar. Sabia que aquilo era efeito da Sombra contra a sua natureza, querendo rejeitá-la, mas uma parte sua também queria acreditar que aquela sensação era por aquela figura miserável que se arrastava na direção deles. 

— Deixe-me ir — ela pediu, em um gorgolejo do fundo da garganta. — Liberte-me Dela. — Isabella arrastou os pés, correntes envolvendo-lhe os pulsos. O que Saul tivera coragem de fazer com aquela pobre criatura… 

Betina sentiu a cabeça latejar como se uma forte pressão a empurrasse para os lados. Teve de usar suas próprias forças para que o avô não caísse ao seu lado, as mãos trêmulas dele buscando o objeto que tentara esconder em seu casaco. 

Sanguis sanguinis mei, essentia essentiae meae, sume vires et virtutem meam — Betina começou a recitar, sentindo que era ela quem cederia dali a pouco. Mas não era ela quem mais estava precisando de forças. Ele estava com a arma para matar o que precisava ser morto e, não sabendo como usá-la, restava-lhe tentar transmitir o que restava de suas forças e magia para o avô. 

— Deixe-me ir! — Isabella exclamou e quase se jogou na direção deles. 

Tibério ergueu a mão e a neta sentiu que iria desabar, suas forças sendo aos poucos transferidas para ele. Que conseguisse aguentar apenas mais um pouquinho…

Sanguis sanguinis mei, essentia essentiae meae…

A voz suave de Betina continuava a murmurar, sendo abafada por um estouro quando o disparo da pistola invadiu os tímpanos de todos. Uma mancha escura se formou no vestido puído de Isabella, não restando sequer sangue carmim para escapar da ferida. 

Tibério abaixou a arma e usou o outro braço para amparar a neta, o aperto dela ao redor dele se afrouxando aos poucos. A mancha negra que tomava conta da frente do vestido de Isabella foi se espalhando, atingindo seus membros e adquirindo o mesmo tom de morte que quase tomara conta do braço de Leonardo. Quando as manchas começaram a rachar e se transformar em pó, Betina sentiu que podia respirar de novo, sequer tendo percebido que começara a prender a respiração. 

— A alma corrompida pode à Terra retornar — a fada declarou, abaixando-se para encher as mãos com as cinzas. 

Ela atirou-a aos céus, um vento súbito levando-as para longe. 


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