Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 2
Capítulo II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/808312/chapter/2

Colocar os pés novamente em terra firme deu-lhe uma leve tontura. Em parte por ser estranho estar completamente parado outra vez, depois de ter se acostumado a passar as últimas semanas sentindo o vai e vem constante do mar; em parte porque não estava preparado para ser bombardeado por tanta informação sensorial de uma vez só e em parte porque, por mais que tenha tido os últimos três meses para se acostumar com a ideia de estar de volta na sua cidade natal, de fato estar lá ser algo completamente diferente.

Envolvendo com força a alça de sua mala grande e pesada, Matias relanceou os olhos azuis pelo porto, vendo os outros passageiros que desceram do navio junto dele começarem a se misturar no meio da paisagem e outros desconhecidos simplesmente andarem por todos os lados e berrarem sabe-se lá o que como se fosse somente mais um dia qualquer no meio da semana. 

E de fato era mais um dia de meio de semana.

O bruxo começou a andar, antes que alguém o empurrasse para que saísse da frente, virando a cabeça por todos os lados em busca de alguma face que conhecesse. Até sua linha de visão parar nos degraus que demarcavam o início do porto. E lá estava parado Leônidas Salazarte, as mãos atrás das costas e um olhar perdido no navio que recém aportara.

Conforme se aproximava do pai, Matias foi capaz de ver melhor os detalhes, como as pontas do casaco cinza esvoaçando pelo vento frio do início da manhã e certos fios grisalhos no cabelo preto, indicando que a idade começava a aparecer um pouco. Como sempre, ele estava nada menos do que impecável. 

O Dr. Salazarte pareceu se dar conta do filho vindo em sua direção, fazendo-o apressar o passo. Em poucos segundos, os dois estavam finalmente frente a frente outra vez. Matias pôde perceber perfeitamente o olhar do pai percorrendo-o de cima a baixo e ficaram em silêncio, em um reencontro um tanto desconfortável, onde nenhum dos dois parecia saber exatamente o que dizer.

― Como foi de viagem? ― Leônidas foi o primeiro a pronunciar algo.

― Bem ― ele respondeu de forma sucinta, condensando as semanas desconfortáveis e cheias de mil pensamentos em alto mar em apenas uma palavra. A verdade é que não passara a viagem exatamente bem, mas de que importava? ― Como vocês estão?

Ao em vez da resposta, Matias foi envolvido em um abraço, que o fez levar alguns segundos para compreender o que estava acontecendo. O pai terminou o gesto com dois tapinhas em suas costas, para então afastar-se. Aquela era a forma de Leônidas demonstrar que sentira saudades.

― Você precisa urgentemente de um banho ― o Dr. Salazarte decretou, fazendo o filho dar um sorriso sem-graça. ― Vamos, não posso me demorar muito.

Junto de um gesto com a mão, ele partiu na frente, fazendo o filho segui-lo, ambos desviando-se das pessoas que iam em diversas direções e berravam qualquer coisa, que provavelmente faria sentido para alguém.

Parada à beira da rua estava uma das carruagens da família Salazarte. Leônidas abriu a porta e deixou que o outro entrasse primeiro com sua mala, para então fazer um movimento com a cabeça para o cocheiro e também adentrar o veículo. Assim que a porta se fechou, os dois cavalos começaram a trotar.

Demorou menos de trinta segundos para Matias perceber que o motivo da pressa do pai provavelmente se relacionava ao trabalho, fosse considerar o fato dele ter escolhido a sege¹ ao em vez do coche da família com quatro lugares ou pela maleta que ele apoiou sobre as pernas. Quanto à sua grande mala, teve que dar um jeito de equilibrá-la entre os pés.

― Como vocês têm passado? ― Matias retomou a pergunta que fizera minutos antes e ficou perdida na conversa. ― Não pude deixar de pensar em Matilda e em como ela deve ter se abalado...

― Matilda tem começado a retornar ao que era antes ― Leônidas o interrompeu. ― Acredito que ela não voltará a frequentar certos eventos tão cedo, mas tem recuperado um pouco da vivacidade nos últimos dias.

― E quanto à Meredith e Betina? A última carta que recebi de Tina foi para me contar sobre o nascimento da filha há uns bons meses, ela parecia exultante.

Distante em outro país e no norte do continente, comunicar-se com a família era algo que não acontecia com tanta frequência quanto Matias gostaria, o que o fez perder alguns eventos importantes ou ficar sabendo deles com uma boa dose de atraso. Enquanto sua irmã mais velha provavelmente recebia sua carta parabenizando-a pela notícia do nascimento de sua primeira sobrinha, os fatos trágicos envolvendo os Salazarte provavelmente se desenrolavam em Tantris.

― Betina retornou para Mempolis com o marido. Saul não podia se distanciar da fazenda na época da colheita e ela queria estar em casa para receber seu avô. ― Com a nova informação, Leônidas viu o filho franzir as sobrancelhas, não compreendendo o que acontecera. ― Digamos que certas atitudes do seu avô vieram a público.

Matias tomou alguns segundos para absorver a nova informação, engolindo a saliva e percebendo os olhos do pai sobre si.

― E o que aconteceu com o lobisomem? — Matias questionou, pulando para outro assunto e o principal motivo que o trouxera de volta.

― Você sabe qual é a condenação para homícidio. ― O médico fixou os olhos na abertura à frente que permitia ver o cocheiro, mexendo os lábios para um lado e para outro, como se engolisse algo amargo.

Não foi preciso de mais do que aquilo entre os dois para deixar claro qual fora o destino do lobisomem que atacou Brigite Salazarte e depois matou Bernardo, o filho, que foi atrás dele para o acerto de contas. Era uma vida por outra vida e não havia outro final que não fosse a morte do culpado.

― Seu avô foi afastado do cargo na mesma semana e achou mais prudente sair da cidade ao menos pelos próximos meses ― Leônidas continuou o relato após uma breve pausa. ― Alguns adversários podem se aproveitar da revolta contra ele para justificar um ataque.

Não era novidade nenhuma para os Salazarte e para algumas pessoas do círculo mais próximo do Conselho que Tibério favorecia quem ele quisesse. Que mal havia naquilo, se ninguém além dos envolvidos soubesse? Se ele tinha o poder, que usasse para alguma coisa.

O problema era que a maioria das pessoas não concordaria com aquele raciocínio. Matias era uma dessas pessoas e sabia que o pai também, porém, também sabia que em certos casos era melhor manter o silêncio.

Resolveu mudar de assunto, sabendo que precisaria de uma explicação mais detalhada do que aquela e, ao considerar pelo andar da carruagem, não demoraria tanto assim para chegar em casa.

― E quanto a Meredith? Como ela está­?

― Talvez seja melhor você mesmo conversar com ela ― Leônidas retorquiu, envolvendo a maleta com as mãos, para evitar que o objeto caísse do colo com a virada que o veículo fez. ― Você tem mais facilidade para falar com ela e acredito que Meredith irá adorar te dar um relato detalhado.

Os dois ficaram em silêncio por mais alguns segundos, ouvindo somente o barulho das rodas sobre um chão de cascalho. Estavam se aproximando da propriedade dos Salazarte.

― É uma pena que você ainda não tenha uma esposa. Seria útil ter uma companhia feminina para suas irmãs.

― O senhor pensou em contratar uma preceptora para elas? ― Matias desviou do assunto com mais facilidade do que esperava, levantando a possibilidade mais óbvia. Sabia que deveria algumas satisfações quando retornasse para casa, mas com uma vida tão parada quanto a sua, o que teria para contar?

― Suas irmãs estão um pouco grandes demais para isso.

― Mas como o senhor disse que seria bom para as duas terem uma companhia feminina...

O veículo parou e Leônidas logo abriu a porta ao seu lado.

― Conversamos sobre isso mais tarde. ― Ele virou as pernas para o lado, indicando que permaneceria na sege. ― Tenho um paciente para visitar agora, volto para o jantar.

Matias pegou sua mala de entre os pés e conseguiu fazer um pouco de malabarismo para descer da carruagem. Assim que pisou sobre o cascalho, voltou-se para trás, ouvindo o pai chamar o seu nome. Os dois se encararam, com Leônidas parecendo saborear as próprias palavras antes de pronunciá-las.

― Conversamos mais tarde.

Aquilo não parecia ser exatamente o que o médico planejava dizer, porém ficaram por isso mesmo, pois a porta do veículo foi fechada e os cavalos voltaram a trotar.

Matias observou a sege se afastar e, assim que ela cruzou os portões da propriedade, tornou-se para frente, encarando a fachada da casa que seria sua residência novamente. Parecia inalterada, com os três andares sendo decorados pelas fileiras de eucaliptos nas laterais, as inúmeras janelas e a pintura marrom do século anterior. O sol fraco e a aparência cinza que aquele dia tinha ajudavam a aproximar a imagem que mantinha na memória, de quando viu aquele lugar pela última vez.

Partira no outono e voltara quase no findar da mesma estação.

Subiu os poucos degraus da entrada e, durante o processo, a porta da frente foi aberta. Ao caminhar mais alguns passos, foi capaz de ver o mordomo segurar a maçaneta e fazer um gesto que o convidava a entrar. O homem parecia o mesmo de quatro anos atrás, com o casaco vermelho desbotado e a peruca velha sobre a cabeça.

― Gostaria que eu levasse a mala para o seu antigo quarto?

Assentindo à pergunta, o bruxo entregou o objeto para o criado, aliviado por tirar o peso das mãos. A porta foi fechada atrás de si.

― Irei pedir para que preparem um banho para o senhor. O desjejum acabou de ser servido, caso o senhor prefira se alimentar primeiro.

Após dar as breves informações, o homem se afastou com uma reverência de cabeça, caminhando pelo corredor em uma rapidez impressionante e desaparecendo escada acima. Matias encarou os arredores de paredes brancas e colunas aqui e ali. Finalmente estava sozinho.

― Paizinho?

A voz de Matilda ecoou no corredor e Matias sobressaltou-se, indo na direção que a ouviu. A garota parou no arco de entrada para a sala de jantar, abrindo a boca em um formato de "o" ao vê-lo.

― Matias! ― Ela correu e o envolveu em um abraço. O bruxo retribuiu o gesto, passando com força os braços ao redor da cintura da irmã, envolta no tecido de seu vestido vermelho-claro. Sentiu um cheiro característico que sabia ser água de colônia e estranhou. ― Por que não fomos avisadas de que você voltaria hoje? ― Ao se separarem, percebeu que ela torceu o nariz. ― Céus, você cheira pior do que uma ninhada inteira de gambás.

Matias tomou os próximos segundos para fazer uma breve análise da irmã. Os cabelos pretos estavam firmemente presos e, como sempre, ostentava seu olhar de confiança misturado com um sorriso cheio de felicidade. Próximo aos olhos castanhos estava uma pintinha que não se lembrava de estar ali. Aquilo era uma mouche?²

― Você cresceu ― ele constatou sorrindo. ― Está uma moça linda.

Na última vez em que se viram, Matilda tinha ainda seus doze anos, fazendo-o sentir uma leve pontada de tristeza por não ter presenciado o crescimento da irmã.

― Matias!

A voz de Meredith gritou à distância e logo a garota tornou-se visível, os cabelos escuros soltos pelas costas e ainda em suas roupas de dormir, ocultas sob um robe amarelo-claro. Provavelmente tinha acordado há poucos minutos e desceu correndo ao ouvir a sege parar e ver pela janela o irmão descer.

― Eu não acredito que você voltou! ― A garota também o envolveu em um abraço, sendo correspondida no mesmo instante. ― Consegue acreditar que eles fizeram o funeral sem você?

Ao separar-se de Meredith, o bruxo olhou para uma e para outra em busca de explicações. Antes de uma delas se manifestar, resolveu ele mesmo fazer uma proposta:

― Por que vocês não me acompanham no desjejum e me inteiram do que aconteceu?

As garotas se encararam e as faíscas dali poderiam ser visíveis.

― Irei me trocar, volto logo.

Meredith deu as costas para os irmãos e Matilda fez uma careta, uma provocação inútil, já que não poderia ser vista. Ao perceber o olhar confuso do irmão mais velho, a garota desfez a expressão.

― Ela me odeia! ― A jovem bruxa exclamou e viu-se obrigada a pelo menos esperar o irmão se limpar. No intervalo de tempo, nem sombra de Meredith. Quando Matias retornou, ela continuou como se seu discurso nunca tivesse sido interrompido. ― Como eu poderia saber que eu e mamãe seríamos atacadas naquela noite? Eu não tenho culpa, mas ela não entende! 

Matilda puxou-o pela mão e guiou-o para a sala de jantar.

― Pelo que eu entendi, você e nossa mãe voltavam de um baile mundano, quando foram interceptadas na entrada da nossa casa, é isso?

Ambos se sentaram em cadeiras lado a lado e Matias foi logo cortando dois pedaços de bolo para seu prato vazio. Apenas depois que se recordou do guardanapo.

― E Meredith diz que se não tivéssemos saído naquela noite, nada daquilo teria acontecido.

― O ataque aconteceu dentro da nossa propriedade, a vítima poderia ter sido qualquer um ― ele acrescentou antes de dar a primeira mordida na comida.

― É isso que ela parece não entender! Mas Meredith insiste em falar que a culpa é minha, porque eu tirei a mamãe de casa por futilidade minha e blá-blá-blá. Ela parece procurar por qualquer coisa para me odiar. ― A garota também pegou um pedaço de bolo para o próprio prato, começando a esmigalhá-lo e comer o que conseguia segurar. ― Ela implica com a minha aparência porque diz que estou mundana demais, implica quando eu ia em bailes porque eu estava sendo mundana demais e não devia encorajar rapazes mundanos a me cortejar.

― Você tem feito o que? ― Matias soltou a pergunta em um engasgo. Foi obrigado a tomar um gole de chá para engolir melhor.

― Eu nunca passei dos limites, juro! Mas eu tenho que ser censurada se Meredith não sabe se divertir?

― É uma diversão um pouco arriscada...

― Nosso pai nunca disse nada sobre. ― A garota deu de ombros.

Matias guardou para si mesmo que o pai ainda cometia a mesma atitude de ser indulgente demais com a filha mais nova. Ela era a única que conseguia dobrá-lo com palavras e cara de choro. E funcionava em boa parte das vezes. Certas coisas, pelo visto, pareciam continuar as mesmas.

― E como você está, Tilda? Eu imagino que… ― Com a pergunta, a garota ergueu os olhos na direção do irmão. ― Você foi a pessoa com quem eu mais fiquei preocupado.

A voz de Matias foi baixando de tom conforme as palavras foram sendo ditas, finalmente conseguindo tirar uma das dúvidas que mais o atormentaram durante a viagem. Matilda estava com a mãe no momento em que ela fora morta. Como aquilo havia afetado a mente de uma garota de apenas dezessete anos?

A jovem bruxa olhou para as próprias mãos, que terminaram de esmigalhar o pedaço de bolo. Ao invés de responder, ela continuou passando pelos dedos as migalhas que ainda sobravam.

― Eu acabei desmaiando em um certo momento e... ― Ela passou a língua pelos lábios, lentamente colocando as palavras em ordem. ― Não me lembro de muita coisa.

― Você foi levada para depor no Conselho? ― o bruxo questionou, ignorando completamente a comida e tocando na mão da irmã, fazendo-a abandonar o que sobrou do bolo.

― Apenas uma vez. Vovô não queria que eu me envolvesse demais nessas coisas.

Matias sabia que Tibério tomou o depoimento da neta como a prova cabal da culpa do lobisomem acusado. Tudo se encaixava, testemunhas o condenavam e não precisou de esforço para conseguir a sentença que queria. Mesmo quando Bernardo se envolveu onde não devia.

― Todos querem me tratar como uma criança e... ― Ela soltou o que poderia ser uma mistura de risada com choro engasgado. ― Fingir que eu não estava lá não vai... ― A fala foi pausada e ela respirou fundo, tendo sua mão afagada pela do irmão. ― Meredith pode não estar errada em algumas coisas que ela fala.

― Não é culpa sua. Independente de qualquer coisa que Meredith tente lhe acusar, há apenas um culpado no que aconteceu.

A garota deu um sorriso triste e encarou o bruxo ao seu lado, deixando-o ver as lágrimas brilhando em seus olhos. O orgulho e a altivez haviam desaparecido. Mesmo de lado, ela foi puxada para um abraço.

― Eu vou estar com você de agora em diante.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

1: Veículo do século XVIII, de meia caixa com dois lugares e duas ou quatro rodas.
2: Pintas falsas.