Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 20
Capítulo XX




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― A prataria foi um tanto de mau gosto, mal polida, isso até um olho menos atento poderia perceber, mas faz parte do nosso quid pro quo ― Bergoy riu enquanto comia um pedaço da carne de seu prato. ― A mãe de Rebeka felizmente herdou o bom gosto dos Galanis e nos deu uma excelente prataria como presente de casamento. A de Eduardo continuará guardada, até o dia em que ele resolva nos fazer uma visita para continuar o assunto.

Katsaros apontou para algo na lateral do cômodo e Matias teve que virar o rosto, olhando para um ponto bem ao lado de onde um dos lacaios estava parado. Juntando a decoração escura do ambiente e os castiçais sobre a mesa, que iluminavam somente um pequeno círculo de luz, as extremidades da sala de jantar ficavam na penumbra, forçando o mordomo e o lacaio a permanecerem na escuridão enquanto aguardavam para servir a sobremesa, mais vinho ou finalizar o jantar.

― Mas, explique-me, pois ainda não compreendo como pudemos passar dos detalhes de seu casamento para a prataria dada por Paduletto e seus assuntos políticos, meu amigo. ― Salazarte bebericou um gole do vinho, voltando os olhos novamente para seus companheiros na mesa. Bergoy mastigava e Rebeka também, pouco se manifestando desde que se sentaram, apenas acrescentando um comentário ou outro para o relato que o marido fizera da cerimônia e da recepção de casamento dos dois.

― De uma forma bem simples, meu caro: aproveitando do reencontro para estreitar alguns laços com nosso ex-companheiro dos tempos de universidade ― Katsaros retrucou, terminando o conteúdo de seu prato e limpando a boca com o guardanapo. ― Eu realmente fui um tolo na época por não ter me aproximado mais de Eduardo. Mas sempre podemos aprender com nossos erros, para nossa sorte.

Os empregados encostados contra a parede deixaram de ser simples estátuas vivas e se aproximaram para retirar os pratos e servir a sobremesa. 

― Eduardo possui uma família bem relacionada e eu possuo um bom nome dentro do Submundo. Juntos, podemos formar uma boa aliança e galgar nossos degraus para dentro do Conselho ― Bergoy explanou transbordando confiança e bebeu de sua taça, que mal fora tocada durante o jantar, já que ele não fazia o tipo que bebia e comia ao mesmo tempo. Rebeka o imitou, tomando o vinho em pequenos goles. 

Quid pro quo, como você disse ― Matias completou, tamborilando os dedos sobre a mesa enquanto o mordomo substituía o lugar onde estivera o prato de jantar por outro com manjar. ― Mas não acha que ainda é um pouco cedo para os dois tentarem um lugar na política? Não me recordo muito bem da idade de Eduardo...

― Quarenta e dois ― Katsaros o interrompeu, pegando a colher menor do lado direito para experimentar a sobremesa. ― Eu e ele nascemos no mesmo ano, com alguns meses de intervalo. Eu diria que é um sutil sinal da Mãe Terra de que essa parceria estava destinada a acontecer. Mas ― Ele ergueu um dedo e parou para engolir ―, compreendo sua dúvida, meu amigo, um questionamento muito válido e que eu esperava vir de você. Sempre formamos uma boa dupla, eu e você. Duas cabeças brilhantes, uma voltada para a ação e a outra para a contemplação. 

Matias deu um breve sorriso em agradecimento e começou a comer do doce. Rebeka permanecia calada, deixando o diálogo acontecer apenas entre os homens. Pelo pouco que conhecia da esposa do amigo, sabia que tendia para o lado taciturno e, além da aptidão em magia voltada para a natureza, não podia dizer mais nada sobre a nova Sra. Katsaros. Até mesmo seu amigo pouco comentava sobre ela, focando em assuntos de seu interesse. 

― Você sabe como costumo me preparar com antecedência, meu caro. Até que eu atinja meus cem anos e consiga chances mais relevantes para dentro do Conselho, terei um caminho muito bem preparado até lá. ― Bergoy soltou um “ha” e tomou outro gole do vinho, evidenciando que não planejava mais comer. Restava aos outros dois acelerarem um pouco para que a refeição fosse finalizada e os empregados voltassem a trabalhar. ― Mas e quanto a você? Sei que me dirá que o nome Salazarte está um tanto afetado pelo que aconteceu, mas essa pode ser a sua oportunidade...

― Não está nos meus planos ― Matias interrompeu, decidindo pegar o guardanapo para indicar que não iria mais comer. Restava somente Rebeka.

― Ouça o que vou lhe dizer e considere minhas palavras. Falo isso não apenas pela visão política, mas por ver a oportunidade que você pode ter em mãos. Seria uma pena deixar o nome de sua família morrer desta forma. ― Bergoy não aceitou seu argumento, fazendo o amigo voltar os olhos em sua direção. A luz do castiçal iluminava os escuros olhos brilhantes dele e, pelo esfregar do indicador contra o polegar, podia deduzir que o bruxo ao seu lado queria fumar. ― Creio que a atitude mais sensata no momento seja evitar o assunto política, realmente, a efervescência que seu avô causou no Submundo ainda demorará um pouco para sumir… Porém, lembre-se que você não é ele.

Rebeka pegou seu guardanapo, dando a refeição por finalizada. Seu marido sequer percebeu, para que pudesse sinalizar para os empregados.

― Você é um jovem bruxo que recém retornou de um demorado contato com ingleses perigosos, com certeza tem muito para contar sobre o Submundo da Nova Inglaterra, informação de extrema importância para um futuro próximo e... ― Ele ergueu outro dedo, apontando para Matias. ― Abalado pela perda de dois membros importantes da família. Apesar da revolta, ainda há corações sensíveis no Submundo de Tantris e você tem armas valiosas nas mãos, meu caro. 

― Não creio que esta seja uma escolha sensata para mim ― Salazarte retorquiu, ainda ponderando as palavras do amigo. Apesar da juventude, Bergoy realmente tinha uma mente talentosa para o jogo político. ― Creio que a escolha mais sensata no momento seja cuidar de minha família e depois... O tempo dirá qual será a melhor escolha.

― Claro, claro, a família como uma prioridade, você está certo. ― Katsaros fez um sinal com a mão e o mordomo e lacaio voltaram à vida. ― Apenas não se esqueça do que eu falei. E, conhecendo você como conheço, farei questão de lembrá-lo disso no futuro. 

As velas iluminaram o sorriso do dono da casa por alguns segundos, trazendo à luz o brilho da autoconfiança, no entanto, durou pouco, pois ele afastou a cadeira com um ruído.

― Planeja se retirar, querida? Eu e Matias temos alguns assuntos para conversar...

― Não creio que falaremos sobre algum assunto do qual sua esposa não deveria participar, não? ― Salazarte o interrompeu, valendo-se somente de sua intimidade com Katsaros para adicionar sua opinião. Não era seu lugar se meter entre o casal sobre quais assuntos o amigo preferia ou não compartilhar com a esposa.

― Estou começando a sentir o início de uma leve dor de cabeça, Sr. Salazarte, espero que não se importe de deixarmos essa conversa para uma próxima ocasião. ― Enquanto o convidado adicionava seus comentários sobre estar tudo bem, a Sra. Katsaros se levantou. ― E, se meu marido concordar, fica aqui nosso convite para um próximo jantar.

― Assim está feito ― Bergoy adicionou, parando sua esposa para pegar sua mão e depositar um beijo sobre ela. Depois de uma comunicação silenciosa entre os dois, Rebeka se retirou e ele se pôs de pé. ― Vamos? Consegui alguns valiosos charutos brasileiros e confesso que meus dedos coçam para experimentá-los pela primeira vez. ― Os dois começaram a se retirar da sala de jantar, enquanto mordomo e lacaio se aproximavam da mesa, e foram pelo corredor também pela penumbra. ― Ando tão ocupado com alguns assuntos que mal tive tempo para fumar.

― Negócios?

Katsaros abriu uma porta à direita e deixou-a aberta, em um sinal para que o convidado entrasse. Matias o fez, vendo um escritório com duas estantes às laterais, uma escrivaninha sob a luz da janela de cortinas abertas e uma pequena mesa com duas cadeiras alguns metros à frente. Duas velas estavam postas sobre ela, junto de uma caixa preta e um cinzeiro, indicando que os empregados sabiam qual seria o próximo destino do patrão. Ao entrarem, a porta foi fechada.

― Família ― Bergoy respondeu sucinto, guiando o amigo para a mesa. Cada um tomou um assento. ― Meu irmão desistiu de sua parte de terra na herança e agora eu terei que administrar a minha parte e a dele.

― E por que essa escolha da parte dele? ― Matias questionou com um mover de sobrancelhas, observando o outro abrir a caixa de charutos sobre a mesa. ― Lembro-me que você sempre tinha censuras a fazer sobre ele toda vez que se correspondiam na universidade...

― Otávio está perdido, completamente perdido. ― Bergoy soltou um ruído de desgosto e finalmente escolheu um charuto da caixa e ofereceu-o para o amigo, que recusou. ― Planeja viver de seus trabalhos de marcenaria e agricultura, acredita?

― Suas censuras não adiantaram muito, pelo visto.

― Veremos até quando, meu amigo ― Katsaros riu para si, enquanto colocava o charuto na boca e pegava uma caixinha de fósforos do bolso. ― Também sei que Otávio teve seu coração fisgado recentemente e, para o bem dessa família, uma dama de respeito. Peço à Mãe Terra que esse casamento aconteça.

― Então planeja devolver as terras de seu irmão se isso acontecer? Suponho que talvez ele venha precisar delas, se formar uma família no futuro...

Bergoy acendeu o charuto e deixou o palito de fósforo usado sobre a mesa. Após um trago e uma baforada, virou o rosto na direção do amigo com um sorriso.

― Como você disse, meu amigo, o tempo dirá. ― Ele deu um novo trago e soltou, a fumaça subindo em direção ao teto e o cheiro de tabaco lentamente escorrendo para o ambiente. ― Mas não era sobre isso que eu queria conversar com você. Ouvi dizer que anda um tanto próximo dos Gutiérrez...

― Deixa-me um tanto curioso o modo como conseguiu essa informação ― Matias inquiriu sem perguntar diretamente, cedendo ao seu hábito de batucar os dedos pelas coisas. Recordou-se do comentário de sua mãe de que poderia ser um excelente músico com aquelas boas noções para ritmo, contudo, deixou o pensamento perder-se da mesma forma que veio.

― Creio que, a essa altura, deve conhecer a Sra. Gutiérrez e como a língua daquela mulher parece ter vida própria ― Bergoy riu, soltando mais fumaça para o ar. ― Está dizendo aos quatro ventos que os filhos dela e do Dr. Salazarte são amigos. É melhor tomar cuidado. ― Apontou o charuto na direção do convidado, antes de levá-lo novamente à boca. ― Não duvido que ela tenha intenções de usá-lo de trampolim para o filho ou casá-lo com a filha. Mesmo que ela pareça uma mulher tola, sempre desconfie da capacidade de algumas pessoas...

― Estou ajudando a Srta. Gutiérrez em busca de uma solução para o problema do irmão mais novo, apenas isso ― Matias o interrompeu, soando incomodado. Bergoy voltou o rosto em sua direção, a pergunta óbvia pairando pelo ar junto da fumaça do charuto. ― O irmão dela tem um sonho repetido há anos e estamos procurando por uma possível interpretação. A Srta. Gutiérrez está extremamente preocupada, é de compadecer qualquer um.

― Oniromancia?! ― Bergoy gargalhou. ― Você é uma pessoa boa demais para comprar a ideia dos outros com facilidade, meu amigo, mas oniromancia... Reitero meu aviso para tomar cuidado, porque não tenho dúvidas de que a Sra. Gutiérrez pode estar usando dos filhos para chegar até você e suas irmãs.

― Também sei fazer meu julgamento de moral, meu caro, e peço que acredite em mim quando digo que sei o que estou fazendo. ― Matias fez questão de encarar Katsaros nos olhos, na tentativa de provar seu ponto.

― Não precisa se irritar por isso, sei que sabe fazer julgamento de moral, mas ― Bergoy ressaltou a palavra, o charuto entre os lábios ―, como seu amigo, sinto-me na obrigação de adverti-lo sobre essa família. A Sra. Gutiérrez pode parecer mais uma tola que não sabe controlar a própria língua, mas acredite em mim quando digo que pode ser perigosa quando quer. Ela está jogando todas as cartas possíveis na mesa para tentar fazer o filho conseguir um assento entre os Altos Membros do Conselho e você pode ser uma peça-chave para isso. Lembre-se do que eu disse sobre o nome Salazarte no Submundo… — Matias balançou a cabeça e torceu os lábios, aparentando descontentamento para o amigo à sua frente, que o sabia ler muito bem. — Você nunca poderá desatrelar o nome Salazarte de si mesmo, meu caro. O peso dos nomes de nossas famílias é algo que teremos que carregar por toda a vida. 

Bergoy bateu a ponta do charuto sobre o cinzeiro, derrubando algumas cinzas. A fumaça continuou a se espalhar pelo ar, enquanto ele observava o amigo e as considerações que passavam por aquela cabeça de testa franzida. Matias encarou as poucas cinzas que caíram sobre o cinzeiro, sendo iluminadas pela luz avermelhada. 

— Talvez o que nos resta seja tentar mudar o peso que o nome de nossas famílias trará para as próximas gerações, não? — Salazarte jogou a possibilidade, fugindo dos pensamentos que as palavras do amigo lhe trouxeram. 

Katsaros baforou para o ar e ele assistiu os anéis de fumaça irem desaparecendo em segundos. 

— Talvez. Talvez. — Antes de tragar mais uma vez, Katsaros o encarou de canto de olho. — Como você diz, meu amigo, o tempo dirá. 


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Notas finais do capítulo

Interrompemos nossa programação para o veredito da dúvida levantada duas semanas atrás: habemus dois capítulos semanais! Preparem-se porque agora teremos Dualitas às segundas e às quintas, por um bom tempo.
Uma feliz páscoa a vocês e até segunda o/



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