Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 18
Capítulo XVIII




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Irina olhou para o líquido parado na xícara de porcelana sobre a mesa, como se de lá pudesse extrair a resposta para todas as suas perguntas. Se algumas pessoas acreditavam que podiam retirar profecias de borras de chá...

Céus, em que estava pensando? Aquele pensamento soaria como um absurdo até algum tempo atrás, ainda mais se viesse dela, contudo, no atual estado das coisas... Detestava pensar que a resposta para o problema de Ezequiel pudesse vir de meios como aquele e seu lado racional recusava-se a acreditar no que considerava ser uma baboseira, no entanto, estava em busca de qualquer coisa que a apontasse para alguma direção que fosse. 

Mesmo que tentativas de adivinhação fossem coisas de bruxos que se envolviam demais com mundanos.

No meio da tarde, não havia além de uma ou outra pessoa na casa de chá fora ela, ainda era um pouco cedo para o local encher como costumava acontecer um pouco antes da noite chegar. Melhor assim, pois criava um ambiente mais agradável para pensar e reconsiderar as próprias possibilidades que tinha no momento. E, mesmo com a ajuda que os Salazarte estavam dando ― tanto o pai quanto os filhos ―, elas não eram muitas.

Praticamente nada conseguiu extrair de suas anotações e quanto àqueles livros trazidos pelo Sr. Salazarte no dia anterior... Eram páginas sombrias, para se dizer o mínimo, descrevendo doenças das mais absurdas causadas como consequências de maldições, feitiços que deram errado ou de causas desconhecidas. Algumas citavam manchas pela pele, febres e outros sintomas que até se encaixavam no caso de Ezequiel, porém, nenhuma das explicações pareciam fazer sentido com o problema de seu irmão, pois todas se resumiam em consequências desastrosas de feitiços perigosos e que terminaram mal para o bruxo que tentou executá-los.

Parecia uma saída, mas que continuava a terminar no meio do nada. Agora, sua próxima possibilidade da lista era recorrer a uma das opções que levantara com o Sr. Salazarte na conversa que tiveram quando à sós. 

A que ponto ela estava chegando...

― Irmã, quantas saudades eu estava de você! ― Estevão apareceu de repente com as mãos sobre o espaldar da cadeira dela, fazendo Irina segurar um grito na garganta com o susto. 

Conteve a vontade de xingá-lo — pois o único casal do ambiente já estava encarando — e se levantou, sendo logo envolvida em um abraço. Ele cheirava a fumaça, tabaco e perfume barato de mulher.

― Você esteve... ― ela cortou a frase, recusando-se a dizer a palavra em público, ouvindo a voz da mãe em sua mente dizendo que aquilo não era vocabulário para uma dama. Exceto se fosse para debochar do filho em uma discussão, mesmo que Beatriz não fosse admitir. ― A essa hora?

― Eu estava pintando, não tenho culpa se sempre recebo visitantes em horários incomuns ― ele retrucou com um sorriso que Irina reconhecia muito bem e simplesmente deixou passar, vendo-o dar a volta na mesa e puxar a outra cadeira. Sentou-se novamente. 

― Pensei que tivesse um ateliê, que dividia com a sua nova casa. ― Ela apontou com a cabeça para a xícara de chá posta em frente ao lugar que até então estava vago e a cesta de pães ao centro da mesa. Conhecendo o irmão como conhecia, preferia deixar o pedido feito antes que ele chegasse. 

― E tenho, mas não é a minha casa. Divido com mais quatro pessoas, três poetas e um viciado.

― O que?!

Mesmo com a exclamação da irmã, Estevão simplesmente pegou um dos pães e começou a comer.

― Os três poetas também são, esqueci de adicionar. Apenas não queria chamar Astolfo de desempregado, mesmo que a maioria das pessoas veja a nós cinco da mesma forma. ― Ele levou uma mão à frente da boca para responder enquanto ainda mastigava, mostrando que ainda conservava um pouco dos hábitos que levara de casa. ― Sua mãe diria que é deselegante chamar alguém assim. Mesmo que ela pouco fosse se importar com isso, se um filho artista já está na mesma categoria dele... Aliás, o que eu acho realmente deselegante é colocar pessoas em categorias, você não concorda?

― Certamente ― a bruxa disse enquanto bebericava um pouco do chá. Esqueceu de pedir por açúcar e esperava que o irmão ignorasse o gosto. ― Apenas espero que não esteja envolvido com as mesmas substâncias que seu amigo viciado.

― Acha que tenho estado tanto tempo com mundanos para ter esquecido o básico que sabemos sobre ervas? ― ele retrucou de forma um tanto agressiva e Irina somente ignorou, encarando novamente o conteúdo da xícara. ― Desculpe, não quis ser grosseiro com você.

― Considerando que eu e você temos a mesma família, achei que soubesse muito bem que me acostumei um tanto com grosserias... ― ela retorquiu com um sorriso que trazia à tona uma dose de humor que costumava deixar guardada lá no fundo.

Estevão gargalhou e em seguida pegou a xícara para dar um gole, em uma sequência de gestos que mostrava que, apesar do casaco desbotado e puído, da camisa por baixo com manchas de tinta e das botas de solas desgastadas, ele ainda mantinha trejeitos de alguém da classe alta.

A análise rápida do irmão fez Irina questionar-se se ele realmente estava ficando sem dinheiro outra vez ou era apenas desleixo.

― Ah, Irina, às vezes eu realmente sinto sua falta. ― O bruxo devolveu a xícara para a mesa e usou o guardanapo para limpar os lábios. ― Mas conte-me, como andam as coisas em casa? E Ezequiel? Aquela mulher ainda te enche a paciência? Porque de Isaac eu sei que nada mudou… O encontro com frequência, você sabe onde.

― Não me diga que no mesmo lugar onde você vai para pintar?

― É um antro de artistas, o que mais posso fazer? ― Ele deu de ombros enquanto voltava a comer o pão. ― E a melhor cerveja da cidade, mundanos realmente sabem fazer essas coisas… Ao menos nosso irmão sabe escolher bem o que bebe, se ainda vai até lá mesmo me vendo com frequência.

Irina balançou a cabeça, tomando para si que Isaac continuava a sair escondido para beber. Beatriz sabia muito bem dos hábitos do filho mais velho, contudo, se ainda conseguia esconder o fato das vistas de todos, não era um problema assim tão grande. Desde que ele não ficasse bêbado em frente à gente importante do Conselho. 

— Isaac não falou com você?

Ele soltou uma risadinha e lançou o guardanapo de volta para a mesa. O casal foi embora e o som se juntou ao tinir da porcelana sendo recolhida.

— Sim, teve a decência de perguntar como estou. Acho que mais por educação. — Estevão comeu o último pedaço do pão e esfregou um dedo contra o outro, deixando alguns farelos caírem sobre a toalha da mesa enquanto observava a irmã, que decidiu beber mais um gole do chá. ― Mas e Ezequiel, como ele está? Da última vez que nos vimos, você disse que o Dr. Salazarte continuava não tendo sucesso para encontrar um tratamento eficaz.  

― Eu o chamei para conversarmos justamente sobre ele. ― Ao baixar a xícara para o lugar, viu o olhar do irmão tornando-se sério no mesmo instante. ― O Dr. Salazarte conseguiu estabilizar as febres nesse último mês. ― Com a informação, viu-o assentir com a cabeça e mover os ombros. No fundo, sabia como Estevão também se preocupava com o irmão mais novo. Ele parecia ser o único a entender seus medos em relação a Ezequiel. ― Mas estamos em busca de outras respostas, para aquele sonho...

― Ele continua sonhando com aquela coisa de rio, espelho e tudo mais? 

Ela confirmou com a cabeça. Por sorte, o único homem ainda presente não se importava com a conversa, ou os "códigos" soariam um tanto confusos demais para serem compreendidos.

― Mas houve uma pequena mudança recentemente e estamos em busca do que possa significar... ― Com a nova informação, viu-o franzir a testa do outro lado. ― Ezequiel acredita em oniromancia e estamos pesquisando sobre o assunto.

― Você acredita mesmo nisso?! ― A última sílaba saiu com uma breve elevação, mostrando a surpresa de Estevão com a irmã.

― É um tanto curioso que Ezequiel tenha o mesmo sonho há tantos anos, você sabe disso ― Irina tentou se defender, sabendo que sua motivação cortaria a estranheza.  

― Irina, é apenas um sonho.

― Que se repete há anos! ― ela elevou a voz, ainda tentando defender seu ponto de todas as maneiras. ― Você sabe como ele costuma acordar todas as noites em que isso acontece e...

― Você sempre vai fazer tudo por ele, vamos dizer a verdade aqui ― Estevão a interrompeu novamente, vendo-a passar os olhos pelo ambiente. Restava apenas eles e um estranho totalmente alheio. Apenas ela e seu irmão que a lia como ninguém. ― Está tudo bem, de verdade, se é isso que irá fazer os dois felizes. Apenas me diga como posso ajudar.

Em um gesto inconsciente, Irina abriu um sorriso e viu-o ser retribuído, antes que ele tomasse um gole de seu chá.

― Obrigada ― ela murmurou. Diferente de Isaac, sabia que Estevão não iria julgá-la. Apesar dos pesares, podia confiar nele quando não conseguia resolver os problemas sozinha. Ou quando ele decidia intervir por ela estar se levando ao limite. ― Eu estive conversando com o Sr. Salazarte sobre...

― Com o Dr. Salazarte, você quer dizer?

A bruxa viu-o a encará-la com curiosidade do outro lado enquanto segurava a xícara próxima aos lábios, percebendo que deixara algumas informações de extrema importância de fora das explicações. 

― Os filhos do Dr. Salazarte têm nos ajudado na pesquisa e gentilmente nos cederam acesso à biblioteca do avô para isso.

― Santa Mãe Terra... O Dr. Salazarte deve realmente estar empenhado no caso do nosso irmão, se chegou a envolver até mesmo os filhos nisso ― Estevão comentou enquanto virava o conteúdo restante da xícara de uma vez. ― Mas Ezequiel também está envolvido com eles? Seria bom para ele ter alguns amigos...

Irina sorriu novamente ao ver a preocupação do irmão mais velho.

Raras eram as vezes que Ezequiel saia de casa, sob a justificativa de que, pela sua saúde frágil, poderia adoecer facilmente. Aquilo não era uma mentira completa, contudo, todos sabiam qual a verdadeira razão para a Sra. Gutiérrez querer manter o filho caçula escondido das vistas dos outros. Irina e Estevão ― quando ainda vivia na mesma casa que eles ― aproveitavam de todas as oportunidades quando a mãe estava longe para retirá-lo de casa e tentar ao menos levá-lo a lugares diferentes das paredes de sempre.

Quando o pai estava em casa, podiam fingir um pouco de normalidade, mesmo que às custas de ter que ouvir as queixas intermináveis de Beatriz de como aquilo era uma irresponsabilidade. Antônio simplesmente se fazia de surdo para a esposa.

― As pesquisas começaram após os filhos do Dr. Salazarte o encontrarem em uma visita.

― E nossa querida Sra. Gutiérrez ficou sabendo disso? ― Estevão gargalhou enquanto devolvia a xícara para a mesa. ― Eu até pagaria para ver a cara dela.

― Como eu dizia ― Irina cortou o assunto e trouxe a conversa de volta para o ponto principal ―, eu e o Sr. Salazarte chegamos à conclusão que talvez seja uma tentativa válida procurar por uma interpretação diretamente para o sonho de Ezequiel. ― Estevão ergueu as sobrancelhas do outro lado, não custando nada para adivinhar que ele estava, mais uma vez, surpreso pela atitude da irmã. ― Como você é a pessoa que conheço a ter mais contato com mundanos, pensei que pudesse ajudar.

Estevão recostou-se mais contra a cadeira e tomou alguns instantes para analisá-la, franzindo a testa outra vez. Tentou persecutá-la com os olhos e Irina simplesmente deixou que o fizesse. O que tinha para desvendar dela estava posto à mesa.

― Eu me esqueci de perguntar como você está.

Ele manteve os olhos nos da irmã, fazendo-a questioná-lo de forma muda por uma resposta para a súbita mudança de postura. O pintor não disse uma única palavra, deixando claro que ela deveria se manifestar.

― Estou bem. 

― E o que mais? Eu sei que você sempre vai responder que está bem, mas o que mais? ― Ela ergueu as sobrancelhas, pedindo para que ele explanasse. Os olhos do pintor no mesmo instante deram a resposta, transbordando compaixão. ― Eu te conheço a vida inteira e sei que você não estaria procurando por esse tipo de informação se algo não tivesse acontecido.

Irina mais uma vez vagueou o olhar pela casa de chá, fugindo dos olhos do irmão, que a desvendavam mesmo em silêncio. Daquela vez, estavam sozinhos e não havia nada para observar além de mesas vazias. 

― Descobrir o significado desse sonho é importante para Ezequiel. Ele sofre com esses pesadelos há tanto tempo. ― Ela deixou de observar o ambiente e voltou-se novamente para o irmão. Mesmo com a mistura de pena com compaixão, decidiu encará-lo. ― Ele merece ter as respostas que quer.

Estevão assentiu e Irina relaxou um pouco ao perceber que ele tinha parado de fitá-la, observando sua xícara vazia. 

― Eu vou fazer o possível para encontrar alguém, não se preocupe... ― Antes que ela pudesse formular mais um agradecimento, ele continuou. ― E não se esqueça que pode mandar me chamarem quando quiser. Independente de onde eu esteja, paro o que for preciso para ir até vocês dois.

Irina pressionou um lábio contra o outro, recordando-se daquele mesmo Estevão que passou algumas noites com ela no divã do quarto de Ezequiel, esperando pelos gritos que viriam após o pesadelo de sempre. O mesmo Estevão que se sentava ao seu lado e esperava em silêncio até que ela se sentisse à vontade para conversar sobre suas dores. E o mesmo Estevão que chegou em casa e soube que a mãe mandara os empregados se desfazerem de suas amadas pinturas.  

Não o condenava por partir, contudo, não dava para negar que aquela casa nunca seria a mesma sem ele. 

― Eu sinto sua falta ― ela confessou em um sussurro e viu-o sorrir, sabendo que a mensagem escondida fora captada muito bem. Não era apenas saudades. 

Somente sentia saudades daquilo que de fato tinha um espaço no seu coração. 

― Você sabe que eu também te amo ― ele declarou e, diferente dela, não abaixo o tom da voz.

Não esperava que Estevão iria traduzir a mensagem com tanta rapidez, pegando-a despreparada. Definitivamente sentia falta de alguém que conseguia entendê-la tão bem como ele. Alguém que lesse suas entrelinhas e compreendesse o que poucas palavras não conseguiam dizer. 


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