Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 44
Capítulo XLIV




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Bergoy bateu a ponta do charuto contra o cinzeiro e Matias batia as pontas dos dedos contra o vidro do copo, do qual não conseguira beber um simples gole desde que o amigo o oferecera. 

― Em minha sincera opinião, meu amigo ― o dono da casa começou ―, você deveria desistir de uma vez dessa mulher. 

Matias negou com a cabeça e tentou beber um pouco do conhaque que tinha em mãos. Somente deixara o líquido tocar-lhe os lábios, porque parecia que não iria descer. 

― A prova final para isso é a forma veemente que ela negou o seu pedido. 

― Eu não vou desistir de Irina dessa forma. ― Percebendo que realmente não iria conseguir beber nada, Salazarte pousou o copo sobre a mesinha que separava as duas poltronas no escritório de Bergoy. ― Ela não merece passar por isso. 

― E ela acredita que você não merece passar uma vida de sofrimento ao lado dela. ― Katsaros riu. ― Ah, meu caro, essa sua alma romântica ainda o fará sofrer como uma personagem de uma tragédia. Quem de nós estaria disposto a se unir com uma mulher amaldiçoada, mesmo quando ela própria tenta afastá-lo?

― Você está a resumindo à maldição de seu sangue, quando sabemos que Irina é muito mais do que isso. 

Bergoy ergueu os olhos do cinzeiro para o amigo ao seu lado, um sorriso divertido se formando em seus lábios cheios ao analisá-lo. 

― Desculpe, meu amigo, não quis ofender. Apenas quero trazer um pouco de razão ao seu problema. 

― E qual poderia ser a razão? Esquecê-la? O próprio irmão dela não me deixaria fazer isso. 

Fora quase um milagre ter conseguido convencer Isaac a esperar um pouco mais por uma resposta da irmã. Usara como argumento que ela estava um tanto confusa demais sobre os próprios sentimentos e que precisaria de alguns dias para pensar melhor. Gutiérrez aceitara, afinal, ao menos estava cumprindo sua parte. Quando o prazo acabasse ― ou quando a paciência de Isaac se esgotasse ― é que as coisas ficariam tensas outra vez. Mais para ela do que para ele, e não queria deixar que isso acontecesse, porque já estavam tensas o bastante. 

― Nisso você tem um ponto, aquele irmão dela é um estorvo ― Bergoy opinou. ― Mas nada que não possa ser comprado com algum esforço, você não acha? Isaac ambiciona uma vaga no Conselho e se formos capazes de enganá-lo para acreditar que vamos mover alguns ventos a favor dele...

Matias bufou, incomodado com a sugestão. 

― Ora, sejamos racionais, meu amigo, veja o tanto que você teria a perder com esse casamento. Estamos falando dos Gutiérrez, com um filho amante de mundanos, o outro um beberrão sem modos, uma mãe faladeira e negócios que são motivos de chacota, o que você teria a ganhar com essa união? ― Katsaros continuou, mesmo que o convidado encarasse o piso de seu escritório com um olhar matador. ― Veja eu e Rebeka, por exemplo. Não temos um casamento com essa paixão que você idealiza, mas ao menos nos damos bem e temos uma convivência bastante agradável. Por que perder tudo isso por um casamento com alguém como Irina?

― Nem tudo em nossas vidas precisa ser resumido a um quid pro quo, Bergoy ― Matias arrematou amargo, curvando as costas e apoiando os antebraços sobre os joelhos. 

― Bem, se pensa dessa forma, então temo que meus conselhos sejam inúteis. ― Katsaros soltou uma baforada para o ar, vendo a vela em uma das paredes iluminar a face do outro. ― Porém, acredito não ser apenas isso que está o deixando dessa forma, estou certo? Porque a outra opção que resta é acreditar que você planeja parar de seguir até mesmo a moda e deixar uma barba crescer. 

Matias deixou as mãos escorregarem pelas pernas e retomou um pouco de sua postura na poltrona. 

― Conseguiu descobrir algo sobre Baltazar? ― Salazarte mudou de assunto para outro dos pontos que assombrava seus pensamentos.  E o pior de todos, que mal o deixava dormir desde a noite anterior. 

Desde que voltaram para casa, Leônidas e Matias mal conseguiram encarar um ao outro. Um provavelmente pela vergonha, mesmo que nem a morte o fizesse admitir aquilo; o outro porque não sabia com que olhos ver o pai. 

Uma coisa era acreditar que o pai pudesse ter traído, enganado ou usado de qualquer artimanha tão comum entre alguns membros do Submundo, mas assassinato? E concretizar outro, premeditado ainda por cima? Motivo nenhum no mundo justificaria uma escolha daquelas.

Não, ele não iria colaborar naquele plano, de jeito nenhum. Devia haver alguma outra forma de lidar com Baltazar. 

― Um sujeito perigoso, esse que sua irmã foi se envolver ― Katsaros começou. ― Há alguns meses tem se juntado a Hugo Brontes e seus amigos e você sabe a índole dessas pessoas... ― Balançou a cabeça, afastando o charuto dos lábios. ― Sei que ele trabalha como ajudante de um ferreiro, mora na entrada de um bairro cheio de lobisomens, mesmo não sendo um lobisomem puro, não é lá muito querido pelos vizinhos… Porém, não foi isso que me surpreendeu. ― Ele deu uma pausa um tanto dramática. ― Baltazar é irmão do lobisomem condenado por matar sua mãe, Matias. 

A informação não produziu nenhum efeito em Salazarte, pois o impacto principal o atingira na noite anterior. E fora quase o de menos a ser processado no meio de tanta coisa. 

— Acho que fica um tanto claro para nós o que ele planeja fazer ao se aproximar de sua irmã. — Katsaros soltou para o ar, junto de uma baforada. — Uma atitude muito baixa, devo dizer, Matilda ainda é tão jovem… 

Matias fechou os olhos, cortando qualquer visão do escritório escurecido e avermelhado pelas chamas das velas. 

Todos eles estavam envolvidos numa teia de vingança por culpa de Leônidas. A Sombra cobrara pela escolha de Inês enquanto ela ainda era viva, no entanto, a vida — e Baltazar — não haviam se satisfeito em ver os Salazarte perderem dois membros de sua família. 

Se os segredos de seu pai viessem à tona poderiam colocar tudo a perder e agora ele estava envolvido nisso. Sair da sombra da ignorância tinha um peso que nunca iria imaginar. 

Se Bergoy estranhou não ver nenhuma grande reação no amigo, não foi capaz de saber, pois uma batida soou na porta do escritório e o mordomo apareceu. 

― O jantar está pronto para ser servido ― o empregado anunciou. 

Katsaros apagou o charuto no cinzeiro com movimentos curtos e encarou o amigo, que somente endireitara-se melhor no assento, mantendo os modos. 

― Conhecendo-o como conheço, meu caro, sei que precisará de algum tempo para absorver essa informação. E que voltar para casa tão cedo talvez não seja uma opção que você irá querer. ― Ele se levantou, fazendo um gesto de cabeça para o mordomo, que se retirou para cumprir a ordem silenciosa. ― Gostaria de ficar para jantar?

A resposta de Matias foi somente colocar-se de pé. 

 

 

Matias ergueu a vela para observar melhor o rosto no espelho. Seu estado de espírito estava transparente para qualquer um que o visse, como se ser um livro aberto na mão de algumas pessoas não fosse o bastante. 

Caminhou com o objeto em suas mãos até pousá-la sobre sua mesa de cabeceira. Sentou-se sobre a cama, bem onde tinha largado seu casaco, porém pouco se importou. 

Sua vontade era de desabar sobre o colchão, contudo, conseguira gastar alguns minutos para se cuidar ao menos um pouco. Mesmo que continuasse sem ânimo para sequer se barbear. 

Que vinte e quatro horas foram aquelas… A vida jogara em seu colo tudo o que estivera procurando naquelas últimas semanas, mesmo que não fosse da forma que imaginava. 

Nunca esperaria ouvir aquele relato de seu pai e não esperava… Não esperava que fosse ter Irina em seus braços e muito menos que fosse provar o sabor que era beijá-la. 

Fora como ver os sonhos que eram seu bálsamo nas últimas semanas tomarem forma na realidade. E materializarem-se na forma de uma mulher que conquistara seu coração de todas as formas. 

Ela era de uma intensidade quase demais para ele, e a forma com que se agarrara a ele após se aproximar dela com tanta delicadeza era somente uma prova disso. Ela amava intensamente. Passava por cima das próprias convicções por amor ao irmão e, por amor, tentava afastá-lo dela por medo de vê-lo sofrer. 

"É por amá-lo que não quero vê-lo sofrer dessa forma", se lembrava exatamente das palavras dela. Irina o amava e, se não fossem as circunstâncias que os envolviam, aquele teria sido um dos momentos mais felizes em meses na sua vida. 

Ela o amava e, por isso, negava o pedido para tornar-se sua esposa. Preferia sofrer sozinha para evitar que ele sofresse junto dela. Mas como escapar do sofrimento se ele já estava por todos os lados? 

A porta de seu quarto foi aberta de supetão, mostrando a figura esguia de seu pai com a mão na maçaneta e uma vela na outra. Os dois se encararam, as feições cansadas e — talvez fosse a primeira vez que reparava naquilo — com algumas marcas de expressão de Leônidas evidenciadas pela chama avermelhada. 

— Pensei que não estivesse em casa — o pai comentou. — Acreditei que não fosse retornar tão cedo, já que não apareceu para o jantar. 

— Não tenho mais assuntos para resolver naquele lugar, então não tenho mais motivos para sair no meio da noite — retrucou frio, ficando bem claro o que era "aquele lugar" a que se referia. Ficou de pé e pegou o casaco, indo pendurá-lo em um dos três cabides perto da bacia para fazer sua toalete. — Jantei na casa de Bergoy. 

— Espero que não pense em insistir na ideia tola de voltar para lá e tentar dialogar com Baltazar, como parecia que você planejava fazer — Leônidas provocou, estático sob o batente da porta. 

— Ao menos eu não estaria quebrando nenhuma lei.  — Matias jogou um tanto sarcástico, tão fora do seu habitual. Ao menos para quem não conhecia as facetas que sua raiva fria poderia esconder. — Ou nos colocando ainda mais em risco. 

— Deixe de agir feito uma criança! 

— Seria infantilidade recusar-me a tomar parte em um crime? — Matias arrematou, desabotoando os primeiros botões de sua camisa, de frente para o espelho. 

Leônidas calou-se, ainda pálido feito a cera da vela. 

— Deixe-me com minhas questões e foque-se em lidar com as suas — o médico disse, afastando-se para o corredor e recusando a não ter a última palavra naquela discussão. 

Matias saiu do quarto, somente assistindo o pai ir se afastando junto do ponto de luz em direção às escadas. Fechou a porta que ele deixou aberta, soltando uma longa e lenta respiração. 

Caminhou com passos cansados novamente em direção à cama, onde sentou-se. Fechou os olhos outra vez, ficando um pouco no escuro. 

Estava completamente perdido entre os dilemas do coração e os dilemas familiares. 

Abriu os olhos e abaixou-se para retirar os sapatos. 

Não havia como deixar o pai com "seus próprios problemas" se eles envolviam a família toda. E não sabia como fazer para resolvê-lo. 

Tirou os pés de dentro dos sapatos e deixou-os abandonados de qualquer jeito, seus olhos parando na vela sobre a mesa de cabeceira, pingando uma gota de cera sobre a madeira. Ali… 

Aquela história ainda não estava totalmente esclarecida.

Abriu a gaveta, encontrando a caixa de jóias da tia, abandonada desde que a recuperara, algumas semanas antes, porque não tinha coragem de olhar para aquele pingente e pensar no que aquilo poderia significar. 

Depois do dia anterior, não podia mais ficar sem respostas. 

Calçou novamente os sapatos e pegou a caixa nas mãos, saindo do quarto mesmo na casa mergulhada em penumbra. Desceu as escadas e analisou o primeiro andar, sendo um pouco óbvio para qual cômodo ir primeiro. 

Atravessou o corredor até alcançar o escritório do pai e, após uma batida na porta, mexeu na maçaneta para abri-la. Do lado de dentro, deparou-se com a figura dele em frente a uma das estantes de livros sobre ervas e propriedades, em posse da mesma vela. 

— O que foi? — o mestre de poções perguntou. 

Matias somente fechou a porta atrás de si e encaminhou-se direto para a escrivaninha. O pai o acompanhou, trazendo junto de si a luz. A caixa de jóias foi posta sobre a mesa e empurrada na direção do dono do escritório. 

Leônidas ficou lívido e Matias assistiu-o calado. A intensidade da clareza no rosto dele foi diminuindo conforme a vela foi se afastando, até ser posta sobre a mesa. Chegando até mesmo a se atrapalhar com o fecho, o médico abriu a caixa de jóias. 

— Lembro-me que o senhor deu um colar como esse à minha mãe, mal me lembro de tê-la visto tirá-lo alguma vez — o filho começou, tateando por onde era a intenção de chegar. 

— Onde conseguiu isso? — Leônidas inquiriu, pegando justamente o colar citado. A corrente de ouro enroscou-se por entre os dedos finos e longos.

― Quando visitei Rui ― Matias respondeu. ― Os pertences de tia Inês continuam todos lá.

― Deveria ter deixado onde estava. ― O médico atirou o colar de volta para a caixa de jóias e bateu a tampa com força, encarando o filho, como se evitasse olhar para lá. ― Se ninguém tocou no que era dela foi por um motivo.

― Foi porque o senhor não queria que soubéssemos quem deu esse colar a ela? — ele arriscou, vendo a face do pai contorcer-se ainda mais em assombro. — A resposta é óbvia, minha mãe usava um igual.

― Não invente tolices, Matias, esse colar pode ter sido dado a ela por qualquer bruxo.

― Mas não seria coincidência demais ela ter ganho um igual ao de minha mãe?

De fato, quando se colocava a possibilidade em jogo, não havia nada que provasse quem havia presenteado Inês com aquele colar. Contudo, considerando os fatos que tinha nas mãos, a teoria ainda não podia ser descartada.

― Não ouse pôr em xeque a minha fidelidade à sua mãe! ― Leônidas quase berrou no silêncio da noite.

— Então quem deu este colar a ela? — Matias emendou direto, mal deixando o pai respirar ou o silêncio cair. 

— Como espera que eu saiba? — ele devolveu, quase trincando os dentes. — Sua tia nunca se casou, nunca ficou noiva, como eu poderia saber?! 

Matias soltou uma longa respiração pelo nariz, recusando-se a recuar. 

— Então por que o senhor pareceu trêmulo ao pegar o colar nas mãos? 

No mesmo instante, a testa de Leônidas franziu visivelmente. 

— Saia — ordenou com uma única palavra. 

— Eu mereço satisfações! 

— Eu não te devo satisfações sobre o meu passado! 

Tomado pelo ardor da fúria, Leônidas nem percebeu que estava se entregando com as próprias palavras. Matias o encarou fixamente, recusando-se a sequer se mexer. 

— Quando seu passado é o responsável pelo que está acontecendo com a nossa família, então eu mereço satisfações. — Leônidas passou a língua pelos dentes, parecendo ponderar as palavras dele mesmo em meio à fúria. Matias continuou a não dar tempo para que pudesse pensar. — Quem deu esse colar? 

O médico respirou fundo, encarando a caixa de jóias iluminada pela luz da vela. Os desenhos graciosos feitos por Brigite ganhavam evidência na claridade. 

— Isso foi antes — o pai começou e pausou, tomando tempo para engolir. Parecia ainda mais hesitante do que uma noite antes. — Antes que eu me casasse com sua mãe. 

Houve outra pausa, mais longa que a anterior. Temendo que o relato parasse ali, Matias tentou conduzi-lo. 

— O que houve para que os dois não ficassem juntos? 

Leônidas esqueceu a visão da caixa, virando o rosto na direção do filho. Diferente de instantes antes, onde as réplicas vinham no mesmo instante, as frases pareciam difíceis de sair. Ao menos aquilo não era surpreendente, pois nem mesmo o orgulho parecia capaz de ser mais forte do que a barreira que ele usava para segurar os próprios sentimentos. 

— Sua tia fez o acordo com a Sombra e se recusou a aceitar o meu pedido de casamento, temendo as consequências que poderiam vir sobre ela. — Assim que as palavras ganharam vida através da voz do pai, foi a vez do rosto de Matias tornar-se lívido. — Inês temia que eu fosse ser afetado junto dela e temia pela irmã. 

O presente repetia o passado, a vidente dissera. O presente parecia repetir cada uma das linhas do passado.

Leônidas suspirou, entregando outro olhar contemplativo para a caixa de jóias. Matias quase perdeu completamente o foco, a raiva sendo soterrada pelo espanto. 

— Sua mãe era apaixonada por mim desde que me viu pela primeira vez, todos sabiam, ela não conseguia esconder  — o médico continuou, parecendo, como na noite anterior, ter decidido contar tudo de uma vez depois de ter começado. As frases ainda travavam antes de sair, contudo, podiam demorar o tempo que fosse, pois Matias parara de tentar conduzir qualquer coisa que não fosse os próprios pensamentos. — Após a minha última tentativa de pedir Inês em casamento, ela me propôs que eu me casasse com a irmã em seu lugar e a tirasse daquela casa. Sua mãe perceberia quando ela começasse a ser afetada pela Sombra, se convivessem tão de perto. 

— E aceitou a proposta mesmo amando a outra? — Matias inquiriu em um sussurro, tão diferente da voz firme que estivera usando até então. 

A atenção do pai foi trazida para ele, enquanto seus dedos da mão esquerda tocaram a borda da caixa e pareciam se recusar a soltá-la. 

— Eu sabia que não conseguiria amar outra mulher daquela forma — ele pausou, ruminando as palavras brevemente. — E ao menos um dos dois lados estava apaixonado. 

E ainda estaria cumprindo o pedido da mulher que amava… 

Matias encarava o pai como se estivesse vendo um desconhecido à sua frente. O mesmo Leônidas que parecia travar uma luta interna toda vez que precisava expressar algum sentimento, que sabia apenas transmitir carinho em gestos e presentes, que parecia vestir uma armadura fria o tempo inteiro… Ele amaria alguém daquela forma? 

Considerando o que fizera por Inês e estava disposto a fazer pela família, o "sim", por mais estranho que soasse, era a única resposta. Leônidas parecia disposto a qualquer consequência por quem amava. 

— Eu e Inês rompemos qualquer possibilidade de laço romântico assim que eu e sua mãe firmamos o noivado, satisfazendo suas dúvidas — o médico finalizou, já que Matias ainda absorvia calado. — Eu nunca a traí. 

— Mas nunca deixou de amar a outra — o filho murmurou em uma afirmação. 

Passaram-se segundos, até que somente uma única palavra tomasse forma: 

— Não. 

Pela primeira vez, Matias dirigiu um olhar envolto em pena para o pai. 

Os erros ainda pesavam sobre as costas dele, as consequências de seus atos ainda perseguiam a família e os colocavam à beira do precipício, no entanto, não podia negar que o entendia. 

Entendia o sofrimento dele muito bem. 

Leônidas se afastou, indo pegar a garrafa novamente cheia em um dos nichos da estante. 

— O presente repete o passado… — Matias murmurou para si. 

As palavras da vidente pareciam marcadas em sua mente como se tivesse acabado de ouvi-las. No fim das contas, ela não dissera nenhuma mentira. Tudo parecia se fechar naquela profecia confusa. 

Eram Inês e Brigite, mas também eram Irina e Ezequiel. E o ciclo quebrado, pois Irina recusara-se a negociar com a Sombra, apesar de tentador. Eram Inês e Leônidas, mas também eram ele e Irina. E, daquela vez, o final parecia se desenhar da mesma forma. 

— O que você quer dizer com isso? — o médico questionou, trazendo a garrafa para a mesa. 

Matias engoliu em seco. Seu pai tratava o caso de Ezequiel há um ano inteiro e, se realmente não havia nenhuma solução… 

A memória daquela tarde com Irina voltou mais forte do que nunca. Fria pelo temor do que o futuro reservava para todos. 

— Irina descobriu o que há com Ezequiel — ele começou e, mesmo que não fosse intencional, a pausa que deu soou um tanto dramática demais. — Ezequiel é vítima de uma maldição que assola a família Gutiérrez. 

Leônidas sentou-se em sua cadeira, tirando o copo que sempre ficava sobre a boca da garrafa. Os movimentos ainda eram lentos e tensos. 

— Eu sabia — o médico disse lacônico. 

Matias arregalou os olhos na direção dele. 

— Sempre soube?! — Depois de minutos, alguém finalmente voltou a elevar a voz no silêncio da noite. — Como poderia…

— Eu estudo maldições há anos, Matias — o pai retorquiu, enchendo o copo com a bebida. — Procurei por soluções para o problema de sua tia por quase um século, sei reconhecer uma maldição quando vejo uma. 

O filho abriu e fechou a boca, indignado demais para conseguir ser coerente. 

— Então por que nunca disse nada?! Está tratando Ezequiel há um ano inteiro e consegue deixar que a família continue aflita em busca de respostas? — Parou, tomando ar e mal conseguindo acreditar no que acabara de ouvir. A confusão mais uma vez dera lugar à raiva. — Irina tem estado desesperada… 

— Eu disse minhas suspeitas a Antônio — o mestre de poções o cortou, deixando o copo parado em sua mão. — Ele partiu para a Espanha em busca de respostas em ramos mais antigos da família, mas o alertei que não deveria ter esperança. 

Matias balançou a cabeça, querendo acreditar que não estava ouvindo aquilo. Ele podia tentar se justificar, mas ainda havia uma família aflita em busca de uma cura. 

— O que quer dizer com o presente repetir o passado? — o pai inquiriu, tomando um breve gole do whisky. 

— Irina recusou meu pedido de casamento — soltou junto de um bufar. — Ela sabe sobre a maldição da família e teme pelo futuro. 

Não querendo mais encarar o pai por um minuto sequer, Matias girou nos calcanhares e partiu em direção à saída, sequer reparando que deixara a porta bater no silêncio da noite. 

Era muita coisa para lidar num intervalo de vinte e quatro horas. 


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