O Homem que Perdeu a Alma escrita por Willow Oak Acanthus


Capítulo 5
Capítulo III - Bem vinda ao negócio de família, Laverne.


Notas iniciais do capítulo

Notas iniciais: Oi Hunters, como vão as coisas?
Gente, a partir desse capítulo teremos um aprofundamento nas relações dos personagens. Espero que gostem : )

Boa leitura.



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Ponto de vista de Dean Winchester, Hotel Mormont - 2004.

Quando olho ao redor e reconheço o quarto de hotel que estava ficando, dou um suspiro de alívio. Sempre que Castiel usava seus poderes de anjo para me teletransportar eu nunca sabia onde ia parar. Olho para a garota desacordada em meus braços e acho que o melhor a se fazer por enquanto é deitá-la na minha cama, e é isso o que eu faço.

Me sento na beirada da cama e passo a mão nervosamente no meu cabelo, soltando o maior suspiro que meus pulmões me permitem:

—Não sei se eu sou a pessoa certa, Cas - Ergo os olhos para o meu amigo que encara a garota adormecida com seu olhar azul e observador. Ele me parece tão exausto...Sei disso mesmo que ele seja difícil de ler. Quando se trata de Castiel, eu sempre sei. Olho para Hazel, desmaiada na cama, e não sei ao certo quais tipos de coisas estão falando sobre a garota lá em cima, mas se forem tão ruins quanto as que estão sendo ditas aqui embaixo...

—Para contar a verdade a ela? - Cas questiona, tirando os olhos dela e os direcionando a mim - Eu não consigo pensar em alguém melhor, Dean. - Castiel dá aquele sorriso pequeno que tem como intuito reconfortar, ele aprendeu isso depois de observar por muito tempo o Sammy fazendo isso. Todas as expressões "humanas" de Castiel, ele aprendeu nos observando.

Quando abro a boca para formular uma resposta, a menina começa a se remexer na cama, e ambos olhamos para ela. Não, ela não está se remexendo. Está convulsionando.

Nos levantamos e eu me agilizo para segurar a cabeça dela, e muita espuma branca começa a sair de sua boca.

—Cas? Que merda é essa?! – Olho para Castiel que se apressa e toca nela com o indicador, o olhar concentrado, e uma luz irradiando dos seus dedos.

Devagar, ela para. A espuma cessa de sair dos seus lábios agora muito pálidos, seu corpo parece interromper os espasmos violentos e ela volta a adormecer, imóvel.

—Interessante... - Ele murmura, dando a volta na cama e se sentando em sua beirada - Triste, mas interessante.

—Se importa de explicar? Por que a garota deu uma de Emily Rose?! - A tentativa de fazer uma referência engraçadinha vai por água abaixo, já que Castiel nunca viu um filme sequer.

—Ela sofre de convulsões graças a medicamentos no organismo... - Ele continua olhando para a garota, e depois suspira - Eu consigo ver tudo o que há de errado com o corpo humano só de tocar. Você por exemplo, precisa cuidar do seu colesterol, Dean. - Rolo os olhos e ele percebe minha desfeita e parece ofendido - Sabe quantos humanos gostariam de um raio X angelical gratuito?! O sistema de saúde aqui na terra é uma piada!

—Cas, não me leve a mal, de verdade. Mas podemos focar na garota? Como assim sofre de convulsões por causa de remédios? - Me sento ao lado dele, que ajeita a postura e continua:

—Ela toma um tipo de...antipsicótico. Na verdade, há muito tempo. Tempo demais. — Ele frisa - Existem consequências para um corpo que consome medicamentos que não lhe são necessários. E além do mais... Hazel Laverne teve um dia e tanto, não é? Parece que ela ingeriu uma quantidade maior do que o normal..., Mas vai ficar tudo bem! - Ele dá um sorriso leve, orgulhoso de si mesmo - Eu limpei os rastros de medicamento do organismo dela. Nada de convulsões por um bom tempo, eu espero.

Suspiro de alívio.

—Por um momento me preocupei que, além de tudo, a garota podia estar sei lá, viciada em alguma droga...- Não quero fazer julgamentos, mas Hazel cresceu como filha de dois rockstars perturbados, então não é minha culpa pensar que talvez ela fizesse uso de drogas ou algo do tipo, mas fico feliz que me enganei. Me levanto e vou em direção ao frigobar, e de lá retiro uma budwiser, ao qual abro o lacre com o dente. Dou um gole longo e depois limpo a boca com as costas da mão. Depois de ponderar sobre toda essa situação, me lembro de um detalhe importante - Cas, você havia comentado que três anjos estão na cola da garota. Você, Raphael e quem mais?

Vejo Castiel trocando o peso de uma perna para outra. Sei, imediatamente, que ele está hesitante em me dizer quem é, o que não pode ser bom sinal.

—Desembucha logo, Castiel! - Ele vê que estou impaciente, mas não parece inclinado a ceder, já que seus olhos parecem focar em algo atrás de mim.

—Eu não acho uma boa ideia conversarmos disso agora...- Castiel ergue a mão e aponta, e eu me viro por puro reflexo. Hazel está de pé e, segura o abajur que antes estava preso à cabeceira no alto de sua cabeça, como se planejasse me acertar com o objeto.

—Laverne... - Começo, olhando dela para o abajur - Será que você pode abaixar o seu...abajur? Temos muito o que conversar e não sei se seria uma boa ideia iniciar essa conversa com o pé esquerdo... - Os seus olhos estão vidrados, e as mãos estão trêmulas. Ela olha de mim para Castiel, incerta sobre quem a assusta mais. Ergo as mãos no ar em sinal de rendição, e tento usar a voz mais gentil que tenho disponível aqui dentro do peito - Por favor?

Onde estamos? - Sua voz sai trêmula, e ela continua segurando o abajur como se realmente fosse usá-lo.

—Hotel Mormont. - Respondo, entredentes.

—Por que me trouxeram aqui?! - Dou um passo para frente, dando mais um gole na budwiser. Essa não vai ser uma conversa fácil.

—Acho melhor você se sentar, Hazel. - Sugiro, já cansado por antecedência.

—Não vou sentar porcaria nenhuma! - Tento dar mais um passo em sua direção, mas isso parece piorar as coisas - Não chegue perto de mim!

—Ah, quer saber?! - Suspiro irritado e pego a porcaria do abajur da mão dela sem muito esforço, e o arremesso na cama - Senta, garota. Ninguém vai tocar em você, ok? Então, vamos acalmar os nossos nervos. Sei que me reconheceu lá no consultório, mas como você teve um momento de...confusão, vou reafirmar algumas coisas para você... – Respiro fundo e a olho nos olhos. Parece tão confusa — Antes de desmaiar você me perguntou se eu era mesmo o Dean, e bom... sou eu. – Infelizmente, penso comigo. Gostaria de ser qualquer pessoa no planeta, menos eu mesmo – Sinto muito que tenhamos nos reencontrado dessa maneira. Esse aqui é o meu amigo, Castiel...acho que já se conheceram. - Castiel acena para ela com um sorriso triste no rosto. Sei que ele se sente culpado pelo que aconteceu na biblioteca - É realmente melhor que você se sente, Hazel. Seja lá o que enfiaram na sua cabeça durante esses últimos anos, não foi a verdade.

Ela parece estar para além do estado de choque. Olha de mim para Castiel, e então para a porta. Após o que parece ser uma luta mental, ela se senta, as mãos se agarrando uma na outra na tentativa de lhe prover algum conforto.

—Se ele está aqui...- Seus olhos verdes estão com as pupilas comprimidas, como se encarasse o sol. Está em estado de alerta. Olhar para Castiel parece ser algo que demanda esforço físico - Então...aquele dia na biblioteca...

Vejo sua confusão se alastrando. Seus olhos ficam oscilando, de um lado para o outro, e ela sussurra coisas para si mesma.

—Foi tudo exatamente como você se lembra, Hazel. - Castiel se apressa a dizer, dando um passo para frente, ficando ao meu lado e olhando com cautela para a garota que mais parece uma bomba relógio em nossa frente - Tudo. Aquele que a atacou, ele é Raphael. Assim como eu...ele é um, hm...

Ele hesita. Já vi Castiel explicando a natureza de seu ser algumas vezes, e isso nunca pareceu um problema, mas em poucos minutos pude perceber que ele tem medo de que a qualquer momento a garota vá quebrar.

Eu sei que ela vai quebrar. Já quebrou, na verdade. Como é inevitável, as palavras escapam da minha boca sem muita delicadeza:

—Anjos. Eles são anjos. Sim, eles existem. Não, na maioria das vezes isso não é uma coisa boa...- Molho os lábios e me ajoelho à sua frente, ficando com os olhos no mesmo nível que os dela, ergo a sobrancelha e continuo - Demônios são uma coisa real, também. Ruins, sempre. Mas, as vezes, úteis. Existe uma caralhada de coisa no meio disso tudo, e eu sou um caçador. Eu caço essas coisas, e o Sammy...

Minha voz morre por um momento, mas eu pigarreio e me recomponho:

—Sammy sempre foi um caçador, também. Sei que ele nunca te contou, e não deveria, mesmo...- Posso ver ela se encolhendo todas as vezes que pronuncio o nome do meu irmão, mas ela mantém os olhos firmes nos meus, como se quisesse me mostrar que está atenta a cada movimento meu, pronta para me atacar com seu abajur-super-perigoso ao menor sinal de perigo - Aconteceu coisa demais para que eu possa resumir a você, então preciso saber se está acompanhando. Está?

Surpreendentemente, sua cabeça se movimenta para cima e para baixo, lentamente, em sinal de uma concordância relutante.

—E você está enganado, sobre uma coisa. Ele me contou. — Seu olhar é sombrio, e eu olho para Castiel. Eu não sabia que Sammy havia contado essas coisas para ela, na época. Me lembro com clareza de como ele ficou quando tudo acabou, no entanto. Devastado.

E nunca falou sobre o assunto. Nenhuma vez.

—E mesmo com tudo o que ele aparentemente te contou...e com tudo o que você viu em outubro de 2000...conseguiram te convencer de que você havia ficado louca? – Sei que não devo ter soado muito sensível com a situação dela, mas é uma dúvida genuína. Hazel me olha com um misto de raiva e exaustão mental.

—Você não faz ideia do que uma mentira repetida vezes demais é capaz de causar a uma pessoa, Dean Winchester. Eu só tinha dezessete anos, e todo mundo ao meu redor me disse que eu estava louca. No começo você reluta, sabe? – Sua voz sai com escarnio e dor, como se ela se recordasse de cada momento bem até demais – Depois de uma internação e remédios injetáveis você faz as pazes com a ideia de que talvez, só talvez, você esteja mesmo louca e que sua vida pode ser mais fácil se você conviver com esse fato.

Do seu olho esquerdo, uma lágrima escorre. Ela desce pela sua bochecha até encontrar os lábios, e então se dissolve. Ela está em um estado estático de raiva, aceitação e confusão.

—Justo...- Digo, meio pesaroso. Não deve ter sido fácil para ela, eu imagino. Dou mais um gole na minha cerveja e prossigo – De qualquer forma...coisas demais aconteceram de lá para cá, Laverne. O Sammy...- Pigarreio, não sei muito bem como abordar isso com ela. Minha voz acaba morrendo, e Castiel coloca a mão no meu ombro.

—Se eu pudesse te mostrar tudo, Hazel...seria mais fácil? – Castiel a olha no fundo dos olhos. Acho que ele planeja fazer algum dos seus truques angelicais, e realmente...mostrar sempre é bem mais fácil do que contar.

—Eu acho que tenho uma ideia de como posso ver o que vocês querem me mostrar. De outra forma. – Seu olhar é taciturno, como se ela soubesse de um segredo que ninguém mais sabe.

Do que diabos ela está falando?

Quando abro a boca novamente para falar, ela faz algo inesperado. Hazel retira suas luvas, devagar, e estica a mão trêmula na direção do meu rosto. Franzo o cenho, estranhando o movimento, e mexo a cabeça um pouco para o lado por reflexo. Ela hesita por um momento, nervosa, mas então segue adiante e sua palma repousa sobre o meu rosto.

E então tudo vira uma tela preta.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne.

Eu não uso minhas mãos há anos.

Nunca a usei em ninguém propositalmente, na verdade. Sempre foram acidentes. Até que aprendi que podia cobri-las e me proteger desse meu dom e seguir adiante com a minha vida como se esse meu poder não fosse real.

Mas ele é, sim. Sempre foi.

Nos meus anos iniciais, ao encostar nos meus pais eu vi os horrores dos seus passados. Era como invadir suas mentes. Não me lembro da maioria das coisas pois era pequena demais para reter memórias assustadoras com clareza, e com apenas dez anos desenvolvi esse método de escudo: Luvas. Fizesse frio ou sol, elas me protegiam. Quando questionada, sempre mentia sobre ter T.O.C ou coisa do tipo. Com o tempo, as pessoas param de perguntar. Elas aceitam sua estranheza e seguem adiante com suas vidas. A pele da minha mão jamais encostou na maioria das pessoas.

Me lembro da primeira vez que toquei Sam Winchester, e no que isso acarretou.

Usar as minhas mãos em Dean parece uma ironia.

Mas há informação demais. Coisas demais a serem ditas e eu sabia que nem com todo o tempo do mundo ele conseguiria dizer tudo o que estava tentando. E depois que entrei em estado de apatia e pude finalmente escutar...entendi que isso não seria o suficiente, então decidi ver.

Mas eu não estava preparada para o que estaria vendo.

Primeiro, revi o dia em a mãe deles morreu, essa é a lembrança mais antiga de Dean. Mesmo que fosse só uma visão, ver as chamas consumindo a casa fazia eu me contorcer. Não chego perto do fogo, em hipótese alguma. Quando se sobrevive a ele, sua pele cria uma memória, um lembrete. Ela te alfineta em um milhão de nervos só para deixar claro que ela jamais se esquecerá. Depois, flashes de sua infância...

Dean sempre cuidara de Sam. Sorri triste ao ver os dois meninos, aparentemente tão vulneráveis. Reconheci John Winchester na visão, explicando a Dean algo que mudaria o curso das coisas:

—Monstros são reais - Sua voz era dura e fria. O pequeno Sam estava dormindo no quarto ao lado, enquanto Dean ouvia ao pai atentamente.

—Tipo...todos eles? - O garoto questionou.

—Todos eles. Mas eu vou ensinar vocês dois a matá-los... - John deu um sorrisinho orgulhoso— Mas, por enquanto, Samuel é muito pequeno, entendeu? Ele não pode saber...ainda.

E então a visão se transformou, vi que alguns anos haviam se passado. Os vi em um natal solitário em um quarto de motel de beira de estrada barato, Dean saiu para esfriar a cabeça e quando voltou se deparou com um Sam muito aflito. O mais novo havia achado o diário do pai...e aquilo o destruiu. Monstros eram reais e ele jamais estaria a salvo. A única pessoa capaz de fazê-lo se sentir seguro era seu irmão mais velho. Por isso, deu a ele um colar muito especial.

Muito tempo se passou, e os vi sendo criados como soldados, dois garotos franzinos que já sabiam atirar e a dirigir e a lutar antes que a maioria dos jovens de sua idade tivesse aprendido a ir ao outro lado da rua por conta própria. Tive de me segurar ao ver cada criatura disforme que se apresentou nas visões.

Lobisomens, vampiros, fantasmas...e mais. Muito mais. Eu não poderia nomear cada um deles. Não poderia descrevê-los, nem mesmo se tentasse.

E então os vi maiores, enfrentando homens com olhos negros, e um com olhos amarelos. Esse fez meu coração vacilar, porque ele havia estado presente na noite em que perdi meus pais. Azazel.

 Em seguida, vi Dean segurar o corpo de Sam, sem vida, após ele receber uma facada nas costas. Meu peito se contorceu imediatamente e eu tive vontade de gritar, mas antes que eu pudesse absorver essa informação, pude ver Dean negociando com uma mulher em uma encruzilhada, e como em um estalar de dedos, Sam Winchester se ergueu dos mortos. Um lapso de tempo depois, Dean foi quem conheceu a morte. Sam o embalou em seus braços, cobertos de sangue. Imagens confusas de um lugar horrível dançaram em minha frente, rápido demais para que eu as absorvesse ou as entendesse. E então Castiel...Castiel o tirou de lá. Mas então, Sam estava diferente. Muito diferente.

Vi Dean observar Sam bebendo...bebendo...

Sangue?

Um calafrio me percorreu por completo, mas decidi ser firme. Ainda havia muito o que ser visto..., mas ele estava tão diferente.

Os cabelos haviam crescido. Estava mais forte. Os olhos se tornaram mais frios, quase como se uma manta de gelo cobrisse seu oceano particular. E então o vi erguer a mão e fazer homens se contorcerem enquanto uma fumaça negra saía de suas bocas até se infiltrarem no chão. E então vi brigas. Diversas brigas.

Algumas físicas. Vi como Dean odiava uma mulher de cabelos castanhos que parecia mostrar a Sam um caminho sem volta, e vi milhares de vezes onde Sam Winchester pareceu se despedaçar aos olhos de Dean, aos poucos.

A visão mudou, com coisas demais para assimilar. Os 666 selos, os cavaleiros do apocalipse...e então, aquele era...?

Lúcifer era real. Todos os monstros debaixo da cama eram reais.

E então, Sam era...Sam era Lúcifer?

Fiquei tonta quando o vi espancar Dean em um cemitério, a plena luz do dia. E então o vi se afastar, jogar um objeto prateado no chão e dizer adeus com os olhos.

A terra se abriu, engolindo Sam. E foi nesse momento que decidi que tinha visto demais.

XXX

Me afastei de Dean Winchester, arfando pesadamente enquanto minhas costas procuraram a parede. Percebi que estava gritando a algum tempo, então tapei a boca com força e raiva. As lágrimas me consumiram, e recebi o olhar preocupado de Castiel, que ia de Dean para mim. Dean Winchester continuava no chão, de joelhos, completamente confuso pelo que tinha acontecido.

—Ele está morto?! - Minhas palavras têm um sabor amargo.

—Como você...o que você...? - O olhar vidrado de Dean tentando entender tudo só me deixa mais desesperada.

—Me responde, merda! Sam está morto?! - As minhas lágrimas rolaram sem nenhuma censura, e eu sinto uma sensação quente no peito.

Desespero.

Dean não é capaz de responder. Ele está baqueado demais com o que acabou de acontecer, então é Castiel quem dá um passo à frente.

O anjo me explica tudo o que está acontecendo, dando sentido a todas as memórias de Dean Winchester que eu havia revirado e absorvido, enquanto o caçador se recuperava da minha invasão.

XXX

Vou até o pátio do hotel pegar um ar. Nenhum dos dois protesta, eles sabem que após tudo o que havia chegado à luz da verdade diante dos meus olhos, eu não vou tentar fugir. Checo meu celular e respondo a algumas mensagens de Charlie, assegurando a ela que estava bem.

Também respondo a algumas mensagens do Sr.Hudson e ignoro as setenta e cinco mensagens de Antonella Laverne. Deleto uma a uma manualmente, o que é terapêutico tendo em vista que vim aqui tentar me distrair, colocar a cabeça no lugar.

Se é que isso é possível no meu caso.

Fico andando por ali, quase que em círculos, por um bom tempo. Paro de olhar para o relógio depois que percebo que não havia sentido algum em que horas eram ou que horas seriam.

Durante todos esses anos, imaginei um milhão de futuros para Sam, mesmo que não quisesse. Era inevitável pensar nisso as vezes. Havia se tornado um grande advogado, como eu sabia que queria? Havia se casado? Era feliz? Se lembrava de mim?

Nunca, jamais, considerei a possibilidade da sua morte prematura. Mas depois de tudo o que havia visto nas memórias de Dean Winchester...

Quantas vezes um ser humano podia morrer e voltar dos mortos?

E então havia o que Castiel se dispôs a me contar, enquanto Dean estava estático no chão. Decido pegar um papel de dentro do meu casaco e me sento no bar do hotel.

—O que vai querer? - O barman me examina.

—Você tem uma caneta? - Ele franze o cenho, achando que é algum tipo de piada de mau gosto. E então vê que eu estou falando sério, e assente, me entregando uma.

Decido fazer uma lista para me organizar meio ao caos:

1 - Sam está vivo. Mas não exatamente. Sua alma está presa no inferno. Apenas o seu corpo está de volta.

2 - Hm...há um inferno. E um céu. E um vazio, e um purgatório...

Muitas reticências.

Muitas, mesmo.

Todas elas.

3 - Eu estou, de alguma forma, conectada a um demônio misterioso e sem nome. Talvez por isso mesmo tivesse esse meu dom. Assim como Sam havia herdado dons por Azazel, algo semelhante poderia ter ocorrido comigo.

4 - O céu está atrás de mim. O inferno também. Bom, metade dele para me matar. A outra metade...

Vamos deixar esse tópico em aberto por falta de informações.

5 – Minha avó me jogou em um hospital e, com a ajuda dos médicos, me convenceu que eu estava louca e desde então eu me dopo com remédios que sequer preciso. Tudo o que aconteceu entre 1999 e 2000 foi real.

6 - Minha vida corre perigo. E eu preciso abandonar tudo o que eu construí para trás, porque não há escolha. É um milagre eu estar viva nesse exato momento. E permanecendo, coloco todo mundo que eu me importo em risco.

7 - Deveria estar lidando com tudo isso com muito mais estranheza. Porra, mais cedo eu havia desmaiado de choque e confusão mental por rever Dean Winchester. Mas agora, depois de ver tudo...

Era a verdade, e não muito se resta a fazer com a verdade a não ser enfrentá-la.

8 – Talvez minhas memórias bagunçadas e esquecidas possam ser a chave para algo que eu definitivamente não estou pronta para descobrir. Sempre achei que a perda de memória dos anos que passei na família universal fosse apenas por algum tipo de trauma. Mas... e se tiverem respostas lá, no fundo do meu subconsciente?

9 - Dean Winchester pensou que eu não fosse inocente, e se convenceu de que eu poderia, de alguma forma, levá-lo a Sam. E agora que sabe que sou inocente e que corro perigo, não tenho escolha a não ser ir com ele para onde quer que seja.

10 - Descobri que não sou tão egoísta quanto devia e que minha autopreservação tem um limite muito, muito pequeno. Quase nulo. Porque mesmo depois de como tudo acabou, não posso parar de pensar na alma de Sam, e em como quero ajudar Dean a recuperar o irmão, custe o que custar.

11 - Sam Winchester, ou melhor - o corpo de Sam Winchester— tem a missão de me matar.

Repouso a caneta na bancada, e fico em silêncio por alguns minutos enquanto assimilo tudo. Releio a lista algumas vezes, porque é assim que tinha aprendido a lidar com tudo na vida: Organizar, reavaliar...resolver.

Sr. Hudson havia me ensinado isso.

—Uma tequila, amigo, por favor? – A voz de Dean Winchester se faz presente ao meu lado. O barman assente e traz a ele uma dose, que ele elimina com facilidade, batendo o copinho pequeno na bancada – Você não bebe, Laverne?

—Não, não bebo. – Minha voz sai na defensiva.

—Bom, talvez deva considerar começar a beber...agora que a sua vida vai virar de ponta cabeça. Mais uma, amigo? – Ele pede, novamente eliminando a bebida como um piscar de olhos – Laverne...eu vou dizer isso da maneira mais educada que eu consigo...nunca mais faça aquilo, me ouviu? Nunca mais entre na minha cabeça com...esses seus poderes estranhos. Minha mente é um lugar privado e eu gostaria de mantê-lo dessa forma. – Ele me encara com os olhos muito verdes e sérios, ameaçadores. Uma pontada de dor percorre todo o meu corpo.

Tão parecidos com os dele...mas tão diferentes.

—Não tenho o mínimo interesse em fazer isso de novo, confie em mim. Não é nada agradável para mim, também. – Me encolho, pensando em anos e anos tendo que me privar do toque humano apenas para não ser arrastada para a cabeça de outra pessoa contra a minha vontade – Mas foi mais fácil assim, não é?

Dean Winchester assente.

—É, você tem razão. E como está a sua cabeça? Não me entenda mal, você parece meio desequilibrada. Preciso me assegurar de que você entende a seriedade das coisas...- Meu rosto queima de raiva, e eu o interrompo:

—Quem você pensa que é para me chamar de desequilibrada? Porra, Dean! – Me levanto e peguo meu papel com as anotações, bufando de raiva – Me desculpe se a minha cabeça foi praticamente lobotomizada com mentiras através dos anos ao ponto de eu não entender mais o que era real ou não! Você apareceu e mexeu com toda a minha linha de realidade, e eu estou tentando digerir tudo isso!

—Eu não tenho tempo para ser delicado com você, garota! – Dean se levanta e começa a andar ao meu lado – Precisamos correr contra o tempo. Precisamos nos certificar de que você não caia nas mãos erradas, para começo de conversa. E precisamos descobrir quem é o demônio que tem essa conexão tão importante com você ao ponto de te transformar na indesejável número um do céu e da terra. E aí então...talvez a gente consiga salvar a alma do Sam.

—Eu entendi, Dean! Eu entendi a porra da importância de tudo o que está acontecendo, ok?! Mas se você parar de falar comigo dessa maneira áspera, talvez eu consiga organizar melhor a minha mente! Você...você não entende...

Entender!? – Agora ele assume uma postura muito, muito rígida, e parece irado da vida – O que acha que não consigo entender? É o meu irmão que está em jogo!

—Não fala assim, por favor... – Travo o choro na garganta, sentindo-a queimar e aponto meu indicador na cara dele – Como se ele só importasse para você. E caso não tenha notado, sei que você não se importa se eu vivo ou não, mas minha vida e o meu futuro acabam de ir para a vala. Pode me dar ao menos uma noite para assimilar?

—Não! Não posso! Sabe por qual motivo? Enquanto a gente conversa e você dá esse seu chilique comigo, vários demônios e anjos estão por aí tentando te rastrear. E o corpo do Sammy também, que caso não tenha ficado claro, tem instruções diretas para levar você a Crowley! – Me encosto na parede do corredor do hotel, encarando o chão.

—Que chilique eu dei, exatamente? Você é quem está erguendo a voz para mim desde o primeiro momento. E por que fingiu ser um psiquiatra, Dean? Por que não tentou entrar em contato comigo de maneira normal? Sei que as coisas entre mim e Sam acabaram... mal. – Dou um longo suspiro, zonza por tudo isso – Mas eu jamais me negaria a falar com você, Dean, especialmente se tratando de Sam. Então por que...

Mas ele me interrompe, a voz mais alta que antes e o indicador no meu rosto.

—Porque eu estou desesperado aqui, porra! Porque por um momento eu pensei que você soubesse de tudo e até pensei que fizesse parte dos planos desse demônio que eu nem sei o nome! Porque eu pensei que tivesse fingido tudo, até seus sentimentos pelo meu irmão! E depois eu saquei, tá bem? – Me tremo por completo. Me odeio por ficar assim todas as vezes que gritam comigo. Eu congelo.

Eu sempre congelo.

Sempre acho que algo ruim, algo físico vai acontecer. Sempre que gritam comigo, acho que Harvey Talbot vai ressurgir dos mortos e me espancar como ele amava fazer em vida. Anos se passaram, mas isso nunca mudou.

Se alguém grita comigo...eu mal consigo me mexer.

—Eu saquei que eu me enganei. Você é inocente nessa merda toda, e eu adoraria poder ter tempo o suficiente para te ajudar com seja lá o que você esteja sentindo agora, mas não temos esse luxo! Você entende que eu preciso sair por aí com uma garota que nunca sequer segurou uma arma? E que preciso me certificar de que você fique viva no processo enquanto anjos e demônios estão colados no nosso rabo?! – Não consigo responder. Estou completamente travada. E ele apenas continua, não parece notar meu estado de choque – Preciso te levar a um lugar onde sei que vou conseguir te treinar, pelo ao menos um pouco, para o que está por vir. Se você não conseguir...estaremos perdidos. Então acorda, garota! – Sua voz sai ainda mais alta nessa última frase.

Dean Winchester suspira, exausto e passa as mãos em seus cabelos.

Permaneço em silêncio.

Ele me encara, o cenho começando a ficar franzido enquanto percebe que eu estou praticamente dissociando. Sua postura de peito estufado e raiva nos olhos vai se desfazendo aos poucos, como se ele fosse murchando. Ele percebe que passou do ponto.

—Eu...eu me alterei um pouco. Eu gritei, me desculpa, Laverne... – Dizer isso parece estranho para ele, como se não estivesse acostumado a isso. Continuo parada, com raiva do meu corpo e da minha voz por desaparecer assim. Só consigo ficar olhando para ele, tremendo dos pés à cabeça.

Como se a qualquer momento, eu fosse ser atingida. Muitas coisas estavam erradas no meu "diagnóstico", mas em uma coisa eles acertaram. Estresse pós-traumático.

Ele dá um passo à frente e eu me assusto e acabo reagindo, erguendo as mãos no ar para me proteger, como se ele fosse me bater. Dean recua e fica confuso. Aos poucos, abaixo as mãos, trêmula. Ficamos em silêncio por alguns segundos, e então ele resolve falar:

—Me desculpa, de verdade...- Ele tem um olhar de quem se lembra de algo. Talvez esteja se lembrando das vezes que nos vimos no passado, quando os problemas com o meu pai ameaçaram o meu relacionamento com o Sam e muitos conflitos aconteceram, alguns aos quais ele mesmo participou. Talvez entenda o que isso significa para mim até os dias de hoje, ele pode não ter visto os hematomas como Sam via, mas ele sabia o que acontecia comigo.

Aos poucos, vou me acalmando e recobrando o controle do meu corpo e da minha mente. Consigo parar de tremer, e me recomponho, muito envergonhada por ter ficado nesse estado.

É humilhante passar por isso. Inúmeras foram as vezes que eu me encolhi igual a um bebezinho quando algo caía no chão e fazia barulho. Ou as vezes que fiquei sem fala diante de qualquer pessoa que erguesse a voz para mim. Mas assim é sobreviver a um trauma; ele sempre te limita e te assombra. Dean me olha com culpa, desconcertado.

—Não posso simplesmente desaparecer com você seja lá para onde for essa noite, preciso pedir afastamento do jornal e preciso trancar a faculdade. Preciso avisar a apenas duas pessoas que estou...- Penso em uma boa mentira para dizer a Charlie, e nem quero pensar em como Sr. Hudson vai reagir a isso. Algo finalmente me vem em mente – Vou dizer a todos que estou me afastando para cuidar da saúde mental. Como você mesmo apontou, eu sou desiquilibrada. Não deve ser uma mentira difícil de comprar. – Uso as palavras com um tom amargurado, deixando claro que não aceitei a forma como ele falou de mim. Ele assente, ainda meio envergonhado por ter gritado comigo da maneira que gritou.

—Certo. Talvez queira fazer isso por escrito? É que, hm...o verdadeiro Doutor Hawthorne deve estar prestando queixa agorinha, então...- Ele coça a cabeça, claramente desconfortável.

—Eu só preciso de privacidade para fazer três ligações...uma para o meu chefe...- Um bolo se forma na minha garganta. Sr. Hudson não é só o meu chefe, ele tem sido como um pai para mim. Afasto esse pensamento — Uma para minha melhor amiga e uma para a faculdade.

—Partimos assim que você fizer isso, então. Você consegue terminar isso tudo em dez minutos? – Assinto, porque não planejo ficar muito tempo falando com eles. Seria difícil demais – Bom. Estarei no hall te esperando para subir...e Laverne?

Ele se vira para mim, antes de ir.

—Hm? – Murmuro, enquanto pego meu celular.

—Me desculpa mesmo, por...você sabe. Eu não parei para pensar que meus gritos podiam... fazer isso com você. Me desculpa. – Dean não me olha nos olhos e se vira sem saber se eu o perdoo ou não.

Encaro o celular em minhas mãos, e tenho certeza de que não há volta.

Eu acabo de perder tudo.

De novo.

A essa altura, eu não deveria sentir nada. E nesse exato momento, estou mesmo meio apática. É como se a ficha não tivesse caído ainda...mas sei que ela vai cair.

E quando cair...

Vai doer em dobro.

XXX

Ponto de vista de Dean Winchester.

Enquanto espero por ela, fico olhando o número da Lisa na lista de chamadas. Penso em tudo o que estou prestes a viver, e deleto o número de Lisa Breaden dos meus contatos.

Respiro fundo e reflito sobre a maneira que tratei a garota, minutos atrás. Preciso parar de agir como se as pessoas fossem soldadinhos e eu fosse o general. Acho que com tudo o que tem acontecido, tem sido inevitável replicar alguns comportamentos do meu pai. A dor de tudo tem sido tão insuportável, que é como se a dor dos outros não importasse.

Mas eu não posso continuar agindo desse jeito se quiser que as coisas deem minimamente certo. Eu me lembro com clareza de como essa menina sofreu na mão do pai. Porra, é claro que ela ia ficar daquele jeito comigo gritando com ela. Eu sou um grandissíssimo idiota. Hazel finalmente chega ao Hall, me trazendo de volta ao presente. Seu olhar está distante, e ela se encolhe em sua jaqueta jeans como se sentisse frio.

—E então? Tudo...tudo certo? – Pigarreio, ainda desconfortável em interagir com ela. Hazel é relativamente pequena e magra, e tem olheiras que indicam que sua vida não vai bem a algum tempo.

Se chegarmos a cair em mãos erradas, e iremos...ela não aguenta uma luta corporal. De jeito nenhum.

Estamos perdidos.

—Sim. Tudo está...resolvido. – Assinto, e faço um gesto para que me acompanhe.

—Temos que conversar sobre algumas coisas...antes de irmos. – Digo isso meio incerto e ela concorda com a cabeça, e ambos entramos no elevador para subir ao quarto, onde Castiel nos espera. Nenhum de nós fala nada, e o clima fica bem desconfortável por isso.

Quando a porta se abre, finalmente vamos em direção ao quarto, onde Castiel está olhando, muito concentrado, pela janela. Ao nos ver, anda em nossa direção, o olhar sereno e azul.

—Tudo resolvido? – Ele ergue a sobrancelha, interessado na resposta. Ambos fazemos que sim com a cabeça, e Castiel molha os lábios antes de continuar – Preciso ir...mas antes, Hazel, saiba que gravei escritas enoquianas em suas costelas. Assim nenhum anjo vai te achar com facilidade, o Dean as tem também! – Hazel arregala os olhos, e eu fico com vontade de rir, mas seguro a minha onda. Cas apenas prossegue como se o que acaba de falar fosse algo perfeitamente normal e socialmente aceitável. Isso nunca perde a graça para mim— Isso não significa que estejam seguros..., mas já é um passo, não é mesmo? E me desculpe mesmo, pela noite na biblioteca. Eu precisava ver com os meus próprios olhos, sabe? Me certificar de que você era inocente.

Hazel não responde, apenas assente. Parece incerta em como se comunicar com a gente...e eu entendo.

—Vou continuar procurando o paradeiro do corpo de Sam, Dean. – Cas coloca a mão no meu ombro, e de rabo de olho percebo o corpo de Hazel se retrair ao ouvir o nome do meu irmão. Seja lá o que tenha acontecido entre eles, Sam ainda a afeta. E muito— Prometo fazer o melhor que puder. Quanto a vocês...boa sorte. Caso as coisas fiquem feias...sabe como me encontrar, Dean.

E com um sorriso sereno, some.

E novamente, os olhos de Hazel se arregalam.

XXX

—Preciso passar em um lugar. – A voz de Hazel corta o silêncio, ela sentada no banco do carona e eu olho para ela, sem tirar a atenção do volante.

—Onde? – Dou seta e ultrapasso um carro.

—O dormitório da minha amiga...tenho que pegar algumas coisas. Se eu entendi direito vou cair na estrada com você sabe-se lá por quanto tempo, não é isso? – Assinto, e ela continua – Preciso de roupas, e algumas outras coisas.

—Faz sentido, e Hazel...depois que pegar suas coisas, realmente precisamos conversar.

Seus olhos me encaram, e não posso evitar me lembrar um pouco de Sammy nesse momento. O olhar devastado dela deixando sua vida para trás, me lembra o olhar que meu irmão tinha na noite que deixou Stanford por minha causa.

XXX

Ela demora cerca de vinte minutos no dormitório da amiga, e logo reaparece com uma mochila nas costas e entra no carro sem falar nada. Deixo que continue em silêncio por um tempo, enquanto caímos na estrada para a saída de Nova York. A noite está escura e há muitos carros formando um engarrafamento.

Ah, eu odeio Nova York.

—Então...- Começo, e fecho a janela por causa de uma garoa que se inicia – Mais cedo você me disse que Sammy...que ele te contou sobre o negócio de família. E você revirou a minha cabeça atrás de lembranças, aposto que viu umas coisas de revirar o estômago. Estou certo? – Ergo as sobrancelhas e olho para ela.

—Está. – Ela tem os olhos na estrada. Evita contato visual.

—Eu acho que o que eu quero dizer é...estou te levando a um lugar onde vou tentar te preparar, no limite do possível, para as coisas que vão vir pela frente. Você...eu vi que você tem uma questão com gritos e coisas assim...- Tento ser delicado na minha escolha de palavras, e ultrapasso um carro quando ela finalmente me encara. Pigarreio e continuo – Precisamos trabalhar isso, Hazel. Se em uma situação de vida ou morte você congelar daquele jeito...

—Eu não consigo controlar. Tentei por anos, entende? – Sua voz é baixa, e eu a escuto com atenção – Não faço ideia de como lidar com todas aquelas coisas que vi nas suas lembranças, Dean.

—Eu vou te ajudar. Todo mundo tem...limitações. Traumas. – Digo isso com muita sinceridade – Você consegue. Só preciso saber que está...ciente. Preciso preparar você, garota. Querendo ou não, sua vida está em jogo. – Ela se encolhe mais pelo frio.

—E que lugar é esse que você está falando? – Ela quer saber.

—A casa de alguém que considero família. O nome dele é Bobby, e ele é, muito provavelmente, o melhor caçador que existe. Lá nós vamos te mostrar o básico, informações gerais que todo caçador tem que saber...e você precisa aprender a manejar uma arma, dentre outras coisas que podem te salvar em uma situação de vida ou morte. – Ela parece absorver as minhas palavras por um momento, e finalmente consigo sair do engarrafamento.

—Do jeito que você fala, parece até que vai me ensinar a ser uma caçadora...– Dou uma risadinha.

—Garota, acho que a essa altura seja bom você entender...você vai aprender a ser uma caçadora. Não tem volta, na sua situação. – Olho para ela de um jeito sombrio, porque a verdade dói e é obscura e não tem outro jeito – Você está vivendo o que eu gosto de chamar de "virada de chave". Todo caçador tem uma virada de chave, e aí acabou, não tem volta. Está no negócio de família.

—No meu caso, não é negócio de família. Estou sozinha. – Ela diz isso pensativa, a cabeça encostada no vidro embaçado pela chuva que aumenta – Sozinha para valer.

—Na estrada, vai aprender que família não termina em sangue. E nem começa com sangue, também. Não vai estar sozinha, Hazel. Sei que começamos com o pé esquerdo, mas você importa para mim. Afinal, você e Sammy...

Minha voz morre por um momento. Me lembro de como as coisas foram tensas quando o incêndio aconteceu, quando o pai da menina foi possuído por um demônio e matou a mãe da garota na frente dela. Me lembro de Sam visitá-la no hospital...

E de depois dizer que tudo acabou. E nunca mais tocou no assunto.

Depois que as coisas com a Hazel acabaram, Sammy nunca mais foi o mesmo.

—Hazel, tem algo que eu sempre quis saber... – Começo, com cautela. Ela me olha com um vinco na testa – Você e Sam...o que aconteceu, exatamente?

—Sério? – Ela diz na defensiva – Como se você não soubesse...

—Não sei mesmo, estou falando sério. Sammy...ele nunca mais disse uma palavra. Ficou destruído por muito, muito tempo. Mas não disse uma palavra. – Ela aparenta ficar confusa de repente.

—Não faz sentido, já que foi ele quem decidiu...sumir. Ele nunca nem foi me ver no hospital, Dean. Ele simplesmente...me deixou para trás. – Quase freio com tudo. A baby dá um tranco, e eu vou para a beira da estrada e finalmente estaciono – O que foi?! – Ela diz assustada pela minha atitude repentina, mas não posso evitar o choque.

Estou com as mãos no volante, os nós dos dedos ficando brancos.

—Foi isso o que sua avó te contou?! – Pergunto com os olhos arregalados. Hazel ajeita a sua postura no banco e assente, mais confusa do que antes. Ficamos nos encarando um tempo, e eu fico incrédulo. E então junto as peças na minha cabeça.

Se a avó foi quem enfiou ela em um hospital psiquiátrico para começo de conversa, é claro que ela pode ter mentido sobre Sammy também. Agora tudo faz sentido.

—Hazel, eu juro pela minha mãe, não foi isso o que aconteceu. Se sua avó te disse que o Sammy nunca foi te ver, ela mentiu. Ela mentiu para caralho! – Vejo algo quebrando dentro dela, mas não paro de falar – Depois do acidente, ele ia todos os dias ao hospital, e voltava arrasado! Nunca falou nada..., mas, Hazel, ele não deixou de ir, nenhum dia. Sua avó...não deve tê-lo deixado entrar. Sua avó mentiu para você, Hazel.

Hazel coloca o rosto entre as mãos, e começa a respirar com dificuldade.

—Não, não...Dean, se isso que você está me falando é verdade...- Sua voz sai quebrada.

—Juro pela minha mãe! Por que é que eu mentiria?! – Ela abre a porta do carro e sai no meio da chuva, e vomita na sarjeta. Saio do carro e vou até ela, que hiperventila e anda de um lado para o outro, enquanto somos ambos encharcados pela chuva – Isso explica tudo. O porque ele ficou tão devastado, ao ponto de aceitar ir embora com o pai e eu... ela deve ter mentido para ele também, dito algo que não sabemos. - Respiro fundo, a cabeça doendo por tudo isso - O que mais a sua vó te disse?

—Aquela mulher me fez de marionete direitinho! – Ela grita, o cabelo grudando no rosto e no corpo pela chuva – Eu sou uma idiota, uma idiota! – Mesmo pela água da chuva, posso ver que ela está chorando, o peito subindo e descendo com tanta informação – Ela me disse que ele nunca foi me ver, Dean. Nenhuma vez! – Seus olhos estão devastados, e sinto o meu peito se contraindo, aflito. A chuva gelada nos castiga sem parar enquanto nos encaramos, ambos incrédulos perto da sarjeta meio ao escuro da noite - Eu pensei que ele não me quisesse mais, e que não tinha tido coragem de me dizer isso pessoalmente! E por anos eu...

Ela se encolhe, se sentando na sarjeta, o rosto enterrado nas mãos, a voz morrendo no meio da frase.

Sinto o meu peito arder, porque só de ouvir tudo o que ela passou pelas mentiras que lhe foram contadas, me sinto revoltado.

—Eu o odiei, eu me ressenti dele por todo esse tempo! – Ela consegue dizer, e me sento ao seu lado, olhando-a com preocupação – Eu cultivei um ódio dentro do meu peito por quatro anos, Dean! – Ela abraça as próprias pernas, vulnerável e morrendo de frio – E quando tudo aconteceu, eu estava...eu estava...

Sua voz morre, o choro lhe consumindo violentamente. Fico confuso.

—Estava...? – Ela me encara no fundo dos olhos com uma dor tão profunda que até eu a sinto, quase como se fosse minha. O que ela pode estar prestes a me dizer, que doa tanto assim?

—Eu não tive oportunidade de dizer uma coisa a ele, Dean. E agora que sei que minha vó mentiu sobre as outras coisas, acredito que ela mentiu sobre isso também. Ela me disse que ela entrou em contato com ele e que Sam não se importou.... - Continuo confuso com suas palavras, e sua dor parece se intensificar.

—Saber? Saber do que, Laverne?! O que você não teve oportunidade de dizer a ele?! O que sua avó diz ter contado ao Sam?! – Fico encarando seus olhos na expectativa que fale. Mas nada teria me preparado para o que ia sair da sua boca:

—Quando o incêndio aconteceu...Quando me mudei para Nova York com a minha avó, eu estava grávida, Dean. Grávida do Sam...foi um acidente. – Sinto minhas vísceras se revirando dentro de mim, agora quem está recebendo informações demais sou eu. Fico tonto por um momento. Eu sou tio?!

—G-grávida?! – Quase engasgo com a palavra - E a sua maldita avó disse que ele sabia? E que ele não se importou com isso?! – Estou em choque. Como alguém pode ser tão frio como essa mulher foi com a neta? Sinto uma raiva crescendo dentro de mim, porque ela mudou o curso da vida dos dois sem piedade – E onde está a criança?! – Digo isso desesperado, já querendo entrar no carro para buscar o meu sobrinho ou sobrinha, meu estômago se revirando com o pensamento de que a criança pode estar nesse exato momento com a nojenta da avó de Hazel. Meu deus, quando recuperarmos a alma do Sammy, quando ele souber que é pai...

Vai querer matar Antonella Laverne por tê-lo impedido de ter contato com os quatro primeiros anos do filho ou da filha. Minha cabeça ferve com todos esses pensamentos, e eu encaro Hazel em expectativa.

Ela sacode a cabeça, de um lado para o outro. A chuva vai diminuindo, mas não completamente. Entendo o que ela quer dizer com isso, imediatamente. Ela tirou o bebê.

—Foi sua escolha, e não deve ter sido uma escolha fácil...- Digo, triste pelo que ela teve que passar, completamente sozinha. Mas ela aperta uma mão na outra, nervosamente.

—Não escolhi nada. Escolheram por mim...- Por um momento, tenho problemas para entender o que ela quer dizer. Mas ao ver a dor em seu olhar, minha ficha cai e o meu sangue ferve de verdade.

Que mulher maldita.

—Ela escondeu drogas abortivas na minha comida, Dean. – Ela fala com um olhar longínquo e dolorido, como se lembrasse do dia que sofreu isso com exatidão, e tamanha crueldade me dá náusea – E eu achei, por todos esses anos, que ele soubesse. Que ele não se importava. Eu o perdi antes e agora que sei a verdade, é como perdê-lo de novo.

Me levanto, o maxilar travado em raiva dessa mulher, muito tentado a encontrá-la e colocar ela na cadeia ou coisa do tipo. Respiro com dificuldade por um momento. Quando Sammy souber...

Por meio segundo, quando pensei que Sammy fosse pai, que eu fosse tio, algo se acendeu dentro de mim. Durante esse meio segundo, vislumbrei o meu irmão tendo uma família esperando por ele quando o tirássemos do inferno. Uma família completa. Amei essa criança intensamente por meio segundo, sem saber seu gênero ou nome, sem saber o seu rosto. Agora que sei que isso não é verdade...

Sinto um vazio de repente. Esse foi o meio segundo mais cruel de todos.

Respiro fundo. Se Hazel tivesse escolhido um aborto, eu não me sentiria assim, meu deus! Não teria direito de sentir nada além de empatia para falar a verdade. Teria sido uma escolha sobre si mesma e ela estava totalmente sozinha. Mas isso, isso é completamente diferente. O que Antonella Laverne fez é imperdoável, é uma violação do direito humano da garota, de poder escolher.

Volto a me sentar ao lado de Hazel, e é quase natural o que faço a seguir. Com o braço, a puxo para que encoste a cabeça em meu ombro.

—Eu sinto muito, muito por tudo isso. Eu prometo a você que se Sammy tivesse sabido, se nós soubéssemos...- Respiro fundo, porque estou tremendo de frio, raiva e tristeza – Você não teria passado por nada disso sozinha, Hazel. Sammy jamais abandonaria você, ainda mais com um bebê. Nós teríamos buscado você, cuidado de você... – Meu coração se contorce, se comprime – Cuidado de vocês.

Ficamos em silêncio por um bom tempo, a garota encolhida com a cabeça no meu ombro. Depois de digerir isso tudo da maneira que consigo, me levanto e estendo a mão para ela, que segura a minha, e isso faz com que eu fique receoso. Ela vai ter mais visões? Ela parece ler minha expressão pois logo se apressa a dizer:

—Não se preocupe. Descobri...a muito tempo atrás, que as visões só acontecem ao primeiro toque. Depois disso, só acontecem com a pessoa que eu já toquei se eu quiser. Como já toquei você hoje mais cedo, não vai ocorrer nenhuma visão acidental. – Ela solta a minha mão ao se levantar, e eu assinto, tranquilo por saber que a minha mente não foi invadida novamente.

Entramos no carro, ambos completamente encharcados, e ficamos em silêncio assimilando e digerindo todas as informações por um tempo até que finalmente avisto um motel de beira de estrada chamado Red Motel.

XXX

Após fazer o check in e guardar as coisas, fico sentado na minha cama de solteiro absorto nos meus pensamentos enquanto Hazel toma um banho quente.

Acho que nunca conheci ninguém tão machucado, sem ser Sammy e eu, antes. Ela viveu horrores.

Horrores. E todas as pessoas que deviam protegê-la, foram as pessoas que causaram esses horrores. O pai violento, a mãe omissa e a avó manipuladora e doentia. Se pudesse rebobinar no tempo, nunca teria a tratado da maneira que tratei mais cedo. Se pudesse rebobinar mais ainda, teria impedido essa mulher de separar os dois de maneira tão calculada.

Tão vil. Sei que Hazel foi a primeira namorada de Sam, e a única. Mas, se Antonella não tivesse feito o que fez, tenho certeza de que teriam ficado juntos para sempre. E teriam tido o bebê deles, talvez até mesmo bebês, no plural. Existiu uma possibilidade de Sammy ser completamente feliz e essa maldita impediu isso. Se eu pudesse matá-la...

Hazel sai do banheiro, vestida com um pijama de frio, os cabelos recém lavados molhados. Seus olhos estão vermelhos, então sei que ela passou o banho todo chorando.

Dou um suspiro pesaroso e me levanto, vou para perto dela, que me encara.

—Quero que saiba de uma coisa, Laverne, porque é importante e porque eu devia ter dito isso desde o início. Você não vai estar sozinha em nenhum momento de agora em diante. Vou proteger você como se fosse família, porque de certa forma, você foi por muito tempo, e ainda seria se não fosse...- Minha voz morre por um momento, mas me recomponho. Preciso ser firme por ela— Não sei o que vamos enfrentar daqui em diante, mas vamos enfrentar juntos. E se a gente salvar a alma do Sammy...Quem sabe vocês não...conversam, pelo menos, né? – Dou um sorriso triste, e ela encara o chão – Conta comigo e aguenta firme, é isso que quero dizer, ok? Aguenta firme e siga em frente, Laverne. Mesmo com tudo o que está acontecendo, precisamos seguir em frente.

Hazel ergue os olhos para mim, e dá um sorriso fraco. E agora, com todas as informações na mesa, vou fazer o que estiver e o que não estiver ao meu alcance para ajudá-la na jornada que está pela frente.

Porque é uma estrada sinuosa e difícil. Mas estarei lá, a cada segundo.

—Aguentar firme e seguir em frente, é? – Ela questiona, pensativa, como se já tivesse ouvido isso antes. É uma frase que Sammy e eu sempre usamos com frequência, devido a uma música que nós sempre gostamos de ouvir quando as coisas estavam difíceis, então talvez ela de fato já tenha ouvido isso várias vezes no passado. Confirmo com a cabeça.

—Quando se é um caçador, aguentar firme e seguir em frente é tudo o que você pode fazer. Bem-vinda ao negócio de família, Hazel Laverne. É um péssimo estilo de vida e talvez a gente acabe morto, mas no caminho, você vai dar um sorriso ou dois.

—Vou aguentar firme. Tenho feito isso desde sempre, de certa forma. 

—É assim que se fala, Laverne.

Nos resta seguir em frente. A estrada só está começando.


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Notas finais do capítulo

A história começou a andaaaar.
Odiaram? Gostaram? Não me deixem no escuro, Hunters. Comentem!
Carry on, XOXO



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