Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 3
Capítulo III




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Irina desviou novamente os olhos da folha de seu diário. Um pouco de sol entrava pela fresta da cortina, ressaltando o verde e o bege do tapete que cobria boa parte do quarto de Ezequiel, mas antes passando pela cadeira da escrivaninha, e esquentando o assento que provavelmente seria usado dali algum tempo. A observação parou sobre a cama, onde seu irmão dormia em uma mistura de lençóis e cabelos pretos amassados sobre o travesseiro branco. 

Ela tentou se concentrar outra vez na página e ouviu um resmungo, no mesmo instante olhando para a cama. Ezequiel virou-se e voltou a cara para a parede, ainda adormecido. A bruxa tomou mais alguns instantes para então retornar à sua escrita, tentando retomar o raciocínio interrompido. 

Não era como se seu dia anterior tivesse algo de extremamente empolgante para relatar. Talvez o ponto alto tenha sido ganhar uma partida de xadrez contra o irmão mais novo, que ainda dormia serenamente à sua frente. 

Precisava dizer que, com exceção de momentos pontuais, não era como se sua vida fosse interessante o suficiente para preencher páginas e páginas de um diário. Tomara aquele hábito de uma de suas amigas, Natália de Santis, que realmente tinha algo para relatar com sua vida social movimentada. Após o casamento recente, ela provavelmente viveria alguns meses um tanto monótonos, no entanto, conhecendo a amiga como bem conhecia, não demoraria muito para que a agitação retornasse.

Natália, sim, teria algo de interessante a relatar para as futuras gerações ou algo que pudesse ser estudado por sabe-se lá quem, enquanto ela... Bem, talvez alguma pessoa se interessasse por ler páginas e páginas de tédio, reclamações e seus solilóquios sobre medos e ansiedades. Ou sobre um irmão com uma doença desconhecida.

Irina molhou a pena no vidro de tinta ao seu lado sobre o divã, tomando todo o cuidado para não sujar mais o tecido, pois a última marca ainda estava lá para recordá-la do acidente.

― Haverá um dia em que vou acordar aos berros com você no meu quarto e em seguida morrer do coração ― Ezequiel disse de repente, fazendo-a se esquecer da pena e do papel.

Ela viu o irmão sentando-se no meio dos lençóis, os cabelos pretos adoravelmente amassados para o lado esquerdo e os olhos escuros piscando mais do que o normal, provavelmente ainda mediando entre o mundo dos sonhos e a consciência.

― Não seria nada mal para despertar certas pessoas da nossa casa. ― Com certa acidez matinal, ela fechou o diário e deixou os objetos sobre o divã colado à parede oposta à cama.

― Irina! ― ele a censurou, voltando plenamente à vida real. Do jeito que a irmã mais velha era, momentos como aquele não deixavam de espantá-lo, e ela própria sabia disso. 

― Como passou a noite? ― Sentando-se na ponta da cama, viu-o tirar as pernas da cobertura dos lençóis e esticar o braço para a mesinha logo ao lado. ― Você parecia um pouco agitado agora de manhã.

― Não precisa se preocupar, eu mesmo ponho. ― Ezequiel se adiantou, sabendo que a irmã prontamente prepararia o remédio no seu lugar. ― Acreditaria em mim se eu dissesse que sonhei ser capitão de um navio pirata, no meio de uma batalha contra navios ingleses a caminho das Índias?

― Não...

Junto de um sorriso de canto e uma risada misturada com um sopro, Ezequiel retirou o copo que cobria a jarra de barro, despejando um pouco de água no recipiente. Pegou o frasco ao lado, murmurando o número de gotas exatas que deveria colocar. Enquanto ele bebia e um leve aroma de amêndoas e capim queimado subia, Irina percebeu que o conteúdo restante estava quase no final.

― Os mesmos sonhos de sempre ― o jovem bruxo retomou quando terminou de beber a mistura junto de uma careta. ― Nunca vou deixar de ter a impressão de que o Dr. Salazarte está me dando perfumes para beber. Ao menos devo cheirar bem por dentro ― ele riu, devolvendo o copo vazio para tapar a boca da jarra.

― E com o que você sonhou essa noite?

― Eu não menti quando falei sobre o navio. ― Ele se levantou, caminhando até a janela e puxando um dos lados da cortina. O sol iluminou as pernas pálidas e magras com uma ou outra mancha amarronzada, parando um pouco antes do joelho, onde alcançava a barra da roupa de dormir, ligeiramente mais comprida do que o normal. ― Eu estou de pé na beira de um porto vazio, olhando o horizonte onde uma tempestade parece vir e um navio se aproxima ao longe. Os ventos aumentam, eu me desequilibro e caio no mar. 

― Deve haver uma interpretação… Não é normal você sonhar com isso tantas e tantas vezes nesses anos.

― Você acha mesmo que sou um daqueles raros bruxos capazes de ter sonhos proféticos? ― ele voltou o rosto para ela, as sobrancelhas movimentando-se de maneira descrente.

― Tem de haver uma razão para tantas repetições... Dessa vez não houve a segunda parte?

― Eu não teria acordado tão calmo se o sonho não tivesse acabado comigo caindo na água, mas, se a sua teoria estiver mesmo certa, encontramos a resposta para eu viver tão doente. Não dizem que certos dons como esse costumam vir com um preço? ― O jovem bruxo soltou uma risada rouca, como de praxe, fazendo piada com os próprios problemas. 

― Ezequiel...

Antes que Irina o censurasse, ele voltou o rosto para a janela, tomando alguns segundos para observar o lado de fora, o sol atingindo em cheio sua face pálida e com uma mancha amarronzada no canto da boca. 

― Acho melhor você voltar para o seu quarto. O Dr. Salazarte acaba de chegar e nós dois precisamos estar em trajes apresentáveis. Ao menos você precisa.

Irina olhou para si mesma, ainda vestida em sua camisola de sempre e os cabelos loiros presos em uma trança, com alguns fios tentando escapar do penteado. Ela ficou de pé, aproximando-se para depositar um beijo na bochecha do irmão, que começava a esquentar sob o sol.

― Tentarei ser rápida. 

A bruxa rapidamente escapou do quarto antes que alguém entrasse. No corredor, viu alguns empregados da casa já no pleno exercício de suas funções, provavelmente há um bom tempo. Antes de entrar no próprio quarto, viu o valete do irmão mais velho deixar o cômodo ao lado, levando-a a concluir que passava um pouco do horário do desjejum.

Ao entrar no próprio dormitório, logo chamou por sua criada e primeiro cuidou do cabelo. Quando já tinha calçado as meias e as prendia nas coxas com as jarreteiras¹, teve a impressão de ouvir vozes do lado de fora. Praguejou internamente por ter que demorar tanto para se vestir. Mesmo o seu mais rápido não era rápido o suficiente.

Quando a criada, sempre em silêncio, estava amarrando os laços do stay² sobre a chemise³, sua mãe abriu a porta do quarto, entrando e fechando-a logo em seguida.

― Preciso que me faça companhia na minha visita à casa de Denise mais tarde. ― Beatriz chegou logo demandando e sentou-se na cadeira da escrivaninha, a poucos passos da entrada.

― O Dr. Salazarte terminou a visita? 

― Era apenas algo de rotina. Trouxe uma nova dose do último remédio, examinou Ezequiel e já se foi. Isaac fez questão de acompanhá-lo até a porta ― a senhora respondeu tudo numa única respiração, balançando a cabeça e rindo de algo para si mesma. ― Se eu não consigo extrair nada do homem, como ele espera ter algum sucesso? Seu irmão ainda tem muito a aprender se quiser ser alguém dentro do Conselho.

Irina manteve para si que não era exatamente Isaac quem almejava um início na carreira política do Submundo, pois seu foco na conversa era outro naquele momento.

― O Dr. Salazarte não trouxe nenhuma novidade? Alguma descoberta...

Finalizado o último dos laços às suas costas, a empregada pegou a primeira das anáguas sobre a cama.

― A essa altura, creio que o homem revirou cada livro desta cidade em busca de um tratamento para seu irmão. ― Beatriz desapareceu por breves segundos do campo de visão da filha, enquanto a empregada passava o tecido por sobre a cabeça dela. ― Você sabia que o filho do Dr. Salazarte voltou hoje para Tantris? Ele parecia impaciente para voltar para casa, mas ainda tinha muitos pacientes para atender...

― E Ezequiel, o doutor disse algo sobre sua saúde? ― Enquanto a criada pegava os bolsos⁴, Irina alisava o tecido da anágua sobre o corpo.

― Seu irmão está bem, minha filha. Você seria a primeira a saber se houvesse algo de errado. Mas então? A casa de Denise? Haverá uma soirée com algumas amigas dela que chegaram do exterior e ela gentilmente nos convidou. É uma excelente oportunidade para aumentar nossos contatos para fora do nosso círculo social. ― Irina acabou dando a respiração que faltou para a mãe, que disse a frase toda de um sopro só. E mudou de assunto mais rápido do que qualquer um seria capaz de raciocinar, como se a sociedade fosse mais importante do que a saúde do próprio filho caçula. Para a Sra. Gutiérrez, certamente era.

― Acordei um pouco indisposta hoje, ficarei em casa.

― Minha filha...

― Certamente haverá outra oportunidade para mim.

Beatriz se levantou, revirando os olhos, enquanto Irina continha a vontade de fuzilar a mãe com o olhar.

― Conversamos sobre isso mais tarde. Talvez você mude de ideia até lá.

Da mesma forma que entrou, a bruxa mais velha saiu, deixando a filha sozinha com a criada. O silêncio retornou para o quarto, sendo muito bem-vindo.

 

 

Irina releu a carta do pai pela segunda vez, girando o pequeno cabo do abridor de prata por entre os dedos.

― Você sabe onde está a nossa mãe?

Ao ouvir a voz de Isaac, ela lentamente virou a cabeça para trás, vendo-o parar a alguns passos atrás dela. Ela virou-se para frente novamente e afastou um pouco a cadeira da escrivaninha.

― Ainda está na casa de Denise. Creio que deverá voltar um pouco antes do jantar, se conseguir algo de útil com o que possa se ocupar lá.

― Achei que você iria com ela.

Ao em vez de responder, a bruxa estendeu o papel para o irmão, observando seus olhos cinzentos moverem-se para lá e para cá conforme dava uma rápida lida nas linhas que o pai escrevera.

― Era para ele supostamente estar na Itália e trazer novos tecidos ― o filho mais velho dos Gutiérrez soltou junto de um barulho com a língua, representando desaprovação. ― Eu estava indo nesse exato momento para tentar vender nossos últimos tecidos e ele sequer se preocupa em trazer novos? O que direi aos compradores?

― Uma coisa não impede a outra, ele pode muito bem ter conseguido os tecidos e em seguida viajado para a Espanha. Essa carta data de algumas semanas atrás, talvez ele já esteja voltando. ― Viu Isaac soltar uma risada descrente. ― Você sabe que ele está em busca de alguma resposta para o que Ezequiel tem. Se o Dr. Salazarte não encontra nada em Tantris, deve haver alguma resposta em registros mais antigos...

― Exceto que isso não nos dá lucro! ― Isaac exclamou, agitando as mãos. ― Como ele espera conseguir algum dinheiro apenas gastando em viagens pela Europa?

O bruxo voltou os olhos para a irmã, que virou-se de lado na cadeira para poder encará-lo. Ao perceber o franzir de lábios e a forma que ela o fitava, ficou claro que o melhor a ser feito era ter guardado aquela opinião para compartilhar com outra pessoa.

― Se a nossa mãe voltar antes de mim, diga a ela aonde fui, por favor.

Isaac girou nos calcanhares e saiu da sala de estar da mesma forma que entrou, batendo os pés. Irina encarou uma das janelas à esquerda, por onde a cortina aberta deixava entrar o sol do meio da tarde, finalmente esquentando um pouco.

Levantando-se da cadeira, saiu do cômodo em busca de Ezequiel, considerando para si que era uma boa ideia trazê-lo para tomar um pouco de sol. Além de precisar conversar com alguém que não a fizesse borbulhar de raiva em menos de cinco minutos de conversa.

 


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Notas finais do capítulo

1: Peça usada para prender as meias, que iam até acima do joelho.
2: Espartilhos, chamados de stays até a década de 1850, onde passaram a ser conhecidos por corset. Sua silhueta era cônica.
3: Espécie de camisola normalmente feita de linho, e primeira peça de roupa a entrar em contato com o corpo sob as demais.
4: Sim, vestidos tinham bolsos! Eram uma peça à parte, que ia sob a saia e podia ser acessada através de uma discreta abertura nela.

Uma curiosidade: apesar do conhecimento popular, espartilhos não eram um instrumento de tortura e opressão contra mulheres. Assim como o soutien hoje, sua função era sustentar os seios e, dependendo da época, modelar o vestido para a silhueta em voga, além de sustentar as anáguas. A técnica conhecida como tight-lacing, onde as fitas do espartilho eram puxadas até o limite para se ter uma cintura fina, se popularizou apenas na segunda metade da era vitoriana. Ver esse tipo de cena sendo representada com um stay ou pair of bodies (como os espartilhos eram conhecidos desde a era elisabetana até o século XVII) seria um tanto impossível, pois simplesmente romperia a costura da peça.

Por enquanto é isso. Espero que vocês tenham gostado dos capítulos até aqui e nos vemos outra vez em postagens regulares a partir de 05/01.
Boas festas e um feliz 2023 para todos ♡