Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 43
Capítulo XLIII




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A criada estava curvada à sua frente, prendendo o peitilho¹ com alfinetes e quase dando por finalizado o seu ritual de se vestir. Dali alguns poucos minutos desceria para a sala de jantar e dividiria um carregado desjejum com o marido e o avô. 

Tibério a puxaria para longe no exato momento em que a refeição terminasse, sabia disso. E, conhecendo-a como ninguém naquela casa, não a deixaria ir sem que explicasse o que estava acontecendo, em uma conversa que estava sendo adiada demais. E seria o fim da estadia dele naquele lugar. 

A criada se levantou, terminando o trabalho e dando-lhe a visão completa da janela. A manhã estava com um frio sol cinzento de inverno, como todos os dias desde que a estação começara. Melancólico como todos os seus últimos dias em um longo tempo. 

Ouviram uma batida na porta e, após receber permissão para abri-la, uma das copeiras colocou a cabeça pela greta. 

― O moço dos estábulos está pedindo para falar com a senhora ― ela informou. ― Devo mandá-lo voltar depois? 

Betina voltou o rosto na direção dela, sequer ponderando o que dizer. 

― Irei falar com ele ― respondeu, pegando o xale que lhe era oferecido pela criada e pondo-o sobre os ombros. 

Qualquer outro ajuste que ela planejava fazer ficou para trás, pois a patroa simplesmente escancarou a porta do quarto e saiu junto da outra empregada. 

Leonardo, até onde sabia pela última vez que o vira, já estava de volta ao trabalho, plenamente recuperado do ferimento. No braço que lhe mostrara, a mancha preta desaparecera por completo, restando somente marcas de um ferimento normal em cicatrização e trazendo a dúvida do que teria causado aquilo. Não era profundo como uma mordida de animal e ele se recusava a dizer o que acontecera. Os segredos de Saul eram os segredos de Saul e também dele, que não dizia uma única palavra sobre o que faziam às escondidas. 

Que feitiço de magia sombria precisaria da ajuda de um lobisomem para ser feito? 

Ao chegar na sala de estar, o tratador de cavalos de imediato de virou na direção das duas. Betina fixou os olhos nas mãos dele, que segurava uma contra a outra. Uma delas estava toda enfaixada. 

― Vamos para a sala de visitas ― Betina pediu, sendo o único lugar com um pouco de privacidade em que conseguiu pensar. 

Junto de uma mesura, a empregada se afastou e a Sra. Tremonti tomou a frente, conduzindo-o de volta pelo mesmo lugar pelo qual viera. Não trocaram uma única palavra até chegarem lá. 

A sala de visitas era um lugar minúsculo, iluminada por uma janela que ia do teto até o chão, uma escrivaninha ― onde Betina costumava escrever suas cartas ―, um conjunto de sofás e uma lareira. Preferia receber suas visitas ― quando ainda as recebia ― na sala de estar, afinal, aquele cômodo parecia ter sido reservado com a intenção de não fazer justamente o que o nome dizia. 

Ela apontou uma mão para que escolhesse o lugar e fechou a porta. 

― Machucou-se outra vez? ― questionou e ele ocupou o assento mais próximo à lareira apagada. Em resposta, começou a desfazer o curativo improvisado que envolvia a mão direita. ― Espere aqui, irei pegar algumas coisas e volto logo ― informou antes mesmo de ver o estado do ferimento. 

Considerando por que ele resolvera vir até ela com aquele problema, não era difícil de imaginar o que veria. 

Saiu da sala de visitas e partiu em direção ao quarto outra vez, passando sem prestar muito atenção aos empregados que se movimentavam. Após pegar os mesmos utensílios que usara naquela noite, na bolsa de pano, tornou a descer a escada, sendo interpelada pelo avô em um dos degraus. 

― Aonde vai com isso? ― ele questionou, os olhos passando pela bolsa a tiracolo. 

Betina segurou no corrimão, parando o pé de descer para o próximo degrau. Todos os empregados passaram por ela sem trocar uma única palavra e tinha de esbarrar justamente com quem nunca conseguiria passar por ela em silêncio. O Sr. Salazarte parou no mesmo degrau que a neta, aguardando uma explicação. 

Sua vontade era correr de volta para a sala de visitas e trancar a porta. 

― Margarida pediu que eu fizesse alguns preparados para uma dor de cabeça terrível que a incomoda há dias ― inventou a primeira coisa em que conseguiu pensar. Na verdade, a segunda, pois colocar Saul no meio traria mais questionamentos. 

― Não me lembro de tê-las visto juntas desde a última visita que fizemos aos Gusmão. ― Ele estreitou os olhos em sua direção, criando uma sequência de vincos em sua testa. Desceu um degrau, incentivando-a a continuar. 

― Ela me pediu na última vez que nos vimos, mas acabei esquecendo. ― Envolveu com força a alça da bolsa, tendo certeza que seus dedos começavam a suar. Mesmo que a temperatura dentro de casa estivesse perfeitamente agradável. ― Preciso terminar isso o quanto antes, já demorei tempo demais.

Ela retomou o percurso para baixo junto do avô. 

― Ao menos coma algo primeiro, trabalhar com isso exigirá muita energia de você...

― Depois ― ela o interrompeu e alcançaram o piso do primeiro andar. 

Tibério ergueu o nariz e estreitou ainda mais os olhos na direção dela, como se estivesse farejando a mentira pelo ar. Sabia que ele estava, sua justificativa era fraca demais. E a única que tinha, para não revelar que Leonardo a aguardava na sala de visitas com outro ferimento causado por sabe-se lá o que. 

― A esperarei na sala de jantar. 

― Não há necessidade de esperar por mim, sabe que irei demorar. 

― Eu sei. E também sei que você continua tentando fugir de mim. ― Ele deu um passo para longe dela. ― Isso acaba hoje, Tina. Estarei a manhã toda na sala de jantar à sua espera, tome o tempo que precisar. 

Com uma última olhada que parecia tentar perscrutar-lhe por completo, Tibério se afastou, deu as costas e partiu para o outro lado do corredor, rumo à sala de jantar. Betina passou os dedos suados pela alça da bolsa e apressou-se para a sala de visitas, olhando para trás para ter certeza de que ele não tentava acompanhá-la. O avô já tinha desaparecido de vista. 

Entrou no cômodo e fechou a porta atrás de si. Soltou uma longa respiração e finalmente largou a alça da bolsa. Leonardo observou a patroa e se tinha algo para comentar sobre seu estado de espírito claramente perturbado, deixou de lado. 

A Sra. Tremonti se aproximou e largou a bolsa junto ao braço do sofá, ocupando o lugar ao lado dele no móvel de dois lugares. Ele estendeu o braço direito para ela, deixando ver um ferimento que havia retirado um pedaço superficial de pele, mostrando uma delicada camada rosada. Não parecia ser algo tão sério assim. 

― Como conseguiu isso? 

Leonardo pareceu considerar por uns instantes e, vendo que ela sequer se mexia ― afinal, não poderia fazer nada se não soubesse a origem daquilo ―, respondeu:

― Da mesma forma que consegui a outra. 

A frase veio curta e lacônica, sintetizando as dúvidas que pairaram na mente de Betina desde que ela o socorrera no casebre que ele dividia com a esposa. Um ferimento tão simples, mas que deveria estar carregado de magia sombria. 

Abriu a bolsa, buscando as mesmas ervas daquela noite. 

― Saul não o ajudou dessa vez? 

Leonardo a olhou por alguns instantes, sério e sisudo. Talvez nunca o tivesse visto de outra forma, sequer dando um sorriso. Daquela vez parecia pior do que o normal.

― Meu acordo com seu marido acaba aqui, Sra. Tremonti ― ele anunciou enquanto a bruxa retirava um pequeno pilão para amassar as ervas que atirara ao pequeno recipiente. ― Era a minha vida em jogo e ele não consegue compreender o desespero de minha mulher para ter pedido ajuda à senhora. Não vou deixar minha vida em risco quando terei um filho em breve e não vou mais fazer parte disso.

Ela sentiu os dedos escorregadios na madeira do pilão, porém continuou mesmo assim, sentindo-o deslizar um pouco entre os dedos. Suas dúvidas estavam tão acessíveis quanto da última vez em que se viram. 

― Em que você e Saul têm parte? ― Betina questionou, amassando as ervas.

― O Sr. Tremonti mantém a irmã presa aqui na fazenda.

A Sra. Tremonti interrompeu os próprios movimentos.

― Isabella está morta.

Leonardo negou com a cabeça e, mesmo que o preparado estivesse quase no ponto para ser aplicado, esqueceu-se completamente do pedido que deveria fazer à Mãe e ficou estática.

― Os irmãos dele a ressuscitaram em um acordo com a Sombra e o Sr. Tremonti a mantém presa na fazenda há anos. ― Betina podia jurar que ouvia os ouvidos zumbirem com o silêncio. Ou eram seus pensamentos perdendo completamente a trilha. ― Ela não é mais um ser humano, Sra. Tremonti, a senhora... ― ele hesitou e, mesmo para um homem como ele, parecia temeroso com algo. ― Ela age feito um animal.

― Foi ela... ― Betina começou e parou, tentando retomar a tarefa com as ervas, mesmo com as mãos trêmulas. O pilão parecia ainda mais difícil de ser segurado.  ― Ela quem fez isso?

O tratador de cavalos assentiu.

― O Sr. Tremonti a mantém em um lugar escondido graças à magia das fadas, mas precisamos trocar a terra que o envolve em um ciclo específico da lua. Ela costuma enlouquecer quando isso acontece, ou quando o Sr. Tremonti fica muito tempo com ela.

Betina encarou os objetos nas próprias mãos, sem de fato enxergá-los. O que Saul estava fazendo era pior do que ela poderia sequer imaginar. Não era apenas um erro do passado ou um acordo com a Sombra ― que teria envolvido sangue em algum ponto ―, era a própria irmã em cárcere privado na fazenda. A própria irmã trazida de volta pela Sombra, impregnada de magia sombria. 

― Eu apenas tomei parte nisso porque era a única opção que eu tinha, Sra. Tremonti. Ou eu ajudava, ou seria devolvido para os lobisomens.

― Ele irá devolvê-lo para os lobisomens ― ela disse o pensamento em voz alta, e manteve para si que o próximo a sair da fazenda seria seu avô. Ficaria sozinha com Saul outra vez. ― Ele não irá perdoá-lo pelo que fez. 

Seu raciocínio teve um balançar de cabeça em concordância. 

― Eu mandei Débora partir essa manhã ― Leonardo informou, olhando para a própria mão ferida. ― Ela tem alguns parentes no centro da cidade e podemos ficar lá por alguns dias, até encontrarmos outro lugar para ir.

― Se algum dos lobisomens o vir...

― Eu sei ― ele cortou, flexionando a própria mão. Parecia movimentá-la normalmente, sem sentir dor. ― Mas é a única opção que tenho. E essa noite será de lua cheia, não quero continuar na fazenda para causar mais problemas.

Betina tentou retomar o movimento de amassar as ervas, seus dedos ainda suando e trêmulos.

― Antes que você vá, gostaria de lhe fazer um único pedido. ― Ele assentiu e, ainda hesitante, ela continuou. ― Preciso que você me mostre onde Isabella está.

 

 

Leonardo guiava o caminho por entre as árvores, parecendo saber quase de olhos fechados como chegar até ali. Um pouco ao longe podia ouvir o rugido do rio, a primeira vez que o sentia tão perto, pois nunca pisara os pés naquela parte da fazenda. O terreno era tão extenso que mesmo depois de dez anos não o conhecia por inteiro.

E talvez ali estivesse a explicação para Saul orientá-la a andar somente na área habitada. Conforme iam avançando, podia sentir a energia mágica com clareza pelo ar, um temor desconhecido fazendo-a ter vontade de dar meia volta e se afastar dali. 

Pararam ainda entre as árvores, encarando um monólito de pedra.

― É ali. ― Leonardo apontou com a mão direita novamente enfaixada, depois de ter sido banhada com a mesma mistura de ervas usada em seu braço. Por terem tratado daquilo logo no começo, a magia da Sombra seria contida com facilidade. ― Apenas o Sr. Tremonti tem o objeto para poder entrar lá, é como se fosse uma pedra...

Betina encarou o lugar, tentando compreender como uma pessoa poderia estar lá dentro, era somente uma pedra no meio do mato. Realmente, havia muito da magia das fadas que não conseguiam compreender e pouco se importavam com isso.

Porém, o que mais tomava seus pensamentos era a dúvida de como Saul poderia fazer aquilo com a própria irmã. Seriam anos e anos trancada, sem ver a luz do dia e sem contato humano. Mesmo se ela não fosse um ser corrompido por ter sido trazida de volta dos mortos pela Sombra, aquilo seria o suficiente para levar qualquer um à loucura.

― Sra. Tremonti? ― Leonardo a chamou, após um longo tempo de silêncio.

― Obrigada por ter me contado a verdade ― ela disse, apertando o xale ao redor de si. Seus dedos continuavam a tremer.

Betina podia ter fugido da verdade por anos, mas ela sempre estivera lá, na fazenda, oculta porque se recusava a procurá-la. Agora, ela se desvelava à sua frente mesmo que não quisesse. E Betina sabia que não lhe restava escolha a não ser buscar ajuda. Independente de como estivesse, Isabella não poderia continuar mais um ciclo lunar lá dentro.


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Notas finais do capítulo

1: Peça que era prendida abaixo do corpete, visível pelo decote.



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