Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 17
Capítulo XVII




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Poucas pessoas pareciam corajosas o suficiente como Matias para saírem da cama e encararem as ruas tão cedo naquela manhã de domingo. Passava um pouco do horário do desjejum e, quebrando a tradição, não se importara muito em compartilhar o momento com a família, deixando apenas o recado de que precisava sair para se encontrar com um amigo. 

Encolhendo-se dentro de seu próprio casaco de forro de pele, questionava-se se estava mesmo fazendo uma decisão sensata ao ir visitar a antiga casa da tia, no entanto, se sentia inquieto demais com as possibilidades que passavam pela sua mente desde quinta-feira.

O que realmente acontecera naquela família e que o Dr. Salazarte parecia tanto querer esconder? A decisão mais sensata talvez fosse um confronto direto com o pai, mostrando-lhe a carta que encontrou nas coisas da mãe e exigindo a verdade, afinal, ele a merecia e não era mais um rapaz para não ser capaz de lidar com o que quer que fosse. 

A questão que aquilo levantava sobre si mesmo era: por que não conseguia fazer o que precisava? Não conseguia ou simplesmente não queria? Continuar no escuro era muito mais fácil.

Viu uma carruagem passar pela rua que começava a enlamear pela breve chuva da madrugada e parou em frente ao caminho que levava à casa da tia. Encarou a construção de três andares, imaginando a madrugada mórbida em que a tia se jogara do último andar. Será que fora uma madrugada como a última, escura e chuvosa?

De qualquer forma, ponderar sobre o clima do passado não adiantava de nada. Cruzou os limites e entrou, caminhando por alguns metros até atingir o alpendre, onde parou e considerou por alguns instantes o que estava prestes a fazer. Era tarde demais para voltar.

O novo habitante da residência era seu primo, filho da irmã mais velha de sua mãe ― que era a caçula de três irmãs ― e que partira para a Espanha bons anos atrás. Por algum motivo, Rui escolhera voltar para Constantia. Seria uma boa oportunidade para revê-lo, enquanto se enrolava em desculpas para tentar descobrir algo de relevante sobre sua tia Inês.

Bateu à porta e teve que esperar um pouco até ser recepcionado pelo mordomo. Apresentou-se e logo foi guiado para uma pequena sala de visitas, com a orientação de esperar enquanto o patrão seria chamado.

Estava interrompendo o momento do desjejum de seu primo com a família para uma investigação que poderia não entregar nada. Aliás, seu primo tinha família? Com esposa e filhos? Céus, realmente estava totalmente desatualizado sobre os próprios parentes.

Encarou o cômodo um pouco pequeno para uma sala de visitas, notando alguns detalhes que faziam-no lembrar da tia, como a cor verde predominando no ambiente e um quadro pintado por sua própria mãe pendurado na parede à sua frente, fazendo-o ignorar todo o resto e focar sua atenção na imagem que representava uma ponte e embarcações que deveriam ter saído da imaginação de Brigite. 

Por algum motivo, os novos moradores pareciam querer manter a memória dos antigos.

― Matias, que surpresa vê-lo aqui em carne e osso! ― o dono da casa exclamou alto, chegando de supetão e envolvendo seu convidado em um abraço caloroso, que foi devolvido quase na mesma intensidade .

― Desculpe por ter vindo tão cedo e sem avisar. Mas acredito que eu possa incomodá-lo desse jeito, pelos velhos tempos ― Salazarte gracejou assim que se separaram e viu o primo gargalhar.

― Sem ressentimentos?

― Nenhum.

Os dois compartilharam risadas, relembrando os velhos tempos onde Bernardo e Rui se juntavam para atormentar o pequeno Matias. O passado se tornou apenas uma memória quando tia Constância  partiu de volta para a Europa.

― Mas venha, vou pedir para que Cintra ponha um prato a mais na mesa ― Rui ofereceu, colocando uma mão sobre o ombro do primo. Pelo sorriso, era notória a alegria por vê-lo novamente. ― Quero que conheça minha família, porque o seu pai não é a pessoa mais agradável do mundo para conversas descontraídas, então sobra você de família para apresentar, já que mal vejo suas irmãs. Inclusive, é uma p...

― Sinto em decepcioná-lo, mas vim aqui para uma visita rápida e não pretendo me demorar muito ― Salazarte interrompeu o falatório do outro, que no mesmo instante uniu os lábios, o observando por alguns instantes.

― Ora, seu primo desnaturado de uma figa! Eu estava crente de que você veio até aqui para matar as saudades... ― Aquino parou novamente de falar, analisando a expressão séria do primo. ― Aconteceu alguma coisa com sua família?

Matias sequer sabia por onde começar a contar o que aconteceu  ― isso considerando que Rui deveria saber muito bem da tragédia recente ― e estacou, vendo a alegria dele desaparecer em questão de segundos. A única alternativa era usar a desculpa que deixou na ponta da língua para quando chegasse ali.

― Eu vim para levar algumas coisas de nossa tia, se ainda há... ― Encarou Aquino, não vendo a proposta surtir muito efeito. ― Minha mãe ficou abalada demais para retornar e Bernardo não pôde atender ao pedido dela na época.

― Vamos para o meu escritório ― Rui demandou de forma lacônica e Matias logo percebeu que ele definitivamente estava assumindo uma postura que vira nele poucas vezes na vida, pois o primo nunca fizera o tipo sério e responsável. Diferente de Bernardo, que era somente um boêmio.

Os dois se retiraram da sala de visitas e, ao passarem pela sala principal, encontraram novamente o mordomo, que recebeu a ordem do patrão para que não fossem incomodados. O homem ficou para trás e seguiram em silêncio por um corredor.

― Eu sinto muito mesmo pelo que aconteceu ― Aquino disse de repente e, pelo mover de ombros, Matias pôde deduzir que ele respirou fundo. Parou em frente a uma porta e a abriu, fazendo sinal para que entrasse. ― E também peço desculpas por não ter estado muito presente para apoiá-los... Mas me sinto um tanto intruso desde que retornei.

Salazarte entrou no escritório e parou por breves instantes, encarando o primo que fechou a porta atrás deles.

― Saiba que nunca o tratarei dessa forma. É meu convidado sempre que quiser nos visitar.

O outro assentiu e seguiu reto, passando rente a uma grande estante e indo em direção à mesa. Como a sala de visitas, o cômodo também não era muito grande e mantinha tons de verde no papel de parede. O dono da casa se jogou na cadeira de um dos lados da mesa e fez sinal com a cabeça para a outra à sua frente.

― Eu imagino como sua mãe deve ter ficado abalada com a notícia. Nem ela e nem seu irmão quiseram assumir a propriedade ― Rui começou e no mesmo instante Matias percebeu que a desculpa que inventara não se sustentava, deixando-o em dúvida do porque não fora confrontado para dizer a verdade. ― Eu aproveitei a oportunidade para retornar à Constantia, estava um tanto cansado da mesmice da Europa…

— E sua mãe?

― Ah, você conhece minha mãe. Dona Constância aproveitou a primeira oportunidade e zarpou no primeiro navio para bem longe dessa ex-colônia miserável e decidiu que iria continuar lá até morrer. Ela disse que eu estava louco por querer voltar ― ele explicou junto de uma risada, que logo se perdeu no ambiente tomado por um peso trazido justo por Rui. ― Eu o chamei até aqui porque descobri algumas coisas preocupantes sobre nossa tia, Matias. É o tipo de coisa que confio em você para que não saia daqui.

Salazarte o encarou e respirou fundo, sentindo o pulso começar a acelerar.

― Se for da sua vontade, será como se essa conversa nunca tivesse acontecido entre nós.

Aquino assentiu em silêncio, a gravidade tomando completamente suas feições.

― Eu não sei se sua mãe sabia o que estava acontecendo e por isso não quis mexer nas coisas de nossa tia por um tempo, mas... ― Rui o analisou por alguns instantes e continuou sua fala em um atropelo nas palavras. ― Eu encontrei livros de magia sombria escondidos entre alguns pertences de tia Inês. O sótão estava tomado por energia de magia sombria quando cheguei e ainda não consegui descobrir uma forma de limpá-lo.

Matias teve a impressão de que o coração acelerado parou de bater por um breve instante. Ou talvez fosse apenas um exagero de sua parte, porém, o fato era que, de todas as possíveis razões que conseguia pensar para um rompimento na relação entre sua mãe e sua tia, aquela definitivamente não estava entre elas.

― Você acredita que a morte dela possa ter alguma relação com... ― Salazarte respirou fundo, tentando pôr os próprios pensamentos em ordem. ― O que quer que ela tenha feito para impregnar o ambiente com magia sombria?

― Eu não sei, realmente não sei. ― Ele negou com a cabeça e olhou para a madeira da mesa, batendo dois dedos sobre ela. ― Mas acredite em mim quando eu digo que nossa tia estava envolvida com coisa muito, muito perigosa.

― O que você fez com os livros?

― Queimei. Poderia trazer problemas para a família se alguém descobrisse aquilo, então achei melhor destruir tudo de uma vez. ― Rui afastou a cadeira da mesa e dobrou uma perna sobre a outra, ainda parecendo inquieto com o assunto. ― A nossa sorte é que os empregados são mundanos e não são capazes de sentir essas coisas.

― Sua esposa sabe?

― Não. O sótão está trancado para todos e continuará assim até eu conseguir limpá-lo. ― Matias somente assentiu com a cabeça, ainda perturbado demais com a informação. ― É muita sorte a nossa que você não poderá conhecê-la hoje, porque qualquer um conseguiria perceber a preocupação apenas ao olhar para a sua cara.

Mesmo com o assunto sério, Rui nunca poderia deixar de fazer um gracejo na primeira oportunidade que tivesse. Matias sorriu e encarou os olhos profundamente escuros do primo do outro lado. Ele definitivamente era um livro aberto na mão de qualquer pessoa que o conhecesse minimamente bem.

― Você sabia disso, não sabia? ― Aquino questionou, levando embora a leveza da mesma forma que a trouxe de volta para a conversa, de supetão.

Matias concluiu que o primo nunca acreditou na mentira que inventara para estar ali. Nunca fora bom em mentir mesmo.

― Não. Estou tão surpreso quanto você, acredite em mim. ― Ele recostou-se contra o encosto da cadeira, tentando relaxar alguns pontos de tensão que sentia em suas costas.

― Acredito muito nisso. Sua cara de surpresa diz tudo.

― Mas não menti quando disse que vim atrás de algo de nossa tia ― Salazarte impediu que a leveza do novo gracejo sequer se impregnasse no ambiente. ― Minha mãe sabia que algo estava acontecendo com ela, disso eu tenho certeza.

Aquilo despertava uma nova dúvida em sua mente: sua mãe sabia que a irmã estava envolvida com magia sombria? E como aquilo envolvia seu pai, se ela estava furiosa com os dois? Ou aquele era mais um segredo que estava escondido na lista sem fim que envolvia sua família paterna e agora a materna? Independente da resposta, ir atrás delas parecia levantar ainda mais dúvidas.

― Bem, se descobrir alguma coisa, peço, por favor, que me conte. Ou então terei que trazer à tona algumas memórias dos velhos tempos para corrigir um primo desnaturado.

Matias riu, agradecendo pela presença de Rui tornar, ao menos naquele momento, as coisas um pouco mais leves.

 

 

Do lado de fora uma chuva calma e constante batia contra a janela e o vento uivava, deixando claro que era ele quem a empurrava de encontro ao vidro. Apesar de todas as frestas fechadas, um ar gelado ainda entrava no quarto e Matias sequer se importava, mesmo vestindo apenas sua camisa com os primeiros botões abertos sobre o tronco.

Sobre sua cama estava apenas uma caixa de madeira, o único item que trouxera da visita à antiga residência da tia e atual morada do primo. O tampo era de uma pintura floral delicada e que sabia ser trabalho de sua mãe. Sabia que aquela caixa fora um presente de Brigite para a irmã e, quando Rui ofereceu se não queria levar alguns dos pertences da tia que estavam guardados no sótão trancado, escolheu somente um.

Batucou a ponta dos dedos sobre a madeira por um breve instante e a abriu, encontrando dentro a coleção de jóias e pedras da tia. Inês não era do tipo de mulher que adorava se enfeitar com pedras preciosas ― isso normalmente era coisa de Brigite ―, pois seu principal interesse nelas era simplesmente colecioná-las.

Matias aproximou a caixa no campo de luz oferecido pela vela pousada em sua mesa de cabeceira e observou que o trabalho de pintura também envolvia o lado interno do tampo. Decidiu que deixaria aquilo guardado em seu quarto, não apenas como um segredo do que estava fazendo, mas também como uma lembrança da mãe, algo que somente ele teria acesso. Um tanto egoísta, contudo, considerando o desenrolar daqueles fatos, podia se permitir aquilo.

Da pequena coleção de jóias da tia havia apenas cinco que não eram pares de brinco: quatro anéis e um colar. Matias pegou o último, tendo sua atenção focada não na corrente de ouro, mas no rubi reluzindo no pingente. Não foi preciso esforço nenhum para sentir a energia mágica contida naquela pedra e menos ainda para se recordar que a mãe usava um igual no pescoço desde que ele se entendia por gente.

Mesmo para bruxos que não dominavam feitiços para encantar objetos, era relativamente simples envolver um com uma energia relacionada a algum sentimento: amor, paixão, ódio ou algum menos comum, pois a principal intenção daquilo era declarar-se a outra pessoa sem precisar de palavras. Portanto, um bruxo presentear a pessoa amada com um objeto carregando seus sentimentos além da forma metafórica não era incomum.

Ao envolver o pingente na mão e tentar tatear pela energia mágica para descobrir mais sobre o feitiço, não foi muita surpresa ao se dar conta que seu significado era, sim, amor. A própria escolha por uma pedra vermelha não representava tanta inovação para o significado que a pessoa queria trazer.

Deixando a mão a poucos centímetros da chama da vela, Matias girou o pingente por entre os dedos, procurando por alguma coisa mais que saltasse aos olhos. A exceção da pedra preciosa e do ouro, parecia comum. E exatamente igual ao colar que a mãe costumava trazer no pescoço, presente do marido após algumas décadas de casamento. Simples igual e com um significado igual.

Jogou o colar de volta para a caixa e bateu a tampa, guardando-a na gaveta de sua mesa de cabeceira. Ainda sentado de lado na cama, passou as mãos pelos cabelos, tentando não pensar que a possibilidade mais óbvia para o conflito entre a mãe e a tia poderia ser a certa.

Mas se a mãe realmente descobriu a existência de um caso entre a irmã e o marido ― desconsiderando outros questionamentos que ainda sobravam da carta da tia ―, será que Brigite sabia sobre o envolvimento da irmã com magia sombria? E Leônidas também o sabia? Afinal, se os dois realmente eram...

Matias atentou os ouvidos, ouvindo nada além da chuva do lado de fora. Todos deviam estar dormindo na casa dos Salazarte, exceto ele. Se é que conseguiria mesmo dormir naquela madrugada.


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Notas finais do capítulo

Um pouco de mudança no nosso cronograma de postagens:
1) O processo de escrita e finalização da história está em reta final, PORÉM, temos tantos capítulos prontos, que decidi pelo seguinte: sempre que tivermos um capítulo com menos de 2k de palavras ou o que eu chamo de "intermediário", que é o caso do próximo, teremos capítulo duplo;
2) O próximo ponto eu gostaria da opinião da galera que vem acompanhando até aqui ♡ Como temos muitos capítulos e postagens semanais faria a história terminar de ser postada somente no final do ano, tenho duas propostas: vocês gostariam de postagens duas vezes por semanas, mesmo que a maioria dos capítulos circule em torno dos 3k ou continuemos no esquema atual?
É isso, um beijo no coração e até a próxima aparição nas notas ♡



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