Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 19
Capítulo XIX




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Betina e Tibério foram recebidos na residência dos Gusmão e quando a porta fechou-se novamente às suas costas,  ser recebidos pelo calor do vestíbulo foi um alívio. O mordomo pediu primeiro pelo casaco de lã da bruxa, indo em seguida para o do Sr. Salazarte, que se movimentava de forma apressada, com certeza ansioso para ir logo ao centro da reunião naquela casa.

Betina envolveu mais o fichu¹ em torno de seus ombros e os dois partiram juntos atrás do mordomo. Viraram à esquerda e seguiram por um pequeno corredor, parando em uma grande sala de visitas que estava cheia de mulheres em todos os cantos possíveis e o falatório, que era audível até mesmo do vestíbulo, se tornou mais alto.

― Mas esta é uma reunião para discutir sobre o Conselho ou um encontro de comadres?! ― Tibério exclamou em um sussurro um pouco alto demais para a neta e sequer percebeu o próprio erro ao usar a palavra “Conselho”. O empregado se retirou com a mão atrás das costas, indo chamar o patrão no ambiente ao lado. 

Uma porta pesada separava os cômodos e as velas tingiam as cores dos vestidos das mulheres de tons avermelhados. A falação foi diminuindo e caindo para pequenos murmúrios, os recém-chegados no centro das atenções.

― Esta é a sala das mulheres ― Betina respondeu em um sussurro, num tom de voz que deveria ter sido usado pelo avô para a reclamação. Não que ele se importasse muito. ― A reunião costuma acontecer no salão ao lado. ― Ela apontou com a cabeça para a porta fechada pela qual o mordomo sumiu e enganchou-se mais em Tibério. ― Mas creio que logo o Sr. Gusmão deverá chamá-lo para se juntar aos demais, não se preocupe.

O Sr. Salazarte voltou-se para ela de sobrancelhas franzidas, evidenciando ainda mais as marcas de expressão em seu rosto, como se a neta tivesse dito um absurdo.

― Quer dizer que vocês, mulheres, vêm até aqui para tomar chá e fofocar? Que absurdo! Uma verdadeira perda de tempo! ― Junto do resmungo, fechou a cara no mesmo instante. ― É compreensível mantê-las longe de certos assuntos, mas, ora, não há necessidade de segregá-las todas dessa maneira.

Aquele era um fato que Betina tinha de concordar com o avô e uma das coisas que sentia falta da sociedade do Submundo de Tantris. Havia espaço para uma ou duas mulheres dentro do Conselho, mesmo que fossem somente um símbolo para mostrar que todos tinham voz. A verdade era que, por mais que censurassem mundanos e seus costumes, eles próprios endossavam algumas opiniões semelhantes...

― Eu diria que a fofoca sustenta parte de nossa sociedade, meu senhor. ― Uma mulher aproximou-se da dupla, vinda de uma das mesas que tinha todas as cadeiras ocupadas, e, assim que ela se levantou, o assento foi logo tomado por outra. ― Afinal, a informação precisa circular de alguma forma dentro do Submundo e me orgulho em dizer que nós, mulheres, temos uma grande parte nisso. ― Os lábios finos e coloridos com um leve tom rosado se moldaram em um sorriso de triunfo.

― Esta é Margarida Gusmão, irmã do Sr. Gusmão ― Betina apresentou e Margarida estendeu a mão, para receber o cumprimento do ex-líder do Conselho de Tantris. ― Este é meu avô, Tibério Salazarte.

― Mas que surpresa! ― a outra bruxa exclamou assim que afastou a mão após o cumprimento. Desfeito seu sorriso de triunfo, dirigiu um olhar provocador para Betina com seus olhos escuros. ― Confesso que estava curiosa para conhecer o famoso Sr. Salazarte de Tantris, mas como Betina é um tanto introvertida, perguntava-me se seria sensato oferecer uma visita à fazenda dos Tremonti.

De canto de olho, Tibério fez uma pergunta que a neta conseguiu interpretar muito bem. Para quem a conhecia, era uma surpresa e tanto alguém tomá-la por introvertida. Contudo, como poderia agir diferente se as bruxas de Mempolis faziam tanta questão de demonstrar como ela não era bem-vinda ali? Mesmo sem palavras explítictas,  gestos e olhares sutis ou indiretas disfarçadas em frases gentis falavam e muito. 

Não podia negar que até tentou por um bom tempo conseguir seu espaço no Submundo de Mempolis, fazendo visitas à várias famílias bruxas e, no início, até recebeu uma ou outra em sua casa, trazendo à mente os melhores conselhos de sua mãe de como uma esposa deveria se portar em relação às visitas, porém... Tinha a ligeira impressão de que seus visitantes tinham mais a intenção de julgá-la do que de fato procurar estabelecer algum relacionamento. 

Quanto a Saul, mantinha uma relação reduzida a negócios com seus conterrâneos bruxos, o que não era estranho, vindo dele. Ele não se importava em manter amizades próximas e ninguém parecia interessado em estreitar laços.

― Nossas portas estão abertas para quando quiser nos visitar ― Betina retrucou para a outra bruxa, tentando forçar um sorriso que soasse agradável.

― Sim, reitero o convite de minha neta e acrescento que, da minha parte, eu adoraria estreitar os laços com sua família, Srta. Gusmão ― Tibério se manifestou, com a rapidez de séculos no jogo social. ― Não tenho dúvidas de que eu e seu irmão teremos muito o que conversar sobre política...

― Então por que não começarmos isso já, Sr. Salazarte? ― Um homem de tez azeitonada e um tanto semelhante à Margarida parou logo ao lado dela, o sorriso largo que, mesmo para quem sabia muito bem ler intenções escondidas, não soava assim tão forçado. Os olhares femininos ficaram ainda mais grudados neles. No mesmo instante, Tibério ergueu os ombros e estufou o peito. ― É uma honra receber o antigo líder do Conselho de Tantris em nossa casa, e também fico muito feliz de vê-la novamente, Sra. Tremonti. 

Enquanto o dono da casa cumprimentava Betina, Margarida aproveitou-se para se aproximar do Sr. Salazarte e sussurrar-lhe um pouco alto demais:

­― Eu disse que a fofoca move o Submundo de Mempolis, Sr. Salazarte. Todos aqui nesta sala sabem o porquê o senhor está aqui. E também sei muito bem porque o senhor quer se aproximar de nós. ― A Srta. Gusmão se afastou, novamente o sorriso triunfante no rosto.

― Bem, minha jovem, então por que não conta a história para mim? Tenho certeza de que poderei acrescentar alguns fatos muito interessantes à sua narrativa, hm?

Margarida se engasgou, parecendo indignada.

― Não tenho dúvidas de que sua presença terá muito a acrescentar, Sr. Salazarte, e não apenas com fatos interessantes sobre sua vida. ― Inácio Gusmão tentou consertar a fala da irmã, se aproximando do outro bruxo e colocando uma mão sobre seu ombro. ― Venha, estamos todos reunidos na sala ao lado e apenas esperávamos pela sua chegada para nos relatar o que aconteceu na fazenda...

― E quanto à minha neta? Creio que ela deva ter até mais o que acrescentar do que eu mesmo, já que é a senhora da fazenda Tremonti, não? ― O Sr. Salazarte voltou o rosto para Betina, que percebeu os olhares dos três pararem sobre ela.

― Tenho certeza de que o senhor é capaz de substituir Saul na reunião, vô. ― A Sra. Tremonti negou e deu um passo para trás, enquanto Margarida se aproximava dela. ― Tudo o que tenho a relatar é o mesmo que o senhor viu acontecer.

Não pela primeira vez naquela noite, Salazarte arqueou as sobrancelhas em um questionamento mudo para a neta, e voltou-se na direção do anfitrião, deixando que esse o guiasse para a sala ao lado, enquanto ele próprio iniciava um novo diálogo, claramente querendo conduzir a conversa.

― A gravidez te fez bem, Betina ― Margarida opinou, levando a convidada para a mesa de onde saiu. Ao vê-las chegarem, duas mulheres se levantaram e saíram conversando em direção a uma grande mesa lateral, onde estavam servidos comes e bebes. ― Parece mais cheia, mais corada...

― Agradeço os elogios, Margarida. Ser mãe traz tantas preocupações que a minha aparência costuma ficar em segundo e até mesmo em terceiro plano ― a Sra. Tremonti retorquiu e ambas se sentaram nos lugares recém-desocupados. ― E sinto muito pelo que aconteceu com sua cunhada. Não pude vir prestar minhas condolências pessoalmente na época...

― Entendo ― a Srta. Gusmão interrompeu, movendo os lábios para a esquerda, como se tivesse desistido de sorrir no meio do caminho. ― Pelo que me recordo, sua gravidez estava no fim naquela época, é compreensível... Uma pena que nem todas nós possamos ser afortunadas como você, de viver para segurar a filha nos braços após o parto.

Betina não tomou a frase da outra bruxa como uma forma de ressentimento ou provocação. Talvez fosse aquela a intenção de Margarida, mas, para ela, havia naquelas palavras um tanto de dor escondida nas entrelinhas. Sutilmente, deslizou sua mão sobre a da outra na tentativa de dar um aperto consolador.

― Sra. Tremonti, que coisa horrível aconteceu na fazenda de vocês! ― a bruxa ao lado dela exclamou, levando-a a perceber que a atenção de todas as presentes em volta da mesa estava voltada às duas e apenas não ousaram se manifestar, talvez esperando por algum sinal da anfitriã. Levou as mãos rapidamente para o colo.

― É assustador pensar que há um lobisomem descontrolado tão perto de nós! ― outra se manifestou, cobrindo a boca com as mãos.

― Que perigo isso acontecer justamente quando seu marido está fora, Sra. Tremonti! ― uma do outro lado da mesa opinou.

― Seu marido viajou? ― a bruxa ao lado de Betina inquiriu.

― Sim, um dia antes do primeiro ataque à fazenda...

― Imagino que a senhora gostaria de uma visita, não? ― a mesma bruxa continuou. ― Deve ser assustador para a senhora e seu avô terem de lidar com isso sozinhos... Um perigo! Talvez fosse bom ter uma companhia bruxa...

― Acredita mesmo que o Sr. Salazarte é um velhinho ingênuo e indefeso, Helen? ― Margarida riu, pegando um baralho do centro da mesa e começando a cortar as cartas para qualquer que fosse o jogo que acontecia antes das duas se juntarem.

― Eu estava querendo ajudar... ― Helen se justificou um tanto tímida. ― E me ofereci porque imagino que a Sra. Tremonti pudesse gostar de ter mais companhia para conversar sobre o assunto.

― Eu agradeço a gentileza, querida. ― Betina colocou sua outra mão sobre a dela e deu alguns tapinhas para ressegurá-la. ― Saiba que as portas da fazenda estão abertas para quando quiser nos visitar.

No mesmo instante, a Sra. Tremonti pôde jurar que sentiu todos os olhares da mesa caírem sobre Helen, em um julgamento silencioso e que quase fez ela mesma se encolher. Um tanto retraída e talvez não preparada para aquilo, a bruxa ao seu lado pareceu murchar em ânimo enquanto se encolhia um pouco na cadeira.

― Podemos marcar um dia, quando a senhora não estiver muito ocupada... ― A fala de Helen saiu quase em um sussurro, que Betina conseguiu compreender somente por estar perto o suficiente.

― Não se preocupe com isso. Com exceção de amanhã, quando meu marido irá retornar de viagem, tenho boa parte do dia livre...

Com a mera menção de Saul Tremonti na conversa, a bruxa ao seu lado arregalou os olhos e encarou-a como se ela tivesse anunciado que um lobisomem invadira a casa naquele exato momento.

― Claro. ― Ela soltou uma risada sem-graça. ― Podemos marcar um dia.

Betina recebeu as cartas de Margarida e observou a manilha, percebendo que estava sem sorte. Ao seu redor, as demais bruxas cochichavam coisas da qual ela não conseguia compreender além de uma palavra ou outra, contudo, podia jurar que ouviu o nome Tremonti pelo meio.

Quando o jogo de fato começou, parecia que tudo tinha voltado a ser igual a todas as reuniões que participara na casa dos Gusmão, onde tudo se resumia a ela sendo ignorada solenemente ou tratada como se fosse uma intrusa entre eles. 

Ao ver que até mesmo Helen, que parecia empolgada em conversar minutos atrás, tinha voltado a fingir que ela não estava ali, Betina sentiu o desânimo bater mais uma vez.

 

 

― Desastre, Tina, não há como descrever essa cidade de uma forma que não seja essa.

Ambos avô e neta chacoalhavam de volta para casa na única carruagem da família Tremonti. O veículo fechado possuía quatro lugares e raramente era usado por Saul, a não ser nas ocasiões um tanto mais formais ou quando precisava sair junto da esposa.

― Essa reunião mais parecia um encontro de vizinhos para discutir sobre as redondezas ― Tibério continuou em suas reclamações, soltando seu habitual “hunf” misturado com uma risadinha. Betina encarava o chão do veículo, sentindo-se esgotada. E não apenas fisicamente, mesmo que não houvesse razões para isso. ― E Inácio é um líder extremamente manipulável, um fantoche nas mãos da irmã e dos outros bruxos. Sequer deve saber o que comer no desjejum, se olha para todos em busca de aprovação até mesmo para a sentença mais simples. ― Ele balançou a cabeça e fez um barulho de desagrado com a língua. ― Liderança por sucessão pode funcionar bem para mundanos, mas não para nós! Ou seremos liderados por idiotas como Inácio... Essa cidade precisa de uma reforma, Tina, uma reforma!

― O senhor planeja se envolver em política novamente? ― a Sra. Tremonti inquiriu de olhos semicerrados, a cabeça encostada contra a parede da carruagem e sentindo seriamente a necessidade de fechar os olhos e ficar sozinha consigo mesma. Céus, até ela mesma tinha dificuldades para se reconhecer em certos momentos...

― Não, Tina, meus anos de glória infelizmente acabaram ― ele retrucou com um breve sorriso de canto, os olhos parecendo brevemente ver algo bem longe dali. ― Talvez eu aconselhe este jovem na liderança. Essa cidade, ou ao menos os bruxos, precisam de um líder que esteja à altura... ― Tibério parou e fixou os olhos na neta à sua frente, as pálpebras dela quase completamente fechadas. ― Eu ouvi algumas coisas que me deixaram um pouco alarmado sobre seu marido...

― São apenas fofocas... ― Betina acrescentou, um tanto aérea na conversa.

― Fofocas ou não, acredito que a razão pelo seu tratamento vergonhoso daquela forma não são as suas origens, minha querida... ― Visto a recepção que Tibério tivera naquela noite, sempre rodeado de gente querendo conversar, o raciocínio poderia fazer algum sentido. A não ser que o interesse fosse em conhecer o ex-líder quase deposto de Tantris... Betina preferiu manter suas possibilidades dentro da própria cabeça. ― Saul nunca lhe contou sobre a própria família?

― Ele possui apenas alguns primos que moram em outra cidade, nos vimos uma vez ou outra...

― Eu quero dizer sobre o próprio passado, os outros Tremonti ― Tibério a interrompeu e a Sra. Tremonti deixou a cabeça tombar para o lado e respirou fundo, forçando-se a mediar entre o próprio cansaço e o avô. ― Os Tremonti não parecem ter uma reputação muito boa, pelo que ouvi dizer...

Aquela era uma possibilidade que Betina considerou uns bons anos antes, contudo, o que Saul ou os Tremonti poderiam ter feito para receberem uma rejeição como aquela? Não, mexer no passado era algo que Saul odiava e ela preferia deixá-lo em paz.

― E seu marido certamente não dá a mínima para a própria reputação...

― Saul tem muito com o que se preocupar.

― E deveria acrescentar a própria esposa à lista de preocupações. Ou acha que não sei como isso te afeta, Betina?

Outra vez o avô a deixou em uma rota sem saída na conversa e, com a mente cansada demais, demorou um pouco mais do que o normal para procurar e articular a resposta, deixando o silêncio responder por ela por longos instantes.

A carruagem parou por um momento, indicando que deveriam ter chegado à entrada da fazenda. Após alguns segundos, voltaram a se mover, dessa vez chacoalhando bem menos.

― Pense bem no que estou te falando ― o Sr. Salazarte recomeçou, depois de ter aguardado por uma reação da neta além de ela voltar a abrir os olhos. ― Saul tem muito a esconder e se você não quer saber do passado de seu próprio marido, eu o farei. Pelo seu próprio bem, Tina.

Completamente exausta, Betina não conseguiu nada além de balbuciar uma resposta fragmentada. Fitou o avô a encarando com gravidade e, ao perceber que aquela conversa encerraria com o abrir da porta pelo cocheiro, percebeu que Tibério estava realmente disposto a trazer mudança à Mempolis, fosse na política ou na vida da própria neta.


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Notas finais do capítulo

¹: Espécie de lenço ou mantilha usado por mulheres para cobrir a cabeça ou apenas os ombros.



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