Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 1
Capítulo I


Notas iniciais do capítulo

Olá para você, cara pessoa que chegou até aqui!
Se não é conhecedor do universo das Crônicas do Submundo, deixarei o link para as outras histórias nas notas finais, mas não se preocupe, pois essa pode ser lida de forma independente.
Se você já é leitor antigo: finalmente nasceu! Tivemos alguns atrasos por motivos pessoais e de tempo, mas decidi trazer um "presente de natal" pra vocês e postar os três primeiros capítulos da Dualitas de uma vez.
Aproveitem ♡



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I. Cócito

"Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira"

― Anna Karênina, Liev Tolstói

 

 

A vida no vinhedo dos Tremonti não era mais como antes.

O sol do meio de tarde era frio e o ar carregava o cheiro de terra misturado com açúcar queimado e capim seco. Betina seria uma das únicas pessoas na fazenda capaz de dizer quais eram as ervas usadas naquela mistura que os trabalhadores jogavam nas fileiras de parreiras a se perderem de vista, mesmo que não compreendesse muito bem a escolha do marido por algumas delas. 

Seria uma questão de semanas para que aquelas folhas perdessem o tom de verde e passassem para marrom, conforme o outono fosse sendo substituído pelo inverno.

A bruxa apoiou os cotovelos sobre a amurada da varanda, estreitando os olhos azuis para enxergar melhor as pessoas à distância. Seguindo em linha reta, eram parreiras a perder de vista. Ao longe, a serra que delimitava os limites de Mempolis se misturava com o azul clarinho do céu.

― É uma loucura dar essa mistura na mão de mundanos. ― A voz de Tibério começou a se tornar mais próxima, encontrando mais um ponto para reclamar ao marido da neta. Parecia ser sua atividade favorita desde que chegou. 

― Eles acreditam ser apenas uma mistura de fertilizantes para a terra, não há perigo algum nisso ― Saul retrucou para ele.

Betina virou a cabeça para trás, na direção das enormes portas de vidro escancaradas, que marcavam a mudança do ambiente da sala de estar para a varanda dos fundos, e viu seu marido e seu avô caminhando até onde estava, o bruxo mais velho na frente.

― É uma irresponsabilidade sem tamanho! ― Tibério exclamou e parou com uma mão na cintura e a outra balançando no ar, seguindo a agitação de sua fala. ― Correr o risco de ter seus trabalhadores desconfiando do patrão que não envelhece não é suficiente? Agora quer dar uma mistura dessas na mão deles? ― ele abaixou a voz, mesmo que não fosse capaz dos trabalhadores compreenderem as palavras estando tão afastados. ― Francamente...

Saul encarou um ponto acima da cabeça grisalha do outro bruxo, seu olhar se cruzando com o da esposa, que estivera o tempo todo observando-os.

― Vou deixar o senhor na companhia de Betina ― o dono da fazenda informou, pedindo de forma velada para que ela fizesse companhia ao avô. ― Preciso terminar de ler alguns papéis, antes que minha presença seja requisitada no jantar.

Sequer se importando de disfarçar a indireta sobre as reclamações de Tibério para a neta de que, como dono e senhor daquela casa, seu marido deveria estar presente nas refeições mais importantes, Saul se retirou, atravessando a porta pela qual passara menos de dois minutos antes. O membro mais velho da família Salazarte soltou um resmungo e voltou-se na direção da neta, caminhando até ela enquanto soltava uma risada sem humor.

― Nunca vou me cansar de dizer que seu pai estava louco quando deixou que você se casasse com esse homem ― ele disse para ela, parando ao seu lado e apoiando uma mão sobre a amurada.

Era a primeira vez que Tibério fazia aquela reclamação naquele dia, porque se fosse considerar todas as vezes desde que ele se mudara para a fazenda dos Tremonti… Ele não se adaptava ao lugar e também não parecia muito disposto a isso. Mesmo que não tivesse muita escolha de para onde ir.

― Saul sabe o que está fazendo. ― Betina aproximou-se do Sr. Salazarte, passando uma mão sobre as costas dele em um gesto de carinho. ― Muitas vinhas adoeceram do ano passado para cá e não podemos arriscar que a colheita do próximo ano seja escassa como essa.

Tibério parou, analisando a neta com seus olhos azuis perspicazes. Herança do sangue dos Salazarte e marca registrada na natureza de alguns membros da família. No caso de Tibério, sua percepção não era utilizada de forma tão pacífica como no de Betina.

― As vinhas não têm sido a única coisa a adoecerem nessa fazenda. ― Ele viu a bruxa virar o rosto, encarando os trabalhadores que se afastavam cada vez mais em sua tarefa. ― Para quem te conhece há tanto tempo, é nítido a sua mudança de estado de espírito quando está em Tantris e quando está aqui. 

― É difícil para qualquer um de nós manter nosso estado de espírito habitual depois de tudo o que estamos passando nos últimos meses.

― De fato... ― o bruxo murmurou, encarando o horizonte na mesma direção que a neta, porém com um olhar mais além.

Betina percebeu que a linha de visão do avô terminava nas serras, provavelmente relembrando tudo o que teve de deixar para trás às pressas na antiga cidade. Bem sabia que o humor mais irritadiço do que o normal devia-se em parte à grande injustiça que ele dizia estar acometendo a família. Quanto a ela, preferia guardar para si mesma as próprias opiniões sobre a vida política do avô. 

Mesmo estando há dez anos distante de sua cidade natal, não era novidade alguma para Betina que atitudes por trás dos panos não eram algo recente para Tibério.

― Senhora... ― A babá apareceu de repente, fazendo com que os dois virassem os rostos para trás. ― Ana acabou de acordar ― ela informou, junto de uma breve reverência. Parou, mantendo o olhar voltado para o chão.

― Nos vemos novamente no jantar ― a Sra. Tremonti informou para o avô, dando um último afago nas costas dele.

Betina acompanhou a empregada, atravessando em silêncio a sala de estar vazia. Ao chegarem no pequeno hall de entrada, subiram as escadas para o segundo andar, onde estavam todos os dormitórios da casa.

― A Sra. Mendez se ofereceu para ser ama de leite da pequena Ana. A filha dela está passando pelo desmame e ela ainda tem muito leite... ― a mulher informou, vendo a patroa balançar a cabeça em negação. ― Ela diz que quer fazer isso em retribuição por tudo o que a senhora...

As duas pararam na porta do berçário e, antes que Betina colocasse a mão na maçaneta, apoiou-a sobre o braço da empregada, em um gesto silencioso para que a encarasse.

― Nada do que eu faço é esperando retribuição.

― Mas...

― Vamos, ou tenho certeza que Ana começará a chorar se demorarmos mais alguns minutos. 

Junto de um sorriso, Betina deu aquele diálogo por encerrado, abrindo a porta e preparando-se para receber a filha cheia de energia após a soneca da tarde.

 

 

A sala de jantar, tão iluminada e acolhedora durante o dia com a sua decoração feita de azul e branco, adquiria ares sombrios à noite, bem como o restante da casa. Dois castiçais sobre a mesa serviam de iluminação, lançando sombras para os rostos dos três ocupantes e clareando os pratos sobre a toalha branca.

Betina cortou um pedaço do lombo, ouvindo somente o barulho de faca e garfo contra a cerâmica. Olhou para os lados, vendo Tibério e Saul mais concentrados nas próprias comidas. Às suas costas, podia sentir perfeitamente a presença do mordomo e do lacaio, encostados contra a parede e esperando um sinal do patrão para trazer a sobremesa ou servir mais vinho ou água.

― Recebi uma carta de meu pai no final da tarde. ― A bruxa finalmente quebrou o silêncio que durava alguns minutos. O avô olhou para ela, enquanto o marido manteve os olhos cinzentos sobre a comida. ― Ele espera que Matias retorne dentro dos próximos dias.

― Nenhuma novidade sobre suas irmãs? ― Salazarte questionou, bebericando um gole de vinho após engolir o que mastigava.

― Matilda parece estar se recuperando do baque, e quanto a Meredith...

Ela sequer precisou continuar para que a mensagem fosse entendida. Sua irmã mais nova continuava tempestuosa como sempre, transformando a relação com a caçula em um campo de guerra.

― Seria bom que você estivesse lá ― Tibério opinou. ― Alguém precisa tentar colocar juízo na cabeça dessas duas, já que seu pai não para em casa.

― Acredito que Matias conseguirá fazer isso quando retornar. ― A bruxa pegou o guardanapo para limpar a boca, terminando de comer tudo o que desejava da refeição. Saul ainda mastigava em silêncio.

― Seu irmão terá muito com o que se ocupar, tendo que resolver todas as pendências que Bernardo deixou com os inquilinos ― o Sr. Salazarte continuou, deixando o garfo parado no ar, para primeiro terminar de falar. ― Sabe-se lá que tanto ele aprontou quando ainda estava vivo.

― O senhor não pode querer que todos os problemas a serem resolvidos fiquem sobre as costas de Betina. ― Saul finalmente se manifestou.

― O que eu quero dizer, meu caro, é que Matilda e Meredith precisam de alguém que as entenda ― o bruxo mais velho retrucou. ― Betina viu as irmãs algumas vezes ao longo dos últimos anos, enquanto Matias não vê a própria família há cinco anos. Ele não deve fazer a mínima ideia do que de fato está acontecendo. Duvido muito que Leônidas tentaria fazer um relato completo por carta.

― Eu não podia ficar muito tempo longe daqui, vô. ― Betina tentou suavizar o diálogo.

E foi por aquele exato motivo que ela retornou para Mempolis poucos dias após o funeral da mãe e do irmão. Conhecendo seu marido e o avô tão bem como conhecia, sabia das faíscas que sairiam dali durante a convivência daqueles dois. Estava seriamente dividida entre achar que trazer Tibério para se refugiar junto deles era uma ideia terrível e a sensação de que não poderia deixá-lo viver sozinho sabe-se lá onde.

Teriam que encontrar uma forma de se adaptarem à mudança. Ela daria um jeito naquilo, apenas precisava de tempo.

Saul fez um sinal com a mão e o lacaio se aproximou, enchendo a taça com mais água, a de vinho permanecendo intocada ao lado. Tibério encarou o movimento de cara feia, não passando despercebido por Betina mesmo sob a luz da vela.

Tendo que conviver com o avô sob o mesmo teto, perguntava-se se assumir aquela responsabilidade foi mesmo a escolha mais sensata, no entanto, agora que ele estava lá, não havia mais como mudar de ideia.




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Notas finais do capítulo

Submundus: https://fanfiction.com.br/historia/804421/Submundus/
In Noctem Veritas: https://fanfiction.com.br/historia/805901/In_Noctem_Veritas/