O Homem que Perdeu a Alma escrita por Willow Oak Acanthus


Capítulo 4
Bônus - O Prometeu moderno.


Notas iniciais do capítulo

Heeey, como estamos ein?
Por aqui, meio aos surtos. Olha só, eu não tinha em mente um capítulo bônus do Sam, mas quem manda em mim são meus personagens, e eu obedeço.

Esse capítulo mostra como está a alma de Sam (No inferno) e como está o corpo de Sam (Na terra, sob o poder e o controle de Crowley)

Esse capítulo também explica como o "Sam sem alma" vai funcionar na minha fic, porque é bem diferente da série. Vocês já leram "Frankenstein ou o prometeu moderno"? Aqui, eu me inspirei muito na relação Criador e Criatura. Tenham isso em mente quando forem ler.
Na obra, a criatura quer a aprovação de seu criador, que está horrorizado com sua criação. Aqui, o Crowley não está nada horrorizado, ele está é ótimo kk. Mas o "Corpo do Sam" tem essa linha de pensamento, já que não tem alma. Enfim, vocês vão entender.

ALERTA: Essa fic é, assim como Supernatural em geral, repleta de mitologia cristã, então eu escrevo coisas que podem vir, ou não, a ofender alguém que for muito religioso cristão e tal ( Embora eu ache que, se você é fã de SPN, sabe separar as coisas) Maaas enfim, quis explicar. Eu sou neo pagã, e sei lidar muito bem com histórias que mexem com os deuses, por exemplo. Sei separar que aquilo é sagrado para mim, e não para os outros, portanto são histórias e nada mais. Se você não tem isso muito estabelecido na cabeça e pode vir a se doer...já deixei avisado.

O cancelamento vem, gente kkkk
Brincadeirinha.

Boa leitura!
AAAAAH!
Ouve essa música, sua imersão vai ser maior:

— Dirty elegance - Washing away the dirty.



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Inferno - Ponto de vista de Sam Winchester, a alma - 2004.

Azazel está de pé ao lado de um berço. Com sua própria unha, ele faz um corte em seu pulso. Gotas carmesim caem direto na boca do bebê indefeso e destinado ao inferno.

Eu. Sou eu.

Dou um passo à frente, e fico lado a lado com o demônio de olhos amarelos. Observo seu olhar, mas sou um mero espectador. Ele não me vê aqui. Mary Winchester entra no cômodo, e seu grito preenche o ambiente. Ela o reconhece.

Ela sabia.

Tento desviar o olhar para o que vem a seguir, mas não consigo. O fogo brilha intenso demais, quente demais para que eu não assista a tragédia. Minha mãe é arrastada para o teto, com seus ossos quebrados e seus olhos clamando por socorro. O reflexo da sua íris é o bebê, que chora sem saber que sua vida havia mudado para sempre.

Essa é a milésima vez que revejo essa cena. No inferno o tempo passa de maneiras que ainda não compreendi. No inferno, sou um turista de mim mesmo. Viro o rosto, exausto de presenciar as memórias corroídas por dor.

—Você se tornou um fardo naquele momento...- Lúcifer sorri para mim, puxando meu rosto, forçando-me a ver a cena que se desenrola com atenção total. Meus olhos seguem um Dean Winchester de quatro anos, que corre com o bebê no colo. John Winchester grita para que ele escape do incêndio - Dean nunca foi criança por sua culpa. Seu pai foi amargo por sua culpa. Sua mãe morreu por sua culpa.

—Eu não pedi para nascer. - Minha voz sai amarga e meu rosto se contorce em raiva. Lúcifer dá uma gargalhada longa, enquanto a cena se reinicia.

Eu paro de contar o número de vezes que ele me força a rever esse momento. Mas com o passar do tempo, do tempo ao qual não tenho mais noção alguma ou tato algum, entre a insanidade e a eternidade, Lúcifer decide mudar de lembrança.

Tento fechar os olhos com força, temendo que tipo de pesadelo vou rever agora que pareci tê-lo entediado, mas ele me dá um tapa estalado no rosto. Quando reabro os olhos, ensandecido em ira, me deparo com uma das piores noites de toda a minha vida.

Vejo um garoto de dezoito anos, magro e alto, com os cabelos lisos repartidos em um corte dos anos 90 lhe caindo nos olhos. Sou eu, novamente. O assisto arrombando a porta dos vizinhos da frente, desesperado. Vejo suas lágrimas e o ouço gritar:

Hazel! Hazel eu estou indo! — Vejo ele lutando em vão, contra o tempo. Será que eu sabia que aquela noite definiria todas as outras? Observo quando ele quebra o vidro da porta com um murro, seu sangue escorrendo violentamente enquanto ele destranca a maçaneta por dentro.

A coisa estranha sobre se assistir em terceira pessoa, em uma experiência extracorpórea, é que você percebe quantas versões de si mesmo você já foi e as que não é mais. Você vira um fantasma de si mesmo.

A fumaça ainda consegue me fazer tremer, o fogo sufocante o faz tossir. Lúcifer assiste a tudo isso com um sorriso mórbido no rosto, esperando pela minha reação. As chamas consomem a sala de estar lotada de discos de vinil, corrói um piano e as vigas do teto começam a despencar. O garoto sobe as escadas, correndo, sem medo do fogo.

Ele tem medo apenas de perdê-la. Me lembro disso muito bem.

Subo correndo atrás dele. O sigo, enquanto ele luta para pular entre as chamas do corredor estreito. Vejo ele empurrar a porta do último quarto do corredor com toda sua força, enquanto grita para que a garota aguente firme.

"Aguente firme". Quando era vivo, eu acordava com essa frase fervendo em minha mente, como um castigo.

Entro no quarto e vejo o garoto em completo desespero. Há um homem no canto do quarto, que eu identifico ser Azazel. Seus olhos amarelos são inconfundíveis. 

No chão, Amélie Laverne jaz morta com uma faca enfiada em sua carne, bem no centro do seu tórax. Vejo Harvey Talbot com os olhos pretos, e então vejo uma fumaça negra escapando pela sua garganta, direto para o chão. O corpo do homem se estatela, sem vida.

Minha garganta se aperta quando finalmente pouso os olhos nela.

Hazel está em um canto, encolhida e horrorizada pelo o que acaba de presenciar.

"Ele a matou na frente dela?!" Lembro de ter sido meu primeiro pensamento, na época. Quando vê o garoto, corre para abraçá-lo, os braços finos ao redor dos ombros dele, trêmula e sem forças.

O menino olha para o demônio, que o encara de volta. Há fúria borbulhando no olhar do ser sobrenatural, mas o garoto sabe que precisa ter um olhar mais afiado ainda. Precisa tirar a garota dali.

Nós vamos sair daqui! — Ele grita para ela, apertando seu corpo junto do dela. As chamas que antes estavam apenas na cortina e em um rastro no chão, aumentam a intensidade e crepitam como um réquiem.

Ele a segura no colo, apertando-a em seus braços. Ambos estão tossindo muito pela fumaça densa que preenche o ambiente, e eu saio do caminho para que ele passe pela porta o mais rápido possível. Não percebi que lágrimas me escorrem no rosto, só noto quando elas começam a cair e a molhar meu corpo.

Sigo o garoto, dessa vez mais devagar. Tudo parece estar em câmera lenta. As chamas não me queimam, não as sinto. Estar morto, ser o fantasma em um fragmento de lembrança, não lhe dá cicatrizes físicas. Apenas etéreas.

Meio ao desespero, o Sam Winchester de dezoito anos acaba caindo todos os lances de escadas, junto da garota. Ela caiu a alguns metros dele, que meio a sua visão turva, a vê gritando excruciantemente. As chamas estão consumindo o braço esquerdo dela, dançando como bailarinas. Não há mais tempo, ele precisa agir rápido. Ele bateu a cabeça na queda, e está muito fraco, mas continua repetindo para ela:

Aguente firme...aguente firme.

Ele se ergue do chão, e a arrasta para fora da porta a tempo de salvá-la do desabamento. No gramado, o garoto usa sua blusa para apagar o fogo do corpo dela. Quando o que resta das chamas que consumiram o braço da garota é fumaça, ele pode finalmente ver o estrago.

Vejo seus olhos se arregalarem ao ver a pele derretida no local, o sangue borbulhando em feridas grandes, que descem da base do ombro ao braço por completo. Ele perde a sanidade, pois é apenas um garoto.

Ele só tem dezoito anos.

Seu irmão não está em casa, nem seu pai. Ambos estão em uma caçada.

Ele está sozinho com ela.

Hazel! Acorda, por favor...— Sua voz está rouca graças as chamas e ao desespero. Ele se agacha ao lado dela, e bate de leve no rosto da garota que ama para que ela não apague. Para que a luz dos olhos dela não vá embora.

Para que ela não tenha o mesmo destino de Mary Winchester.

Pela janela, o garoto pode ver Azazel sorrindo para ele, como se dissesse o que ele há muito sabia:

"É tudo culpa sua"

—Você sempre foi a desgraça dela, desde o começo. - Lúcifer coloca o braço em meu ombro, me despertando da minha dor momentaneamente - Ela teria tido uma vida normal se não fosse por sua culpa.

—Eu sei. - O gosto em minha boca é amargo.

—Eu amo assistir a esse momento, vê? - O diabo aponta para o garoto gritando em prantos, em cima do corpo da garota, sem saber o que vem a seguir - Conhece aquela música, Sam Winchester? What is a youth...Impetuous fire...What is a maid? Ice and desire....

Ele segue cantando, e a cena se reinicia.

Por milhares de milhares de vezes. Por muito tempo.

Por todo o tempo do mundo.

XXX

Estou deitado em uma superfície branca. As paredes são da mesma cor, assim como o terno que estou vestindo. O barulho incessante de uma gota pingando em minha testa começa a me enlouquecer, mas não consigo me mover. O rosto de Lúcifer se faz presente, e vejo que ele flutua sobre mim, a alguns centímetros de distância, também trajando um terno branco.

A gota continua a cair, e vejo que ela cai da testa dele, como se ela atravessasse um portal da minha testa para a dele, para o que parece ser para sempre. Ele sorri para mim, mas não diz nada. Só sua boca sorri, seus olhos permanecem sem expressão. Ele nunca pisca.

Eu também não consigo piscar.

—Eu sou você. E você sou eu. - Ele diz, e ficamos assim por...

Por quanto tempo?

XXX

—Coma! - O anjo caído diz, quando estamos em uma mesa gigantesca de mármore branco. Em minha frente, um prato de louça fina expõe um coração humano pulsante, envolto em sangue.

Olho para baixo e grito em pavor. O coração está conectado a mim por artérias e meu peito está vazio, aberto. Carne e ossos expostos.

—Coma! - Ele bate na mesa - Boom, boom, boom...— Ele imita o som do coração, sem parar.

—Eu não quero, por favor...- Imploro, em vão. Ele se diverte com as minhas lágrimas. Lúcifer estala os dedos e, involuntariamente, agarro o coração em minhas mãos, como um animal voraz. Dou a primeira mordida e sinto a textura esponjosa e pegajosa em minha língua. O gosto amargo, o cheiro de ferro.

E principalmente, sinto minha própria mordida.

Quero gritar, mas não consigo. Devoro meu coração até não sobrar mais nada.

Sinto ânsia de vômito, e então o diabo estala os dedos.

Há novamente um prato em minha frente. Com um coração humano.

O meu coração. E eu o devoro.

De novo. E de novo.

E para sempre.

XXX

Terra - Ponto de vista de Sam Winchester, o corpo - 2004.

Abro minha boca e sinto a lama saindo por ela, enquanto me engasgo e rastejo para fora do chão do cemitério. Sinto as raízes frias de uma árvore me rasgando a pele, o frio me pincela por completo, e sinto um par de mãos me puxando para fora, meio a torrente.

Morrer é como nascer. E ressuscitar é profano.

XXX

Há uma mesa metálica e fria sob mim e correntes em meus braços e pernas. Estou completamente nu, com exceção de um pano branco que cobre minha genital. O teto abobadado sobre a minha cabeça tem um vitral escuro, com Judas Iscariotes retratado em tons de azul e cinza.

Judas está sorrindo para mim.

Há diversas pessoas reunidas, todas sentadas nas cadeiras enfileiradas, trajando robes negros como a noite, assim como os seus olhos sem íris.

Onde estou? - Minha voz sai seca. Ainda sinto o gosto da terra na ponta da minha língua, e entre os meus dentes - Quem...quem sou eu?

—Você, minha querida criatura, é o que eu chamaria de "O prometeu moderno"! - A voz vem de um cara relativamente baixo, trajando um terno de veludo preto e que caminha em minha direção com um livro em mãos - "Descobri como e porque a vida é gerada. Mais impressionante ainda: tornei-me capaz de dar vida à matéria inanimada – de transformar a morte em vida"— Ele leu o que parecia ser um trecho da página em que ele se encontrava - Eu sou o criador e você, a criatura. Devo dizer que escrevem bem, os humanos...- O homem deu de ombros e então jogou o livro de lado, pousando a mão gélida sobre minha testa - Pode-se dizer que a vida imita a arte. Bem-vindo de volta a vida, garoto. — Seu sotaque é algo como a mistura do escocês com o britânico.

Fecho meus olhos e tento me lembrar de alguma coisa, qualquer coisa.

Mas eu não sou ninguém. Há carne e ossos, e uma mente que consegue pensar e identificar o mundo ao redor, mas além disso...

Vazio.

Quem é você? Quem são eles? - Tento me soltar, me sinto vulnerável. O homem de olhos impassíveis sorri.

—Eles são devotos da nossa causa, convidados na nossa festinha. Vê essa bela igreja, esse altar? Esse é o templo de Judas Iscariotes. Eles ergueram as estruturas dessa catedral com as próprias mãos, para a sua chegada. - Tento percorrer os olhos pelo ambiente, tentando captar o máximo de detalhes que puder. As paredes são escuras, adornadas por mármore negro, e o teto abobadado é muito alto. O chão é de linóleo branco e os bancos são de mogno. Diversos símbolos estão espalhados, assim como pinturas de Judas, por toda parte - Você era um humano, antes da sua morte. Mas então eu o trouxe de volta a vida. E agora você me pertence para sempre, isso não é ótimo? Cadê meu Whisky!? - Ele grita impaciente e um homem corre até ele, entregando-lhe um copo com um líquido âmbar dentro.

Engulo em seco. Meu coração bate com força em meu tórax.

Todos aqueles olhos negros me olhando e sorrindo, quase sem expressão, me deixam nervoso.

—Eu tenho um nome? - O homem faz que não. Fico confuso imediatamente.

—Não é possível nomear uma criatura como você! Não há alma em seu corpo, portanto, não pode ser nomeado. Você é profano. - Ele ergue as mãos no ar, enquanto beberica o Whisky.

Todos os pelos do meu corpo se arrepiam. Estou com tanto frio...

Estou tão vazio.

—Você tem nome? – Questiono. Ele sorri de orelha a orelha.

—Meu nome é Crowley, garoto. E eu sou o futuro rei do inferno. E você, meu caro, é minha arma mais poderosa... - Crowley solta as correntes que apertavam meus pulsos, o suficiente para marcá-los. Me levanto com dificuldade, e começo a tossir, enquanto tampo a boca com as mãos.

Sangue, saliva e terra deixam um rastro úmido em minha palma.

—Como posso ser uma arma? Que uso eu tenho? - Crowley se coloca a minha frente, as mãos nos bolsos, o olhar afiado me fitando - Não tenho memória. Me sinto...oco.

—Você verá sua utilidade, mas antes, há uma cerimônia importante que iremos realizar! - Ele estala os dedos e dois homens da plateia vem em minha direção. Quando chegam perto o suficiente, percebo que são de demônios - Ergam-no, mas cuidado! Amarrem o tecido na cintura dele. Não há necessidade de expor o que não deve ser visto em um momento tão solene!

Só há uma coisa clara em minha mente; Ele é meu criador e eu, uma criatura vazia. Portanto, quando os demônios fazem exatamente o que lhes foi ordenado, não reluto, sequer me movo. Quando sou erguido com o pano branco amarrado em minha cintura, os dois lacaios me arrastam até o que parece ser uma cruz, enorme e entalhada em carvalho.

Com uma força sobrenatural, amarras se materializam me prendendo à cruz, os braços abertos ao lado do meu tronco, os pés juntos, a cabeça erguida. Não sou uma pessoa, tenho certeza disso.

Não sou nada.

—Você é nosso salvador, portanto, precisa derramar sangue em nosso nome! - O demônio, chamado Crowley, retira um objeto de dentro de um pano carmesim.

Uma coroa de espinhos prateada é revelada. Com seus poderes, o objeto flutua no ar até pousar em minha cabeça. O metal frio crava os espinhos na superfície da minha pele, me fazendo gritar de dor.

—O sangue do salvador! - Crowley grita para os devotos presentes, ainda bebericando seu destilado - Seu compromisso é com o inferno, criatura profana! Sua carne e seu sangue para sempre serão símbolo de devoção! E com esse ritual, proclamo que você me servirá sem questionar! Você ficará ligado a mim!

Deixo a cabeça pender para frente. Me sinto fraco demais. Os dois lacaios que me penduraram aqui, se colocam lado a lado, um a minha direita e o outro a minha esquerda.

—"Por nós, o salvador renasceu; profanando o solo sagrado. Seu sangue pecaminoso e sua carne sem alma nos ofereceu a união!" - Quem proclamou isso foi uma mulher de olhos castanhos que veio andando pelo meio da igreja, sob o tapete branco estirado no meio dos assentos. Ela tinha em mãos o que parecia um livro sagrado, enorme e com o que parecia ser couro humano revestindo as páginas. Os cabelos castanhos estavam soltos e ela usava uma jaqueta de couro preta - Ah...eu amo o livro dos condenados. Preguem-no, rapazes.

Mais rápido que um suspiro, os lacaios ergueram de suas mãos pregos enormes e grossos. Com marretas em cabos dourados, eles desferiram os golpes; Cada um em uma de minhas mãos. Gritei o mais alto que pude quando senti os pregos penetrando a palma das minhas mãos, tão fundo que atravessaram a madeira da cruz.

Olhei para o meu criador, e vi satisfação em seus olhos. Então eu sorri.

Porque eu era seu servo, sua criação. Todos pareciam felizes, e meio ao meu sorriso, outro prego foi fincado em mim, dessa vez sobre meus pés. O sorriso me abandonou e meus gritos voltaram a assombrar a catedral.

Tão altos que ecoavam e chicoteavam o ar.

Enquanto meu sangue era derramado em cataratas no chão frio, uma fila se formou, e de dois em dois, os demônios vieram tocar no líquido vermelho que pingava do meu corpo. Com a visão turva os vi relando os próprios polegares ensanguentados em suas testas, como em um batismo.

Sim...um batismo. Agora, vendo com mais clareza, pude ver a horda em minha frente. Eram dezenas de demônios que se aglomeravam e se batizavam com o meu sangue, e embora estivesse fraco, sabia que algo me mantinha vivo. Como um feitiço ou algo do gênero: Não importava quanto sangue jorrasse de mim. Eu não beijaria a morte.

E, mais importante do que tudo, eu me sentia devoto a Crowley, leal a ele. Cegamente.

Por último, a mulher que havia recitado o trecho do livro sagrado veio até mim, um sorriso amargo no rosto. Ela se segurou nas hastes de madeira que formavam a cruz, e se ergueu até ficar cara a cara comigo. Sua respiração se mesclou a minha, e seu corpo lascivo estava grudado ao meu.

—Na sua vida como humano, nós fomos próximos...- Sua mão pequena e fria percorreu meu abdômen, com o indicador me arranhando levemente - Você bebeu do meu sangue, seguiu minha mentoria e nós fudemos com tudo, em todos sentidos da palavra. - Seus olhos castanhos e sua expressão vazia não me diziam muito. Eu não tinha nenhuma lembrança da minha vida como humano...como alguém com alma. Ela notou que eu não a reconheci, e grudou os lábios nos meus, com certa agressividade.

—Ruby, Ruby...guarde seus desejos para mais tarde, sua cadela no cio! - Crowley disse, e ela revirou os olhos.

—Eu não devia sentir tanto tesão nesse pedaço de carne vazio, especialmente depois dele ter ajudado a me matar! - Ela puxou meu cabelo pela nuca, com força. Gemi de dor e fechei os olhos - Mas por algum motivo deturpado, isso o deixa ainda mais atraente. Bom, isso e o fato de ele estar pendurado em uma cruz como um Messias.

—Você nunca vai deixar de falar da sua morte patética? Eu a busquei no vazio, sua grandessíssima chorona! - A demônio, cujo nome aparentemente era Ruby, desceu da cruz, deixando o meu corpo frio. Ela caminha até Crowley e sorri:

—E é por isso mesmo que minha lealdade foi transferida a você, vossa majestade. - A mulher faz uma mesura rápida em direção ao nosso lorde - E ajudarei no que for preciso.

—Comece tirando o rapaz da cruz. Ele precisa se recuperar, o corpo fica ainda mais pesado quando se retorna dos mortos...o leve para o salão. Limpe-o, e dê a ele seu sangue. O ritual está feito, ele fará tudo o que deve sem questionar.

—Sim, Milorde. — Em um estalo de seus dedos, caí no chão, me estatelando de maneira frágil. Os demais demônios, todos com as testas batizadas com o meu sangue, já haviam ido embora. Meio a dor e a confusão mental não os vi deixando a igreja.

Quando Ruby me arrastou dali de maneira agressiva, olhei profundamente para o vitral do teto, para o sorriso de Judas.

XXX

—Quem é você? - Ruby me questiona, estou em pé, vestido de preto dos pés à cabeça, após dias consumindo seu sangue e recebendo treinamento mental e físico.

—Sou uma arma, um servo. — Digo, os olhos estáticos. Sinto sede, tanta sede...

Preciso de seu sangue. Seu sangue é doce e me faz sentir um formigamento por dentro das veias. E me dá poderes inigualáveis. 

—Controle sua sede. - Ela me alerta. Vejo em seus olhos que ela sabe muito bem o que se passou por minha mente. Faço que sim com a cabeça, os braços para trás das costas como um soldado - Você deve beber meu sangue para um único fim, ficar forte e exorcizar os demônios traidores e opositores.

—E claro, para enfrentar qualquer tipo de ser sobrenatural que entre em seu caminho. - Crowley estava sentado em uma cadeira a alguns metros de nós, a ponta de seu dedo passando levemente por uma faca e a outra mão acariciando um cão infernal.

—Por falar nisso, vamos ver como está sua força? - Ruby deu um sorriso mal-intencionado e foi até Crowley. Ele entregou a ela a faca com o cabo de madeira, e então ela a depositou em uma mesinha a minha frente. A porta do salão se abriu e dois demônios entraram por ali, arrastando um terceiro.

—Ah! Béliseu! Aí está meu traidor favorito! - Crowley disse. Reconheci o demônio assim que o vi, ele era um dos lacaios de Crowley a até poucos dias atrás.

—Eu não tive escolha, Milorde! - Béliseu gritava e se esperneava em vão - Ele é muito poderoso...Ele...

—Basta! - Crowley gritou, calando o traidor, que foi jogado no chão, impiedosamente. Ruby foi até ele, suas botas pretas estalando no chão, e o fez ficar de pé a alguns metros de mim.

—Use sua mente, canalize sua telecinese. Faça com que a faca voe e atravesse o peito desse traidor. - Ruby o segurava, e Crowley acendeu um charuto enquanto assistia meu desempenho com os olhos semicerrados.

Jamais o desapontaria. Fecho meus olhos para me concentrar.

Deixo a mente branca, como Crowley me ensinou. Sem pensamentos além de apenas "Cumpra a ordem". Sinto meu nariz sangrar e sinto o corpo inteiro arder enquanto ergo minha mão trêmula no ar. Abro os olhos quando ouço os gritos implorando por misericórdia, mas dou um sorriso curto e torto:

—Traição é paga com morte. — Digo. Ruby sorri para mim quando consigo fazer a faca de matar demônios atravessar o peito de Béliseu, que grita enquanto os olhos e a boca brilham com um tom âmbar que lembra o fogo do inferno.

XXX

Matar humanos é mais fácil e mais divertido. Caçadores são inimigos e se metem nos planos de Crowley, então tento matar o máximo deles que consigo. Meu criador me contou um dia desses que, em vida, fui um desses emprestáveis. Ele não me deu detalhes, ou um nome, mas foi o suficiente para me sentir enojado.

Vejo a luz patética da vida indo embora de cada um deles. Sei que se eu morresse, nenhuma luz me deixaria.

Não tenho nada aqui dentro.

E então, quando Kubrick estava morto aos meus pés diante daquele cemitério, aquele caçador me confrontou.

Ele tinha muita luz nos olhos, meio ao desespero. Nunca havia visto um humano tão quebrado como aquele.

Fiquei irado quando ele me deu um nome.

"Sam Winchester"

O nome parecia sujo, marcado. E eu era puro, uma máquina perfeita, posse do meu mestre.

Quando um anjo desprezível salvou a vida do homem, tive de vir descobrir quem ele era de fato. Ele parecia me conhecer.

Bom, conhecer este corpo.

XXX

—Na sua última vida como humano com alma, ele era seu irmão. Dean Winchester...- O nome parecia amargo na boca de Crowley. Ruby ouvia a tudo com atenção, sentada no canto do salão, enquanto eu servia ao lorde um copo de Whisky - Ele é um dos nossos maiores inimigos. Mas não o maior.

—E quem é? Quem é nosso maior inimigo? O anjo? - Questionei. Ele fez que não e ergueu a mão, sugerindo que eu poderia me sentar. O fiz, e acariciei o cão infernal que estava ao meu lado enquanto ouvia a tudo atentamente.

—O nome do nosso maior inimigo é Astaroth. Ele acha que pode tomar o trono. - Franzi a testa. Não havia alguém mais poderoso que meu criador...havia? - E a marionete dele, a arma dele... é uma garota.

—Uma caçadora? - Questionei, pensativo. Crowley fez que não. Ele e Ruby se olharam atentamente.

—Uma garota que não faz a mínima ideia de quem é. Ou do que é capaz. - Crowley assumiu o olhar pensativo, quase taciturno - Ela pode e vai ser usada por Astaroth para tentar roubar o trono de mim, entende?

Não entendia, na verdade. Eu o via como meu grande criador, como um ser invencível. Como poderia ter medo de uma garotinha assustada e um demônio qualquer? Mas não devia ter dúvidas.... Ruby me alertou sobre dúvidas...

"Questionamentos sobre o seu passado ou sobre o que Crowley te pedir te desviarão do caminho"

—Sim, Crowley. Devo eliminar a garota? - A preocupação de Crowley foi se transformando em um sorriso.

—Sim, mas na hora certa. Você deve atraí-la, capturá-la. Deve trazê-la para...

—Para mim. Terei alguns momentinhos com ela...E aí então, para Crowley. - Ruby sorria, e Crowley começou a rir.

—Eu amo como sua mente funciona, Ruby. Mas não mate a garota no meio da sua diversão...- Crowley se levanta e aponta a faca no estômago de Ruby, que prende a respiração - Ou eu te jogo de volta no vazio, capiche?

—Sim, Crowley. - Ela contorce o rosto, incomodada com a visível ameaça passivo agressiva. Ruby sai andando a passos duros, nos deixando sozinhos.

Devo me concentrar em achar a garota. Abro um frasco pequeno, com o sangue de Ruby dentro. Dou um gole generoso e quando o sangue escorre pelo meu queixo, questiono:

—Qual o nome da garota? – Questiono. Crowley sorri para mim e sussurra no meu ouvido.

—Hazel Laverne...- Ele diz o nome como um sibilo. Sorrio e vejo no reflexo do mármore que meu sorriso tem sangue nos dentes, nos lábios.

Ficamos, criador e criação, em silêncio.


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Notas finais do capítulo

Foi hiper difícil escrever esse capítulo, porque me deixa explicar uma coisinha para vocês:
EU. AMO. O. SAM. WINCHESTER. DE. TODO. MEU. CORAÇÃOZINHO. FRÁGIL.

Ver ele sofrendo é difícil, maaaas a minha história é macabra e triste e esse é o enredo. Enfim! Espero que tenha ficado bom, particularmente, tenho MUITO medo do que vocês vão achar.



OBS: Um trecho do livro da Mary Sheley é usado, e está em itálico. E há um trecho da música "What is a youth" de Nino Rota, também.

Comenta, tá? Comentário é o maior pagamento da fanfiqueira.
Abraços!
XOXO



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