Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 45
Capítulo XLV




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Irina abriu a porta do seu quarto, vendo o irmão em seu estado de palidez eufórica, agitado demais até mesmo para esperá-la. 

― Quando ele voltou? ― ela inquiriu, fechando a porta atrás de si e seguindo junto dele para o primeiro andar. 

― Agora pouco! ― Ezequiel respondeu empolgado, com um sorriso que, se não estivesse tão aérea por tantos pensamentos, teria aquecido seu coração. ― Vi a movimentação lá embaixo e corri para te chamar. Fazia mais de um ano, Irina, um ano!

Ela teve de apressar um pouco o passo e logo viraram para o lado oposto do habitual ao atingirem o primeiro andar, ouvindo vozes da primeira porta aberta, que levava à sala de estar. 

― Você deveria tomar um banho primeiro, homem! ― Beatriz reclamava. ― Irá empestear minha sala de estar com esse cheiro, tenha o mínimo de piedade com os meus nervos. 

― E eu não tenho piedade com seus nervos, Beatriz? ― a voz do pai retrucou, aumentando de volume quando os dois adentraram o cômodo. ― Tenho tanta piedade com eles que te faço o favor de livrá-la da minha presença durante boa parte do ano. — Ele virou-se quando uma movimentação pôde ser percebida pelo canto do olho. — Ah, tesoros¹!

O pai gargalhou e partiu em direção aos filhos assim que pousou os olhos de tempestade abrandada sobre eles. Ezequiel foi envolto em um abraço de amassar qualquer pessoa. Assistindo a tudo, Irina foi capaz de ver a tristeza passando brevemente pela expressão do pai. Ezequiel estava visivelmente mais magro. 

― Encontrou algum pirata dessa vez? ― o rapaz questionou assim que se separaram. 

Quando seus filhos eram crianças, Antônio tinha o costume de enchê-los com histórias fantasiosas sobre suas jornadas em alto mar a trabalho. Nenhum deles colocava muito crédito naquilo ― pois algumas eram tão fantasiosas a ponto de beirar o absurdo ―, no entanto, Ezequiel quebrava o hábito. Quando provocado por Isaac, ele dizia saber que nada daquilo era verdade, mas tinham um valor literário muito interessante. O pai definitivamente deveria ser escritor, se não fosse comerciante. 

― Esbarramos com um galeão inglês rumo à Espanha e quase fomos bombardeados, mas felizmente perceberam o erro a tempo ― Antônio retrucou com um mover de sobrancelhas suspeitas, compartilhando uma rodada de gargalhadas com o filho. ― E você, cariño mio²? ― Ele voltou-se para Irina, parada ao lado do irmão, e deu um beijo terno em seu rosto. Tomou alguns segundos para analisá-la. ― Parece mais bonita a cada vez que te vejo. ― Um sorriso sutil desenhou-se nos lábios dele. 

Contudo, os olhos inquiriram silenciosamente uma óbvia pergunta: está tudo bem com você? O pai era uma das pessoas que conseguia interpretá-la como ninguém e Irina sabia que não poderia evitar questionamentos. Ele percebeu de imediato que não estava bem. 

― Como foi a viagem? ― ela questionou, recebendo um último afago no ombro antes de ver o pai se afastar. 

Os empregados vieram para retirar os baús que estavam espalhados pelo chão e partiram, deixando a família a sós. Antônio suspirou. 

― Esclarecedora, cariño mio. Onde está Isaac? Preciso conversar com todos vocês. 

― Por que não se recupera primeiro, querido? ― Beatriz sugeriu, surpreendendo qualquer um que fosse de fora da família com seu silêncio fora do normal. ― Terá tempo o suficiente para nos contar o que quer que seja...

De maneira discreta, a figura de Isaac apareceu sob o batente da porta aberta. Irina não pôde dizer se acabara de chegar ou se estava ali há algum tempo, assistindo à cena como se esperasse pela hora de fazer parte dela. 

― Isaac! Venha, entre. ― Antônio não se conteve em somente chamá-lo e o envolveu em um abraço na entrada do cômodo. ― Como passou esses meses? Alguma novidade sobre o Conselho?

Isaac devolveu o gesto, contudo, era óbvio como parecia um tanto desconfortável. Diferente dos outros irmãos, ele sempre fora o mais distante do pai, e não por falta de tentativa de Antônio em estreitar a relação. A principal barreira entre eles era Beatriz e seu domínio, incubindo-o de responsabilidades que não deveriam ser dele tão cedo. Porém, se o pai passava tanto tempo fora, alguém deveria assumir o controle daquela família. 

― Conseguiu novos tecidos, como o senhor prometeu? ― o filho questionou e o pai o liberou de seu abraço. 

― Consegui e já foram movidos lá para cima ― Antônio respondeu com um afago no ombro dele, tomando alguns instantes para analisá-lo. Um sorriso triste se formou. ― Mas deixemos isso para outra hora, porque tenho algo mais importante para falar com vocês. 

― E o que poderia ser mais importante do que os negócios? ― Beatriz provocou, pouco se importando em esconder o sarcasmo. ― Você se preocupa tanto com os negócios que é difícil acreditar que tem outras preocupações. 

Antônio ignorou a mulher e fechou a porta da sala de estar. 

― Esse assunto envolve a nossa família. ― Até mesmo o sorriso triste sob a barba desapareceu, dando lugar a uma testa cheia de marcas de expressões. ― Não apenas a nossa, mas as gerações futuras dos Gutiérrez. 

Beatriz gargalhou, vendo o marido guiar os filhos para o sofá de três lugares no centro da sala.

― Ora, querido, tenha paciência! Você terá quanto tempo quiser depois do jantar para contar uma de suas histórias...

― O que eu tenho para contar e mostrar a vocês não deve sair dessas paredes ― ele começou, ignorando completamente a esposa. Pegou sua mochila do outro sofá e à Beatriz restou ocupar o outro lugar. ― É uma pena que Estevão não esteja aqui...

Sendo assistido pelos filhos, Antônio abriu sua mochila e começou a revirar seu conteúdo com uma mão.

― Deveria ter avisado com antecedência, se desejava uma reunião familiar ― a Sra. Gutiérrez reclamou.

― Estevão continua sendo parte dessa família, quer você goste ou não. ― Antônio retirou um gasto volume encadernado e colocou-o sobre a mesa de centro, atraindo o olhar dos filhos. ― Ele é sangue do meu sangue e afetado pela mesma maldição que os nossos outros filhos.

― Maldição?! ― Ezequiel exclamou, aproximando-se da mesa para ver melhor o objeto sobre ela.

― Santa Mãe misericordiosa... ― Beatriz murmurou em reclamação, sua censura sendo seguida por um balançar de cabeça do filho mais velho.

Irina encarou o pai, vendo que o olhar dele passou pelos três filhos e parou nela, que menos demonstrou alguma reação. Por dentro, seu sangue parecia ter gelado.

― Leônidas me contou no ano passado sobre suas suspeitas, de que a doença de Ezequiel pudesse ser uma maldição. ― No mesmo instante, o filho mais novo parou seu gesto de tentar tocar no livro, voltando os olhos extremamente abertos para o pai. Irina procurou por sua mão sobre o sofá e segurou-a. ― Então resolvi partir para a Espanha em busca de algo que pudesse explicar as origens de uma maldição, pois nós nunca tivemos nenhuma relação com a Sombra...

― Tenha um pingo de bom-senso nessa sua cabeça! ― Beatriz explodiu, erguendo a voz e remexendo-se no sofá, quase encurralando o marido no móvel de dois lugares. ― Agora quer colocar os Salazarte no meio de suas brincadeiras?

― Se duvida do que digo, pergunte ao homem em pessoa, mi amore ― o Sr. Gutiérrez atirou a última palavra com uma grande dose de sarcasmo, a expressão ainda evidenciando suas marcas de expressão. ― Ou o único assunto que você sabe matraquear com as pessoas é sobre os seus interesses?

― Ah, agora irá começar a me ofender na frente dos nossos filhos? A que ponto chegamos ― Beatriz provocou quase em um guincho.  

― Eu sei que pode parecer tentador finalmente termos uma resposta, pai, mas isso não faz sentido ― Isaac começou. ― Se essa doença de Ezequiel fosse mesmo uma maldição, então haveria outras pessoas de nossa família...

― As crianças não costumam sobreviver mais do que os primeiros anos de vida ― Irina começou, apertando a mão de Ezequiel com força. Ao seu lado, o irmão encarava fixamente o chão de madeira da sala, parecendo um tanto nauseado. ― Somente Ezequiel é um ponto fora da curva, provavelmente por influência da Luz.

― Do que é que você está falando? ― o irmão mais velho devolveu, voltando o rosto em sua direção.

Irina sequer olhou para ele, sabendo que procuraria nela uma aliada para seu ceticismo. Daquela vez, não encontraria. Focou-se no pai, que a encarava curioso.

― Eu e Estevão, com ajuda do Sr. Salazarte, conseguimos descobrir alguns fragmentos da verdade.

― Bernardo está ajudando vocês?! ― Antônio inquiriu, coçando a barba já cheia sem sequer perceber.

― Ela está falando do outro filho, o que morava na Nova Inglaterra ― Isaac respondeu em seu lugar. ― Precisamos conversar sobre ele depois.

― Irina e Matias visitaram as fadas. ― Ezequiel manifestou-se depois de minutos em completo silêncio. Sua voz saiu lenta e escorregadia, tão diferente da animação com que recebera o pai. ― Irina teve uma visão que esclareceu algumas coisas sobre o meu sonho.

― São somente fragmentos confusos ― ela tentou se explicar, não querendo se delongar em teorias.

― Mas acreditamos que a visão envolva duas irmãs gêmeas e a morte de uma criança ― Ezequiel continuou, ainda soando disperso. ― Conseguimos relacionar isso e algumas outras coisas ao meu sonho.

― Quando isso aconteceu? ― Isaac quis saber.

― É claro que Estevão tinha que se envolver nisso ― Beatriz disse mais para si mesma.

― Creio que sua aventura com Estevão e o Sr. Salazarte terá de ficar para outra hora, cariño mio, espero que não se importe ― Antônio interrompeu os dois, recebendo um aceno com a cabeça da filha. Ele respirou fundo, folheando o livro. Na rapidez para virar as folhas, algumas chegaram a se soltar, precisando ser retiradas e postas de lado. Em uma delas era visível o nome Isabel Gutiérrez desbotado em uma das margens. ― Eu não sei qual é a relação da Luz com isso, mas... ― Ao chegar a uma página em específico, virou o livro na direção dos filhos. ― Vocês estão certos quanto às gêmeas.

O título era evidente para qualquer um: necromancia. 

― Isso é um livro de magia sombria?! ― Isaac exaltou-se ao bater o olho no conteúdo em latim.

Ezequiel curvou-se para frente para ler melhor e Irina conteve a vontade de puxá-lo para longe daquilo.

― Tudo isso começou por um acordo com a Sombra, tesoros. Um acordo necromante feito pela irmã da bisavó de vocês.

― Mas tenha paciência, Antônio! ― Beatriz explodiu outra vez, pondo-se de pé e quase atropelando as pernas do marido enquanto passava. ― Eu não mereço perder meu tempo com isso. ― Ela abriu a porta com força e bateu-a ao sair. ― Eu não mereço. ― Sua voz ainda era audível, se afastando pelo corredor. 

― E como o senhor poderia ter descoberto isso? ― Isaac, que por algum milagre não seguira a mãe para fora do cômodo, apoiou uma perna sobre o joelho, deixando claro que não sairia de sua posição tão cedo. ― Há um livro de magia sombria que tenta usar como prova, mas nada além disso.

― Certas coisas ficam marcadas na memória das pessoas, meu filho. Principalmente a história de uma família como a nossa. ― Naquele instante, Irina esperava que Ezequiel fosse adicionar algum questionamento sobre os antepassados, contudo, soltou sua mão e afundou-se no sofá. A pergunta esperada não saiu. ― Os Gutiérrez... Eu iria dizer que os Gutiérrez nunca foram pessoas muito queridas no vilarejo em que viviam, mas creio que isso seria tentar suavizar um pouco as coisas. Os Gutiérrez eram pessoas cruéis, poderosas e impiedosas.

― E o senhor nunca soube sobre o passado de seus avós? ― Isaac inquiriu, tomando o lugar do irmão mais novo para fazer as perguntas. Ao contrário dele e sua típica empolgação, carregava desconfiança.

― Meu pai quase nunca falava dos próprios pais e hoje eu entendo por quê. Os Gutiérrez eram uma família poderosa no Submundo de Salamanca³.  Julgavam, condenavam, tomavam... Infelizmente, naquela época, a organização do Submundo em certos lugares era um tanto parecida com a mundana. ― Antônio recolheu as folhas soltas e fechou o livro, percebendo que mais ninguém mexeria naquilo. ― Mas a história que nos trouxe até aqui começou com Isla, irmã de minha avó. Meus avós tinham uma grande família, mesmo tendo um pouco mais de um século juntos, e consideravam-se abençoados pela Mãe, enquanto Isla teve apenas um único filho, em mais de noventa anos de casamento. Ela amava esse menino mais do que a própria vida. Ele viveu até os quatro anos, falecendo em um acidente quando brincava com os primos. E nesse ponto... Vocês imaginam o que vem a seguir.

Nenhum dos filhos respondeu. Isaac o encarava carrancudo, Ezequiel afundava-se contra o sofá, encarando tristemente o livro fechado e Irina tentou puxá-lo contra ela, encostando a cabeça dele em seu ombro. Após ter conseguido, o pai retomou o relato:

― Isla fez um acordo com a Sombra e sacrificou um dos filhos de Isabel, minha avó, para o feitiço necromante. A partir disso, uma guerra começou entre as duas. Primeiro, a vítima foi o filho de Isla, com a desculpa de que um bruxo trazido dos mortos seria uma monstruosidade; o próximo foi outro dos filhos de Isabel, morto pelo marido de Isla e, por fim, a última vida antes que elas se destruíssem foi o próprio marido de Isla.

No exato instante, Irina recordou-se de sua visão sob as águas. Teria ela se visto como Isabel e como Isla?

― E quanto ao marido de Isabel? — ela inquiriu, finalmente manifestando alguma dúvida. 

― O que quer saber sobre ele, meu bem? ― Antônio devolveu com suavidade, mesmo que tivesse acabado de contar uma narrativa envolta em morte e tragédia.

― Em minha visão junto às fadas, ele comentava como as duas famílias se pareciam mais do que aparentavam ― a filha respondeu sucinta.

― Os Gutiérrez também não eram muito melhores. Sei que havia uma grande disputa por quem seria o herdeiro do Gutiérrez pai, e Juan, meu avô e marido de Isabel, conquistou o seu lugar derramando sangue dos outros irmãos.

Irina assentiu em silêncio. Devolveu seu foco para Ezequiel, que havia voltado os olhos para o pai, vendo-o e parecendo não vê-lo de fato.

― E como isso se relaciona a nós? ― Isaac colocou a questão na mesa. ― Eu entendo que Isla e Isabel tenham sofrido as consequências pelo que fizeram, mas nós...

― Isla acabou não vivendo por muito tempo, alguns dizem que por consequência do acordo com a Sombra, outros... Isabel também não, a morte dela é um tanto misteriosa. ― Antônio deixou no ar. ― Rita, filha mais velha de Isabel e Juan, foi a primeira a ter um filho, cerca de vinte anos depois. A criança não viveu mais do que alguns poucos anos. 

— E todos os filhos restantes tiveram um filho afetado pela maldição — Ezequiel completou a linha de raciocínio, murmurando baixinho. 

Antônio assentiu. 

— Um dos meus irmãos morreu ainda bebê e nós acreditávamos ser somente consequência de uma saúde frágil. Durante minhas semanas em Salamanca, ouvi histórias sobre meus tios que permaneceram por lá. Todos perderam ao menos uma criança em algum momento — o Sr. Gutiérrez arrematou com ares dramáticos. 

— Isso… Isso… — Isaac tentou articular e, na raiva, bateu as mãos contra as coxas e se pôs de pé, começando a andar na linha entre os dois sofás. — O senhor quer que acreditemos que nossos filhos serão amaldiçoados por algo que os tataravós deles cometeram?! 

— A maldição não durará para sempre. — Antônio voltou os olhos para o filho mais novo, que fugiu do olhar do pai. Irina não se conteve e começou a acariciar os cabelos escuros. — Sabemos que pactuar com a Sombra traz consequências diretas ou indiretas aos envolvidos e às pessoas próximas, a fúria da Mãe Terra pode ser terrível. E depois de tanto sangue derramado… — Ele deixou no ar outra vez. — Pode ser que essa maldição termine nesta geração, ou na próxima. 

— A Mãe Terra é injusta — Irina não se conteve em externar o pensamento. — É injusto punir uma criança inocente que não tem culpa pelos erros de seus antepassados. 

— Eu sinto muito, meu bem, mas… 

O Sr. Gutiérrez iria começar uma tentativa de consolo, no entanto, o filho mais velho o interrompeu, aproximando-se do sofá em que a irmã estava, com os braços cruzados sobre o peito. 

— É por isso que se recusa a aceitar a proposta de casamento de Salazarte, Irina? Com medo dessa suposta maldição? 

— Matias te pediu em casamento? — Ezequiel afastou-se de súbito do carinho da irmã, finalmente mostrando outra vez alguma emoção mais forte. 

— Não é uma suposta maldição, Isaac. Você acreditaria se tivesse visto o que eu vi. 

— São suposições, Irina, suposições! Enquanto a mancha na sua reputação é mais real do que uma suposição — Isaac quase cuspiu irritado. 

— Isaac, se acalme — o pai tentou intervir. 

— Eu sei o que eu vi! — Irina se defendeu, começando a se exaltar junto do irmão mais velho. — Eu passei semanas correndo atrás de respostas e sei o que eu vi! Acha que eu não estaria como você após ouvir tudo isso se a própria Luz não tivesse me mostrado uma visão sobre o que nosso pai acabou de contar? 

— E você vai passar a vida inteira sozinha com medo de uma suposta maldição? — Isaac debochou, conseguindo incitar a irritação da irmã. 

— Vocês dois poderiam me deixar à sós com sua irmã, por favor? — o Sr. Gutiérrez interveio outra vez, sereno no meio do caos que começava entre os filhos. 

— Irina irá arruinar o próprio nome e o da nossa família por uma teoria, pai, o senhor não pode tolerar… 

— Isaac — Antônio se pôs de pé, colocando uma mão no ombro do filho mais velho e tentando guiá-lo para longe —, nós não chegaremos a lugar nenhum exaltados desse jeito e não é gritando que você irá conseguir conversar com sua irmã. — Ele fez um gesto de cabeça para Ezequiel, que entendeu o recado e desvencilhou-se completamente dela, seguindo os dois em direção à porta. — Dê uma volta, se quiser, e não se preocupe em demorar para voltar, apenas tente esfriar um pouco a cabeça. — Ele soltou-o, passando a mão para a maçaneta da porta, abrindo-a. — E tente evitar o álcool, por favor. Nossas respostas não estão num copo de bebida. 

A porta foi fechada, deixando pai e filha sozinhos na sala de estar. 

 — Depois preciso ter uma conversa a sós com os dois — ele disse mais para si mesmo e virou-se, lançando um olhar demorado para a filha. O mesmo sorriso triste, que havia desaparecido, voltou a se formar lentamente. — Decidi que iria começar com você logo que te vi entrar. — Os passos que os separavam foram preenchidos e o lugar onde estivera Ezequiel foi ocupado por Antônio. — Quantos fardos você adicionou aos seus ombros nesses meses?  

Irina fechou os olhos, tentando escapar por alguns instantes da sensação que os olhos do pai lhe causavam. Sempre estaria vulnerável para ele. Mais do que Estevão ou qualquer outra pessoa que a conhecesse. Sentiu-o passar um braço ao redor de seus ombros e o cheiro desagradável de quem passou tanto tempo em alto mar veio à tona. Nada tão forte quanto a agradável certeza de que ele estava ali com ela. 

Irina percorreu um relato conciso sobre os últimos meses, passando sobre recaídas e melhoras do irmão, sua vida social — mesmo que não entendesse a relevância daquilo para o relato —, a aproximação com os filhos do Dr. Salazarte, relatando brevemente a tragédia acontecida com a família, cada uma de suas descobertas e sua longa jornada até alcançar a verdade.

― Acredito que nenhum de nossos parentes é tão determinado como você ― Antônio adicionou, seu primeiro comentário mais longo desde que se sentara ao lado dela. ― Não duvido que você iria a um pleito com a Mãe Terra em pessoa pelo seu irmão.

― E de que utilidade isso seria? Justiça não parece ser uma qualidade que Ela tenha.

Ao em vez de censurá-la, coisa que qualquer pai bruxo faria com uma filha ao ouvir algo como aquilo, o Sr. Gutiérrez encostou o rosto contra os cabelos da filha, ponderando por alguns instantes.

― Infelizmente tenho que concordar com você. Na mesma medida em que nos consideramos abençoados com as dádivas e dons que Ela nos dá, também podemos nos considerar amaldiçoados por ter uma Mãe como essa ― ele baixou a voz por um instante. ― E que esses nossos comentários não saiam daqui.

― Talvez Ela nos amaldiçoe novamente, dessa vez por blasfêmia. 

― Um dia, cariño mio ― Ele beijou os cabelos dela ―, um dia nós nos veremos livres. Até lá, tudo que nos resta é ter esperança.

― Como? ― Apesar de saber que o pai não merecia, não pôde conter-se ao erguer a voz até mesmo para ele. ― Como ter alguma esperança? Ezequiel não vai...

Ele talvez não durasse até a primavera. Ou até o próximo ano. Ou talvez se passasse mais um ano ou dois. O tempo era algo impossível de medirem.

― Porque esperança é tudo que podemos ter. Esperança, minha filha, de que os filhos dos seus filhos estarão livres. ― Antônio ergueu o rosto e tentou procurar os olhos da filha. Como o esperado, ela olhava para qualquer outro lugar que não fosse ele. ― Esperança é a única arma capaz de matar o seu medo de se entregar a esse homem.

― Eu não posso... ― Ela começou de súbito, surpresa pela adição repentina à conversa.

― Você pode. Se você realmente o quer, você pode. ― Antônio tocou o rosto dela e, sabendo o que ele implicitamente queria, deixou que examinasse seus olhos por quanto tempo fosse preciso. ― O que você não pode é querer trancar-se do mundo e sofrer sozinha. Isso é algo que eu nunca irei deixá-la fazer.

― Eu não consigo envolver outra pessoa nisso, ainda mais alguém como Matias. Ele já passou por tanta dor, como eu poderia...

― Pelo que você me deu a entender, ele está plenamente ciente da maldição que envolve nossa família, certo? ― Como resposta, teve somente um “sim”. ― E qual é a opinião dele sobre isso?

A resposta estava ali, na ponta da língua, pois recordava-se perfeitamente bem dela. E recordar-se de algumas horas atrás fazia-a se arrepiar. A memória que cada um de seus sentidos trazia à mente era como se tudo tivesse acabado de acontecer há poucos minutos. E, mesmo tendo a recordação de companhia, ainda precisava de mais.

― Matias disse que um homem que me amasse de verdade estaria disposto a passar uma vida inteira comigo, independente da maldição que meu sangue carregue.

Antônio trouxe-a para junto de seu peito, sorrindo sem que ela sequer percebesse, encarando fixamente o tapete. 

― Ele está se propondo a isso, Irina, ele tem plena consciência do que poderá enfrentar e quer se casar com você mesmo assim. — Ela ergueu os olhos para ele, vendo a tristeza abrandada. — Isso é amor, minha filha. Amor é uma escolha. 

Irina abriu a boca para argumentar, porém, Antônio a parou com um murmúrio.

― A perda é inevitável para todos nós. Vida nenhuma é feita somente de momentos bons e vida nenhuma dura para sempre, nem mesmo a nossa. — Ela conteve um resmungo, voltando a observar o tapete. E ignorando o livro esquecido sobre a mesa. Preferia esquecer da existência daquilo, que dera início a todo aquele sofrimento. — Olhe para mim uma última vez, cariño mio. ― Ela cedeu ao pedido. ― Se você soubesse de tudo que iria sofrer junto de Ezequiel, trocaria uma vida sem ele por isso?

― Nunca. ― A palavra saiu sem sequer ser pensada direito.

― Mesmo com toda a dor? Para você e para ele?

Ela se calou, compreendendo aonde ele queria chegar. Seus argumentos começavam a perder força e, como naquela tarde, a voz que se dizia ser sua sensatez ia se calando.

― Eu tenho certeza que, se o seu irmão estivesse junto de nós nesta sala, ele responderia o mesmo a essa pergunta, não acha? ― Irina assentiu em silêncio. ― Amar é uma escolha, minha filha, e Matias quer fazer a dele. Da mesma forma que você escolhe Ezequiel, mesmo com todo o sofrimento, ele quer escolher você.

Antônio deu outro beijo na bochecha da filha.

― Independente de qual seja a sua, não sofra sozinha. Se você pode escolher, nunca sofra sozinha. 


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Notas finais do capítulo

1: Tesouros.
2: Minha querida.
3: Cidade na região autônoma de Castela e Leão, Espanha.



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