O Homem que Perdeu a Alma escrita por Willow Oak Acanthus


Capítulo 28
Capítulo XXVI - Wendigo.


Notas iniciais do capítulo

“Inventamos horrores fictícios para nos ajudarem a suportar os reais.” (KING,
2011).
Gente, achei essa frase maravilhosa e a encontrei (pasmem) em um TCC que achei na internet sobre a criatura Wendigo, sua mitologia e a adaptação de sua lenda em diversas formas como em livros, séries, filmes... na cultura em geral. Eu li o TCC? Li. Por que? Porque sou maluca.
Brincadeiras a parte, o Wendigo sempre foi minha criatura folclórica preferida que apareceu em SPN, simplesmente por achar a ideia e o lore originais e poucos explorados se comparado a vampiros e lobsomens, por exemplo.

A metáfora que essa criatura carrega, também me atrai. O medo do frio, do inverno, que algumas civilizações enfrentaram ao longo da humanidade. Os mitos sobre homens canibais que sucumbiram ao pecado da carne pela sobrevivência, etc e etc, poderia falar sobre os simbolismos o dia inteiro e cansaria cada um de vocês. Mas, o que quero falar mesmo, é que sempre que vou escrever sobre algo, eu gosto de estudar sobre.

Para essa fic, dissequei até textos bíblicos. E agora, como podem ver, meu amor por essa história me fez ler um TCC. Ai ai.
Me empenhei, tomara que gostem!
Boa leitura ♥



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Ponto de vista de Sam Winchester.

Estamos todos em uma mesa no café do motel, o silêncio constrangedor sendo tão alto que chega a chiar. Tamborilo os dedos na mesa tentando extrair uma tensão crescente que está percorrendo todo o meu corpo, sem sucesso. Acabamos de atualizar a Noah Andrews sobre as novas informações que conseguimos ontem, durante nossa investigação.

Está difícil manter o foco. Não dormi nada na noite passada.

—Então... – Noah começa, após pigarrear. Seus dedos envolvem uma caneca de café fumegante e seus olhos estão percorrendo o mapa que está aberto na mesa, as áreas onde os corpos foram encontrados circulados em vermelho – Vocês não têm mais tanta certeza sobre o tipo de criatura, é isso?

—É, é exatamente isso. – Dean diz, dando um longo suspiro. Os olhos do meu irmão mais velho percorrem o mapa como se pudesse ver algo que não tenha visto antes. Ele sempre faz isso, é coisa de caçador... olhar para as coisas por diversas óticas, sedento por resoluções. Eu faço a mesma coisa, afinal... tudo o que sei, aprendi com ele— Mas seja o que for, daremos conta. Viemos te informar que partiremos hoje em busca da sua irmã, Andrews.

Noah assente com os olhos aflitos, envoltos por olheiras.

—Eu realmente acho que eu poderia ajudar, indo com vocês. Não sou nenhum...caçador, é claro... – Ele dá de ombros, exausto e sem esperanças – Mas ela é minha irmã, e talvez isso possa servir de alguma coisa.

—É perigoso demais, Noah. – Hazel diz, após terminar de tomar um gole generoso de chá enquanto eu percorro meus olhos por ela de maneira discreta e vejo que parece estar exausta. Estou preocupado com ela, por tudo o que está por vir – Além do mais... podemos precisar de você aqui, afinal... se algo acontecer, seria bom ter alguém que saberia onde nos encontrar.

Todos nos entreolhamos, em expectativa. Noah parece convencido, porém contrariado.

—O que precisarem, basta uma ligação, certo? – Noah olha nos olhos de Hazel e então nos meus, com uma gratidão explícita em sua íris marrom – Não hesitem em me pedirem, seja o que for. Eu não vou esquecer o que estão fazendo pela minha irmã.

Sua voz embarga e ele olha para baixo, suspirando com dificuldade. Hazel coloca a mão no ombro dele, de maneira terna.

Ela não diz nada a ele, pois sabe que não pode fazer promessas. Sinto meu peito se apertando, porque eu sei muito bem como é sentir que alguém que você ama muito está correndo perigo de vida. É tão sufocante quanto se afogar.

E Noah Andrews está se afogando, disso tenho certeza.

XXX

Termino de limpar minha arma de preferência para esses casos onde não temos certeza do que iremos enfrentar, uma AK-47 que pertenceu a Bobby antes de mim. Aprendi a atirar com ela, e a levo em caçadas como um amuleto. A coloco dentro da mochila cargueira, e reviso tudo o que está dentro dela só por precaução, já que iremos acampar no meio das montanhas, com a neve alta e com um monstro a solta que pode ou não ser um Wendigo.

Acabo esbarrando os dedos em um cantil de metal, e me estremeço por completo ao fazer isso, engolindo em seco e sentindo uma queimação torturante em minha garganta. Eu usava esse cantil para armazenar sangue de demônio, quando estava me preparando para dizer “sim” a Lúcifer.

Respiro fundo e fecho a mochila, sentindo uma dificuldade crescente dentro de mim. Quão mais perturbado posso ficar? Abstinência de sangue de demônio, meu coração partido, perturbado por visões e lembranças pesadas demais para suportar...

Estou me perdendo meio a tudo isso, sem poder me agarrar a ninguém. A solidão é esmagadora.

Vou até o banheiro, e jogo um pouco de água no meu rosto. Analiso meu reflexo, procurando em meus olhos se minha loucura está aparente. É, está. As olheiras não mentem, o olhar paranoico não nega.

Visto um casaco marrom canelado que sempre me ajudou nos piores invernos e vou ao hall encontrar a todos.

XXX

Assim que chego, dou de cara com Dean. Ele está usando a jaqueta de John, e sua expressão constrangida ao me ver fica visível no momento em que caminho até ele. Dean endireita a postura e pigarreia, e eu respiro fundo.

Sinto tanta falta dele. Queria ignorar o quão magoado estou, mas não consigo. Simplesmente não consigo.

Hazel e Jesse descem pela escada, e posso ver mesmo de longe o quão nervosa ela está. Sei disso porque seu olhar está distante e a conheço o suficiente para saber que está revisando todas as informações em sua mente, obsessivamente. Está usando um cardigã vinho, calças escuras e coturnos marrons. Os cabelos estão soltos, e seus olhos amendoados estão emoldurados por uma vermelhidão que denuncia que ela também não dormiu bem. Jesse, como sempre, está vestindo um sobretudo preto e seus cabelos pretos estão revoltos, a sua cicatriz característica que percorre seu rosto está mais aparente por culpa do frio.

Todas as cicatrizes se sobressaem no frio. Sei disso porque meu corpo é coberto de ferimentos.

Aperto os novos cortes que fiz em meus braços, sentindo a ardência me acalmar. Não posso correr o risco de ver Lúcifer nas montanhas, então...

Fiz cortes mais profundos dessa vez. Isso deve bastar, deve mantê-lo longe.

—Não vamos no impala, o acesso para as montanhas permite carros até um certo limite, mas onde estamos querendo nos embrenhar não há sequer estradas, e a baby não aguentaria esse tipo de coisa... – Dean diz, aflito por se separar do carro – Vai ser exaustivo, pessoal.

—Bom...caçadas são exaustivas, não é? – Hazel diz, dando um meio sorriso tentando aliviar a tensão. A olho, e ela me encara de volta. Meu coração dispara, sentindo coisas demais.

Nunca, em nenhum dos meus piores pesadelos, imaginei o amor da minha vida indo em uma caçada, lidando com o sobrenatural. Correndo riscos.

Não importa quanto tempo passe, nunca irei me acostumar com o fato de que o meu mundo também é o mundo dela. Não consigo, porque se fizer isso...terei de aceitar o fato de que nunca poderei protegê-la.

Morrerei tentando, no entanto. Até meu último suspiro.

XXX

Ponto de vista de Hazel Laverne.

Estamos caminhando a mais de três horas, e já ultrapassamos discretamente a base dos guarda florestais, que era a nossa maior preocupação inicial. A neve está alta, as árvores se agitam contra o vento e os caminhos pavimentados que entrecortam a montanha estão escorregadios demais, portanto, nos embrenhamos na floresta. Um riacho perto de nós tem uma correnteza rápida, fazendo um barulho constante e alto que reverbera por toda a floresta. De certa forma isso me acalma, porque ninguém está interagindo.

É bom ouvir o som de algo, já que o silêncio me deixa nervosa. Passamos por cima de troncos quebrados e ocos, e eu sorrio ao ver um veado ao longe, nos encarando com seus olhos negros e enormes. Paro para tomar fôlego e bebo um pouco de água, observando o animal majestoso não tão longe de mim.

A beleza da floresta ao nosso redor é inegável... é difícil aceitar o fato de que é o lar de algo tão maligno.

XXX

—Você acha que o Wendigo ou... seja lá que criatura estamos caçando, vai ser suficiente? Como gatilho? – Questiono a Jesse, sentada em um tronco enquanto esquento as mãos em uma fogueira que improvisamos. Levantamos acampamento em uma pequena clareira que encontramos após tantas horas de caminhada. Jess suspira e protege o fogo do seu isqueiro do vento com a mão, enquanto acende seu cigarro. Ele dá um trago, e seu olhar se torna distante.

—Acho que será sim. Você já despertou seus poderes Lavie, quando enfrentou Beleth. De agora em diante, tenho certeza de que os acessará mais rápido, e isso vai se tornar cada vez mais fácil, até que não precise mais de gatilho nenhum. – Ele apoia a mão em meu ombro, gentilmente – Vai ter o controle da situação em breve, tenho certeza disso.

Suspiro, pensativa. O vapor da minha respiração quente em contato com o ar gelado sobe no ar até que se dissipa. Controle. É tudo sobre controle agora.

—Quem vai ser responsável pelo primeiro turno? – Dean pergunta, se sentando de frente para nós, também aquecendo as mãos no fogo, os olhos verdes refletindo as chamas com seu olhar pensativo.

—Posso ser o primeiro. – Sam caminha para perto de nós. Ele se senta ao lado do irmão, e esfrega uma mão na outra, na tentativa de se aquecer. Evitei olhar para ele o dia inteiro, simplesmente porque é mais fácil dessa forma, mas mesmo com toda a força que fiz para manter meus olhos longe dele, fiquei o dia inteiro aflita e preocupada com ele.

Sei que está no limite da sua abstinência, e sei o que isso faz com uma pessoa. Meu coração se aperta ao ver seus olhos devastados e exaustos encarando o fogo, como se ansiasse por sentir seu calor, mas não fosse capaz disso.

—Eu pego o próximo. – Digo, quase que no mesmo momento. Os olhos de Sam encontram os meus, e sinto meu peito se contrair por isso, mas decido sustentar seu olhar.

Moraria nesse olhar se pudesse.

—Eu vou depois de você, Laverne. – Dean diz, me disferindo um sorriso fraco. Aceno com a cabeça, e Jesse termina seu cigarro, queimando a guimba na neve.

—Eu vou por último então. Eu vou me deitar, pessoal...- Jesse bate nas minhas costas e se levanta, deixando a mim e aos irmãos Winchester, sozinhos.

Ficamos em silêncio por um momento, e eu decido quebrá-lo com um assunto que seja zona livre para todos.

—Estou preocupada com Castiel. – Digo, me encolhendo graças ao frio. Sinto a ponta do nariz queimando pelo vento.

—Também estou. – A voz de Dean é pesarosa, o olhar se transformando em aflito assim que menciono o nome do anjo – Não faço ideia de onde pode estar metido a essa altura.

—Todas as vezes que Cas desaparece, é por algo grande. – Sam se pronuncia, enquanto mexe no fogo com um galho que ele encontrou perto de si, para atiçar mais o fogo – E, na metade das vezes... isso não é bom sinal.

—Não há absolutamente nada que possamos fazer para encontrá-lo? – Questiono, aflita – Ou ajudá-lo? – Encaro os dois irmãos, ambos com desesperança explícita no olhar.

—Somos apenas humanos, no fim do dia. – Dean constata, tristemente – Mesmo com esses... poderes de vocês e tudo mais. Somos meros humanos, e o que nos resta é esperar.

Assinto, pensativa. Castiel, onde quer que você esteja...espero que esteja bem.

Um lobo uiva ao fundo, o som é alto e gutural. Ergo os olhos para a lua, e percebo que está cheia e brilhante, macabra e bela como sempre.

—Vou tentar dormir, então. – Digo, me levantando no mesmo instante, meus olhos fixos em uma coruja logo acima da minha cabeça, me olhando com seus olhos amarelos enquanto está me espreitando, empoleirada em um galho torto e escuro. Tudo nessa floresta grita o quão forasteiros somos – Me acorde para o próximo turno, Sam. – Peço, abaixando meu olhar para o dele.

Ele assente, sem dizer mais nada. Apenas inclina sua cabeça e tira os olhos de mim, tornando a encarar as chamas.

Como se elas ardessem menos do que eu.

XXX

A cada galho que se quebra ao longe, a cada vez que o vento sussurra violentamente, a cada respiração mais funda de Jesse, me reviro na barraca, sem conseguir dormir muito.

Encaro meu relógio de pulso, e vejo que já são duas da manhã. Me sento na barraca, e solto um grande suspiro. O frio me consome até os ossos, mas não tenho tantos agasalhos quanto precisaria, não tive exatamente tempo para fazer compras antes da minha vida virar de ponta cabeça. Me levanto e saio da barraca, me encolhendo e semicerrando os olhos assim que sinto a lufada de ar cortante que me acomete. Caminho trêmula em direção a Sam, que está apoiado com suas costas em uma árvore, sua arma em mãos, o olhar atento. Me aproximo dele, que me olha de maneira preocupada.

—Você está com muito, muito frio. – Sua voz é rouca e suave, e ele apoia a arma na árvore, vindo em minha direção com seu ar protetor.

—Estou bem. – Minto, o queixo batendo. Ele faz que não com a cabeça, como se deixasse claro que não compra sequer uma palavra que estou dizendo. Sam caminha até a própria barraca e volta em menos de um minuto, com um casaco grande e bege que já o vi usando em algumas ocasiões, em suas mãos.

—Aqui, use esse. – Ele estica o casaco em minha direção, implorando com os olhos para que eu aceite. O faço, relutante, pegando o casaco de sua mão e o vestindo imediatamente, as mãos trêmulas e o corpo desesperado por calor. A neve dança no vento impiedosamente, enquanto o escuro nos engole.

—Obrigada, Sam. – Digo, já sentindo um pouco de alívio por não sentir mais os ventos com tanta violência contra a minha pele – Não tenho muitos casacos.

—Eu tenho vários, pode usar quais quiser. – Ele diz isso voltando a se apoiar na árvore com o fuzil em mãos – Conseguiu dormir um pouquinho? – Ele me questiona, o olhar fixo no meu. Seus cabelos esvoaçam com o vento, assim como os meus.

—O suficiente. – Minto, dando de ombros e me aproximando dele, ficando ao seu lado. Estendo a mão e olho para a arma em suas mãos. Ele fica confuso por um momento, não entendendo o que quero com a mão esticada em sua direção, então decido explicar – Meu turno, Sam. Pode ir descansar.

Ele assume um olhar contrariado, olhando da arma para a minha mão.

—Passar uma arma para você nunca vai ser algo natural para mim. – Ele diz, um vinco em sua testa e uma expressão de desolação. Assinto, e pego a arma de suas mãos eu mesma.

—Facilitarei seu trabalho, então. – Digo isso sorrindo fraco, e ele retribui esse sorriso, com sua covinha ficando evidente no mesmo momento. Queria tanto abraçá-lo... tanto— Você não dorme a dois dias, não é? – Pergunto a ele, mais como uma afirmação do que como uma dúvida. Sam respira fundo, e dá de ombros.

—Eu ia perguntar a você como sabe disso, mas acho que a essa altura eu e você já sabemos bem a resposta, né? – Ele diz com sua voz rouca, o olhar fixo no meu – Eu vou conseguir dormir eventualmente, sei que vou... – Sua voz traz uma pontada de esperança, mas essa pontada não se compara a quantidade de incerteza em suas palavras.

—Você me disse uma coisa na noite em que... sua memória voltou. E essa coisa ficou na minha cabeça, sabe? – Digo, os olhos focados em nossos arredores, a arma em mãos e uma postura de alerta por todo o meu corpo. Não posso ser desatenta, um caçador está sempre em estado de alerta— Disse que estava...vendo coisas. Você deixou claro que não queria falar sobre isso, mas...não sei, Sam. Isso vai te devorar vivo.

Ele ouve minhas palavras com atenção, absorvendo-as, como tinta em um pergaminho.

Sam permanece em silêncio, e mais uma vez, tentar convencê-lo a se abrir é como lutar contra a correnteza. É exaustivo.

Não muito longe de nós, ouço um barulho estrondoso, como se algo estivesse se quebrando. O barulho se dissipa, e vejo no céu corujas e morcegos voando freneticamente, como se tivessem sido incomodados por alguma coisa. Sam e eu nos entreolhamos, e em seguida tornamos a olhar para a escuridão que nos circunda e se esgueira por meio dos troncos das árvores. Um arrepio me percorre quando o som de algo sendo arrastado se faz presente, primeiro mais próximo a nós, e depois se dissipando, virando apenas um eco.

Ergo a arma, apontando-a para a frente, e Sam saca uma pistola do cós do seu jeans, segurando-a firmemente no ar.

—Não podemos caçar essa coisa no escuro, Hazel. - Ele sussurra, me olhando de soslaio e depois voltando seu olhar alerta para o escuro - É perigoso demais.

Assinto, abaixando a arma devagar, a respiração pesada em meu peito, o frio ficando mais agressivo a cada momento.

Hazel! – Me sinto quebrando por dentro quando a voz de Dalilah grita o meu nome. Ergo a arma novamente, e meu peito se enche de esperança. Abro a boca para gritar que estou indo, que irei salvá-la, mas Sam larga a própria arma no chão, me agarrando por trás e tapando a minha boca com a mão, me impedindo de gritar.

—Não é a garota, El. - Ele sussurra perto da minha orelha, sua mão quente ainda sobre meus lábios, seu braço livre me abraçando - É o Wendigo. Eles imitam vozes, e se imitou a garota e chamou por você...

—É porque está nos caçando. - A voz de Dean se faz presente, completando a frase do irmão. Sam me solta, e torna a pegar a arma do chão. Jesse vem logo atrás, segurando uma espingarda. Tremo com o fuzil em minhas mãos, com uma certeza assustadora demais.

Estar em uma floresta escura, cercada por um monstro já é aterrorizante o suficiente. É o tipo de coisa que tememos quando somos crianças e ouvimos histórias de ninar e canções antigas. Um medo primal, humano.

Mas estar no escuro cercada por um monstro que sabe que você está ali, é pior ainda.

—Como ele sabe meu nome? - Pergunto, meio a um sussurro. Sam está a minha esquerda, Dean a minha direita e Jess está um pouco a frente de mim, me protegendo.

E mesmo assim, não consigo parar de tremer. Os flocos de neve voando meio ao breu, fazem em me sentir no fundo do oceano, cercada pelo desconhecido. Oprimida pela escuridão.

—Eles sabem de tudo. - Dean responde, os olhos atentos ao nosso redor, a arma empunhada.

—Pensei que estivéssemos longe da rota dos corpos, por isso havíamos escolhido acampar nessa clareira! – Jesse sussurra, olhando para trás com seus olhos de ébano. Com sua palidez e os olhos escuros assim, os cabelos negros esvoaçando junto ao sobretudo negro, Jesse em muito se assemelha a um corvo, uma criatura da noite.

—E foi isso mesmo o que fizemos! – Dean responde, o rosto avermelhado graças ao frio – Talvez o filho da puta tenha mudado a rota.

—Caso ele tenha mesmo mudado de rota, se lembra de como fazer os símbolos? - Sam pergunta para Dean, que se surpreende pelo irmão se dirigir a ele.

—Eu preciso olhar no diário do papai! - Dean responde, aflito. Enquanto isso, eu vasculho em minha mente a que símbolos estão se referindo, até que me recordo.

Robert Singer é, definitivamente, o melhor professor do mundo.

—Os anasazi? Eu aprendi com o Bobby, acho que consigo fazê-los! - Me apresso a dizer, me virando e indo em direção para um pedaço de madeira queimada, perto da nossa fogueira que parece estar quase se apagando. Corro para perto deles com a estaca em mãos, a minha respiração entrecortada enquanto meus olhos vasculham os olhos deles, tão aflitos quanto os meus, meio ao nada que nos circunda – Fiquem dentro do círculo! – Aviso, e eles assentem, chegando mais perto de mim. Começo a desenhar os símbolos no chão, primeiro o que se assemelha ao sol, depois o que se assemelha a uma teia, o triangular... Vou fazendo todos os símbolos na sequência que me recordo, uma gota fria de suor irrompendo da minha testa graças ao medo.

Estou com tanto pavor que quase posso sentir o cheiro dele, me impregnando como um veneno.

Meu coração soca violentamente minha caixa torácica, e um sopro forte demais do vento apaga a fogueira em questão de segundos, nos deixando completamente no escuro.

Não terminei de desenhar os símbolos, o círculo não está fechado, não estamos seguros.

Ouço nossas respirações ofegantes se acentuando, e a luz da lua falha ao penetrar entre os galhos e as folhas secas. Fica quase impossível enxergar sequer um palmo a frente do meu nariz. Tento continuar a desenhar os símbolos, sem sucesso. Primeiro, ouço um grito, seguido do barulho de algo sendo arrastado.

—Dean! – Sam grita, e imediatamente tomo a consciência de que Dean foi levado. Me desespero, e tento agarrar quem quer que seja com as mãos, para não ficar sozinha no escuro.

—Sam?! Jesse?! – Chamo por seus nomes, a razão escapando da minha mente, sorrateiramente, dando lugar apenas ao pavor. Jesse não me responde, mas topo com as minhas costas nas costas de alguém.

—El?! – A voz de Sam me tranquiliza, e ele segura a minha mão imediatamente. Ainda estou com a arma pendurada em uma das mãos, mas me lembro claramente dos ensinamentos de Bobby... armas como essas são inúteis contra Wendigos. Só o que pode matá-los é o fogo. Aperto a mão de Sam, meu peito subindo e descendo com a respiração gelada que me sufoca por dentro dos pulmões, minhas costas nas suas.

—Eles foram levados?! – Minha voz sai entrecortada.

—Foram, e isso explica tudo, tudo! – A voz de Sam sai quebrada, porém coberta de certeza, como se algo fosse óbvio demais em sua mente agora.

—O que?! O que explica tudo?! – Respiro com dificuldade, e sua voz soa como uma sentença ao dizer:

—Não estamos caçando um Wendigo, Hazel... – Corujas e morcegos cantam ao longe, meio ao sussurro do vento. Quase posso ouvir meu coração pulsando, zumbindo em minha cabeça – Estamos caçando vários deles.  

 -O que?! – É mais uma indignação, menos uma pergunta.

Um Wendigo já seria ruim o suficiente. Vários?! Uma sentença de morte.

Sam não me responde, e em questão de segundos sinto seu corpo sendo puxado para a escuridão fria.

—Sam! – Grito, a plenos pulmões. Tento agarrar o ar, tento impedir que seja levado. É tarde demais.

Minhas pernas se estremecem e eu cambaleio caindo no chão gelado, a neve dura e cortante me molhando. Me arrasto pelo chão enquanto tateio o ar a procura de algo, acabo me chocando contra o tronco da árvore, então coloco as costas nela, segurando a arma em minhas mãos que tremem violentamente. Lágrimas de pavor me consomem, e não consigo pensar em nada.

Levaram todos. Estou sozinha, no escuro, no frio...com eles.

Quero gritar, mas seria inútil. Largo a arma ao lado do meu corpo, com a noção de que ela não pode me proteger. Ao fazer isso, tateio a neve e encontro algo pequeno e sólido, quadrado. Sorrio quando percebo que se trata do isqueiro que Jesse deve ter deixado cair ao ter sido levado. Acendo a chama pequena, a segurando em minhas mãos como se fosse uma âncora.

No momento em que o ambiente se clareia minimamente, o momentâneo alivio que eu sinto se dissipa como fumaça e meu coração se gela, se petrifica. O rosto a centímetros do meu faz com que a minha respiração se prenda em meu pulmão, e todo o meu corpo treme em aflição.

A criatura tem no mínimo dois metros, mesmo agachada diante de mim. Seu corpo humanoide e esquelético é envolto em uma couraça cinza, que deve ser a sua pele. Suas costelas são amplas e espaçadas, e meio a elas, vejo um emaranhado de raízes e folhas secas. A pequena chama em minha mão é trêmula graças a minha mão, e não consigo sequer piscar. O mundo parece se silenciar por um momento, como se soubesse.

Como se tivesse o conhecimento de que o monstro encontrou sua presa.

Seu rosto está coberto por um crânio de animal. Um alce talvez? Um servo? Os dentes são enormes e brancos como a neve, alongados como aquelas máscaras assustadoras da peste negra, e no topo desse crânio, irrompem duas galhadas gigantescas que poderiam facilmente me perfurar.

A criatura se aproxima mais, o seu hálito quente e pútrido invadindo a minha respiração de maneira violenta, fazendo-me sentir tontura. A criatura ergue suas garras no ar, tão longas e disformes que se assemelham a galhos. O Wendigo parece me avaliar de maneira sádica e silenciosa, como se estivesse esperando o meu grito para agir.

Mas não consigo emitir som nenhum quando ele assopra o isqueiro, deixando-me novamente no escuro.

Sinto uma dor aguda no topo da minha cabeça, onde sou atingida por ele. Tudo fica turvo, e enquanto sou arrastada pela neve dura e fria, sinto suas garras me prendendo, duras e frias. O mau me leva por entre as árvores, como um prêmio.

O mau me dissolve para o nada. Como em todos os contos antigos da humanidade, o monstro arrasta a garota para o desconhecido.

XXX

Após ser arrastada por tempo demais, sou jogada em uma caverna escura e úmida, cheia de morcegos que gritam e cantam, voando de um lado para o outro. Tento ficar de pé, com dificuldade, estou muito machucada. Meus braços estão arranhados graças ao Wendigo, mas consigo me apoiar na parede apesar disso. Começo a tatear meio a escuridão, buscando por algo. O cheiro desse lugar é... sufocante. Amargo, doce e pútrido, como uma maçã esquecida em um cemitério.

Enquanto tateio pelas paredes rochosas, sinto uma água gelada pingando por entre as pedras, e me contraio. Tropeço em algo, e bato com a cabeça no chão. Faço uma careta de dor, mas não grito, não emito som algum. Semicerro meus olhos, forçando minha vista meio ao breu, buscando qualquer brecha de luz que possa encontrar. Ao longe, vejo um rastro prateado do que deve ser a lua entrando por uma rachadura. Me levanto e tento correr, mas sinto meu tornozelo doendo de maneira enlouquecedora, e tenho a certeza de que o torci. Ignoro a dor que pulsa pelos meus músculos e ossos, e sigo a luz como se fosse o último suspiro de um mergulhador que sabe que vai ficar sem oxigênio. Quão mais perto chego, mais me arrependo.

Meus olhos percorrem o ambiente ao meu redor, e preciso colocar a mão na boca para não gritar até estourar as cordas vocais. Dezenas, talvez...centenas de ossos e restos de cabelo humano me rodeiam, por todo o chão. Esqueletos pendurados nas paredes cavernosas me fazem cambalear para trás, e começo a hiperventilar.

 Estou no ninho dos Wendigos, sem fogo...sozinha. Mesmo que eu desperte meus poderes, não posso conjurar fogo, disso tenho certeza.

Olho por todos os lados em busca de alguma coisa, alguma saída. Espremo os olhos e vejo que, não muito longe de mim, há outra brecha igualzinha a essa que está sobre a minha cabeça, também com um raio lunar iluminando o ambiente por alguns metros. Corro até essa rachadura, gemendo de dor, mas seguindo mesmo assim. Percebo que logo a diante, outra rachadura se encontra.

Há uma sequência? Aparentemente, sim. E padronizada. É inteligente segui-la? Só há um meio de descobrir.

XXX

Paro por um momento, enchendo meus pulmões de ar, me encostando na parede úmida e fria por alguns segundos. Meu tornozelo vai estourar se eu continuar.

Não posso parar, preciso seguir em frente. Limpo a testa suada e suja, e começo a tentar forçar as mãos no ar, como se pudesse chamar pelo meu poder, invocá-lo. Forço minha mente ao limite, me inspirando na dor que estou sentindo, no medo de algo acontecer com eles, ou comigo. Nada.

Inútil. Completamente.

Vejo algo se mexendo ao longe e me contraio, tentando me esconder nas sombras. A coisa disforme que se mexe ao longe parece caminhar até um ponto da caverna, bem ao fundo, antes de desaparecer. Caminho com as mãos encostadas na parede, tateando-as e me guiando por elas, sempre por entre as sombras, como se isso fosse garantia de alguma coisa.

Por entre a cavidade de cipós enormes e antigos que se enroscam por entre as pedras pontiagudas e ossos espalhados como moedas em um baú, vejo um abismo, de onde ouço gritos.

Me agacho com cuidado, me segurando com firmeza no chão, enquanto encaro o abismo abaixo de mim. Cerro os olhos e percebo que há alguém se movendo lá embaixo.

Alguém ou... alguma coisa.

Estou pensando no que fazer quando sinto uma respiração quente em meu ombro. Fecho os olhos e sinto um arrepio na espinha, já ciente de que não é nada de bom. Me viro devagar e reabro os olhos, com uma coragem que parece vir das minhas entranhas, como um último recurso. Meu corpo está em um estado estranho que bambeia entre a aceitação do fim e no modo sobrevivência, simultaneamente. O Wendigo que me encara dessa vez é menor, mas é igual ao anterior no que diz respeito as suas características. O monstro inclina a cabeça levemente para a direita, como se me inspecionasse. Ele ergue suas garras no ar, e eu me cubro achando que irei ser atingida, mas não é isso o que acontece. A criatura apenas usa mão disforme e alongada para retirar de sua cabeça o crânio de animal silvestre, revelando seu verdadeiro rosto. Me estremeço ao ver a face humanoide com olhos negros e grandes demais, com pedaços de pele e couraça faltando, os dentes alongados e podres como um cadáver. As orelhas pontiagudas parecem estar sujas de lodo. O Wendigo abre a boca, e eu imagino um grito gutural saindo de sua garganta, mas é o oposto disso.

Hazel, você veio...— O sussurro sai sem que seus lábios se mexam, como se fosse um ventríloquo talentoso. A voz de Dalilah ressoa da criatura, que sequer pisca suas pupilas enormes – Hazel, você vai cuidar de mim?

Cerro meus olhos, perturbada pela visão em minha frente. A escuridão continua sufocante ao nosso redor, e ficamos, a criatura e eu nos encarando. Após alguns segundos, o monstro ergue os braços sem aviso algum, e me empurra.

Grito enquanto caio em direção ao abismo.

XXX

Despenco em uma pilha de ossos, e me arrasto pelo chão que mais parece um cemitério ou um ninho de cobras. Encosto as costas na parede e gemo de dor. Todo o meu corpo dói, e feridas foram abertas na minha pele durante a queda.

Minha visão está turva, e se limita em uma mistura da escuridão e dos raios lunares distantes, cálidos e insuficientes.

Ouço o barulho de pegadas, de garras sendo arrastadas pelas rochas, fazendo um barulho agoniante reverberar pelo ambiente fundo e esquecido. Arregalo os olhos quando percebo que três Wendigos estão vindo ao meu encontro, lentamente, sedentos com suas presas alongadas e a saliva que escorre de seus lábios azulados. O Wendigo que me empurrou continua me encarando, lá de cima, de maneira macabra, até que resolve pular e se juntar aos outros três monstros, os quatro agora vindo em minha direção. Um ao norte, outro ao sul, o outro ao leste e o último a oeste. Sou uma rosa dos ventos condenada de todos os ângulos.

El! El, me ajude...— O Wendigo ao meu norte imita a voz de Sam, seu rosto imóvel e sem expressão me encarando.

Laverne, você precisa ser rápida!— A imitação de Dean vem do Wendigo ao meu sul. Meu peito sobe e desce, a minha respiração descompassada assim como meu coração. Estou suada dos pés a cabeça, o corpo inteiro colapsando.

Lavie....estamos perdidos!— O Wendigo a oeste imita o meu irmão, e eu quero desaparecer. Quero que isso seja um pesadelo.

Quero acordar, longe daqui... e segura.

Novata, ah, novata...estamos condenados!— Franzo o cenho imediatamente. Este Wendigo ao meu leste está imitando...Jo Harvelle?

Antes que eu possa raciocinar, esse Wendigo que me deixou intrigada me arranha e grita, com a sua verdadeira voz. É tão alta e fria como o próprio inverno. Se os ventos pudessem falar, teriam esse som. Tenho certeza disso em meus ossos.

Grito e cambaleio, segurando o ferimento sangrento com a mão livre. O Wendigo ao sul começa a gritar, e me empurra no chão, me deixando encurralada.

Me estatelo no chão frio e úmido, zonza pela queda. Vejo o Wendigo maior vindo em minha direção, subindo por cima de mim. Respiro com dificuldade quando seu corpo imenso e assustador cobre o meu, seus olhos vazios e macabros vidrados nos meus. Vejo sua língua roxa lambendo seu lábio superior, faminto.

O Wendigo solta um grito agudo, como o de um animal morrendo. Meu sangue começa a ferver.

Tudo é um misto de medo, abandono, solidão e morte. Um borrão do frio, o escuro e o macabro. Começo a tremer como se estivesse prestes a convulsionar, e minha cabeça lateja tanto que me deixa tonta. Sinto minhas veias borbulharem e meus ossos, arderem. Todos os músculos do meu corpo se tencionam quando grito a plenos pulmões, com tanta força que sinto que minha garganta pode estourar a qualquer momento.

Um vento sobrenatural toma conta do abismo, e os Wendigos começam a virar suas cabeças para todas as direções, confusos pelo que está acontecendo.

Ergo a minha mão no ar, trêmula e coberta de uma dor crescente e aguda, tomando conta de todas as minhas partículas.

O Wendigo que estava em cima de mim, pronto para se alimentar da minha carne, geme e grita com sua voz espectral enquanto é arremessado contra a parede, violentamente. Me levanto com dificuldade, minhas veias salientes e inchadas, aparentes em minha pele como se fossem estourar. É o poder correndo por mim, como um veneno pulsante.

Os outros três gritam simultaneamente, quase me deixando surda com o eco de suas vozes guturais. Ergo ambos os braços no ar, quase como se soubesse o que fazer. Quase como se tivesse nascido para isso.

Para estar bem aqui, agora. Nesse mundo, com essas criaturas.

Como parte disso tudo.

Os três Wendigos são estatelados simultaneamente, e eu sinto a dor piorando a medida que uso o poder. A troca equivalente, a punição pelo uso do profano. Jesse não estava brincando quando disse que a telecinese é o poder que mais o esgotava. Agora... sei bem o porquê.

Respiro fundo e com dificuldade, o ar entrando em pequenas quantidades em meus pulmões que ardem sem parar. Ergo as mãos e seguro a minha cabeça, enquanto grito de dor.

Meu crânio parece estar rachando no meio.

Cambaleio, zonza com a imagem de quatro Wendigos fracos e trôpegos, porém longe de estarem mortos ou detidos.

—Hazel?! É você aí embaixo?! – Ergo a cabeça com dificuldade, tampando por um momento os olhos pela claridade emitida de uma lanterna potente. Meus olhos não acreditam no que veem.

Jo Harvelle está me encarando, seus olhos castanhos inconfundíveis e seus cabelos loiros emoldurando seu rosto arisco e belo.

Não estamos sozinhos. Temos uma chance.

XXX

—Suba, agora! – A caçadora grita para mim, jogando uma corda grossa para baixo, chegando até o fim do abismo em que me encontro. Os Wendigos ainda estão se recuperando, então preciso agir rápido. Gemo de dor ao agarrar a corda e começo a subir, sentindo todos os meus ossos e músculos me castigando por estar erguendo meu próprio peso no ar – Rápido! – Ela grita, com a voz quebrando de medo.

Sinto a corda sacudir, enquanto Jo faz força para não deixar a ponta escapar. Jo é mais forte e mais alta que eu, consegue segurar meu peso. O que ela não consegue, no entanto, é segurar o meu peso somado a um Wendigo que agarrou a corda com a boca e está me sacudindo, tentando me fazer cair. Subo meio a dificuldade, gemendo e engolindo a dor.

—Segure a minha mão! – Jo grita para mim, esticando sua mão pálida em minha direção. Assim que agarro seu antebraço, ela solta a corda, e posso ouvir o barulho do Wendigo se estatelando no chão, caindo em cima dos outros três. Jo me ergue com dificuldade, as veias do seu rosto saltadas e sua pele avermelhada pela força. Assim que consigo ficar de pé, ela me entrega uma tocha com um cheiro forte de álcool e farrapos enrolados nela. Ela segura uma igual, e acende as duas em uma velocidade recorde com um isqueiro potente. Ambas jogamos as tochas no abismo, simultaneamente. Tampo os ouvidos e cambaleio para trás quando os quatro Wendigos gritam, sentindo a morte os consumir, dando um beijo eterno na noite de suas vidas frias.

Espio com o olhar, mesmo que não devesse, porque a curiosidade humana é mais forte do que a preservação de uma mente sadia. Vejo as criaturas se contorcendo como minhocas, os braços e as cabeças em chamas, e é inevitável me estremecer enquanto passo a mão involuntariamente pelo meu braço.

O medo do fogo sempre estará comigo, por toda a minha pele.

XXX

—Se apoie em mim! – Jo pede, enquanto eu passo o braço por seus ombros, e ambas andamos o mais rápido que conseguimos adiante na caverna dessa vez iluminada apropriadamente por sua lanterna.

—Como veio parar aqui?! – Pergunto, gemendo de dor.

—Eu peguei esse caso ontem, e assim que cheguei no motel e vi o Impala...eu soube que encontraria vocês. Eu simplesmente soube. – Sua voz é exausta, e vejo que está ferida no braço.

Arregalo os olhos.

—Isso aí é uma.... mordida? – Vejo claramente as marcas de dentes em sua pele, o sangue escuro escorrendo sem parar. Ela assente, o suor fazendo suas mechas loiras grudarem na testa.

—É sim, mas o Wendigo que me mordeu já virou saudade. – Paramos por um momento para respirarmos, ofegantes – Quem veio com você? Além dos Winchester?

—Meu irmão, longa história. – Já adianto, antes que me pergunte – O nome dele é Jesse. Estamos procurando uma garota chamada...

—Dalilah Andrews, eu sei. Peguei o caso justamente por causa da garota. – Assinto, e ambas nos encaramos por um momento, exaustas e amedrontadas.

—Tem alguma ideia de onde todos possam estar? – Digo isso enquanto me apoio na parede, e me agacho para checar o meu calcanhar. Está tão inchado que torna quase insuportável o contato da minha pele com o calçado.

—Estamos em um ninho, em um labirinto. Podem estar em qualquer lugar... – Minha espinha se gela ao ouvir seu tom desesperançoso. Se eu perder qualquer um deles...

Não. Não posso me permitir pensar dessa forma.

—Hazel, talvez agora não seja o melhor momento para te perguntar, mas... – Jo cerra os olhos para mim, confusa e amedrontada – Como é que você fez aqueles Wendigos voarem daquele jeito? E quanto aquela ventania?

Sacudo a cabeça de um lado para o outro, em negativa.

—É bizarro demais e longo demais para te contar agora. Mas se sairmos vivas disso, prometo te atualizar dos fatos, Harvelle. – Me desencosto da parede cavernosa, ficando ao seu lado.

Jo entreabre os lábios, pronta para dizer algo, para protestar. Mas ela se silencia e ambas viramos o rosto bruscamente quando ouvimos o grito de Dean Winchester, não muito longe de nós, ao fim do corredor.

A expressão no rosto de Jo Harvelle se transforma imediatamente ao ouvir o grito dele.

XXX

Ponto de vista de Sam Winchester.

Estou estirado em uma mesa de pedra, fria e irregular. Sinto minha cabeça latejar bem na têmpora, onde pareço ter sido atingido bruscamente.

Olho ao meu redor e percebo que há outras mesas de pedra ao meu redor. Em uma delas, vejo meu irmão mais velho, um rastro de sangue em seu rosto. Na outra, Jesse Turner, que está completamente desacordado. E na outra, uma garota com pele de oliva, os cabelos compridos emaranhados por folhas e sujeita e algumas mordidas frescas por todo o seu corpo.

—Me... ajude... – Sua voz rouca implora, os olhos castanhos cheios de lágrimas me encarando. Tento me mover e consigo me sentar, com dificuldade.

—Você é Dalilah Andrews? – Consigo perguntar, a voz quebrando. Ela faz que sim com a cabeça, mas mal se mexe. Está muito fraca. Há sangue por todo o seu corpo, e ao seu redor também – Vamos tirar você daqui, Dalilah. Nós vamos...

Minha voz morre, assim como qualquer esperança que eu tinha de estar falando a verdade. Dois Wendigos nos espreitam, como se estivessem aguardando apenas nosso despertar. Um deles tem dois metros, já o outro...meu queixo cai ao olhá-lo. Nunca vi nada parecido.

Tem no mínimo cinco metros de altura, curvado graças ao teto baixo da caverna, o crânio de animal em sua cabeça como um ornamento sagrado, os chifres enormes e disformes.

O menor, vai em direção a Dean, que também desperta do desmaio assim que é atingido pelas garras do Wendigo. Seu grito é tão alto que ecoa.

—Dean! – Grito, desesperado por ajudá-lo. Não posso deixar nada acontecer com o meu irmão. Nada mais importa, de todas aquelas coisas que eu estava sentindo. Ciúmes, desconfiança. Mágoa...tudo isso se dissipa no ar como fumaça.

Ele é meu irmão e eu o amo e nesse exato momento, salvá-lo é o que importa. Me ergo, e agarro a primeira coisa que encontro, uma pedra enorme e pontiaguda. Arremesso a pedra na cabeça do Wendigo, acertando-o em cheio. A criatura geme ofendida, e me olha com um olhar cortante.

Sam....— Ele imita a voz de Hazel, e meu corpo se arrepia. Isso é sinistro e cruel, ver a voz dela saindo... desse monstro – Eu estou morta, Sam. E você não fez nada para impedir isso...

—Fique longe do meu irmão! – Grito para o Wendigo. Dean consegue sair da mesa de pedra em que se encontrava, de maneira sorrateira. Ele vai até a garota e a pega no colo, correndo para o meu lado.

—Jesse! – Dean grita, a plenos pulmões.

Jesse Turner sequer se move. Corro em direção a mesa dele, sem tirar os olhos do Wendigo que continua a nos encarar. Sacudo o irmão de Hazel, em vão. Agarro seus ombros apressadamente, e o arrasto até o lado de Dean. Ficamos os quatro em um canto, a garota desacordada nos braços do meu irmão, e o corpo de Jesse completamente apagado enquanto eu o seguro com meus braços, todo o meu corpo latejando.

O Wendigo maior abre passagem em nossa direção, afastando o menor, que nos olha com ressentimento. É o nosso fim.

Não temos fogo, não temos nada.

Quando a criatura gigantesca ergue seus braços no ar, fecho meus olhos aceitando a morte.

—Não toque neles! – Abro os olhos ao ouvir a voz de Hazel, a sua verdadeira voz, e o Wendigo se vira na direção do som cadenciado que pertence a ela. Meu corpo se estremece, e meus olhos se arregalam assim como os de Dean, quando vemos que Hazel está acompanhada por ninguém mais, ninguém menos, que Joanna Harvelle.

Ambas estão ensanguentadas, feridas. O Wendigo menor corre em direção a elas, mas com um gesto e seu braço no ar,  Hazel o arremessa direto para um grupo de estalagmites pontiagudas em um canto escuro e molhado da caverna. O animal se choca contra as estruturas afiadas, sua carne se rasgando. O monstro fica preso e ferido, enquanto se debate sem parar. O Wendigo maior fica furioso, e o seu grito faz todos nós tamparmos nossos ouvidos. Fico zonzo pelo som gutural que reverbera no ambiente, mas não tiro os olhos de Hazel. A criatura parece encarar Hazel com raiva no olhar, e em seguida arremessa Jo com apenas um golpe de seu braço enorme e forte em direção a parede, como uma punição.

Por sorte, ela não tem o mesmo destino do outro Wendigo, mas é por questão de milímetros que ela cai desacordada perto as estalagmites.

—Não! – Dean grita, sua voz se quebrando ao ver Jo Harvelle desmaiada.

—Ela está bem! – O asseguro, sem muita certeza. Hazel ergue suas mãos no ar em direção ao Wendigo que atacou Jo, e embora faça muita força, nada acontece. Posso ver que está esgotada.

Seu nariz não para de sangrar, assim como suas orelhas. O suor fez seu cabelo comprido e castanho se grudar em seu rosto e pescoço, e a vejo cambaleando. Jesse se remexe em meus braços, e eu o ajudo a ficar de pé. Ele recobra a consciência rapidamente, respirando com dificuldade.

—Lavie, precisa ser forte! – Ele grita, assim que vê a irmã – Se concentre!

Hazel tenta mais uma vez usar seus poderes, em vão. Ela cai de joelhos, e o Wendigo começa a ir em direção a ela rapidamente, como se soubesse que agora é a sua chance.

—Faça alguma coisa! – Grito para Jesse, ciente de que ele é o único poderoso o suficiente para conter essa situação. Turner me olha com sua íris de ébano e seu ar de ser das sombras, misterioso. Nunca sei qual vai ser o próximo passo dele, e pessoas assim me deixam nervoso.

—Desculpe, cara. Mas ela precisa disso. – Ele diz isso com um olhar que parece pedir desculpas, e eu franzo o cenho, confuso. Mas assim que Jesse faz um gesto simples com suas mãos, sou arremessado para longe, me estatelando no chão, bem perto do Wendigo. Ah. É por isso que ele estava pedindo desculpas antecipadamente.

Antes, o monstro estava indo em direção a ela. Mas no momento que sente o cheiro do meu sangue tão perto dele, tão vulnerável, se vira para mim com seu instinto primal e predador. 

Eu sou a isca.

—Ele vai matá-lo, Lavie! E eu não vou salvá-lo! – Jesse grita, provocando a irmã. Sei que está fazendo isso para engatilhá-la, mas é difícil não me desesperar.

Ela grita, ficando de pé e erguendo suas mãos no ar, todo seu corpo se tencionando. Está fazendo tanta força que suas orelhas e seus olhos também começam a sangrar, e uma ventania quente e sufocante se faz presente.

Já presenciei isso antes, sei o que significa. Mas quando vejo tanto sangue saindo dela, o sofrimento e a dor explícitos em seu rosto, fico desesperado. Da última vez que ela se esgotou assim, quase foi parar no vale das sombras da morte.

—Pare! Isso está a machucando! – Grito, tentando ficar de pé. Com apenas um aceno, Jesse faz com que eu caia novamente, como se o chão me puxasse para baixo. Como se a gravidade do mundo inteiro estivesse me esmagando. Ele não vai me deixar intervir.

—Vai perdê-lo, Lavie! – Turner grita, sua voz saindo quebrada e desesperada. O Wendigo está sobre mim, pronto para finalizar a minha vida, para mastigar a minha carne - A culpa vai ser toda sua!

O grito de Hazel é tão alto que até mesmo a criatura vira o rosto pra olhá-la. Em questão de segundos, o monstro é arremessada com tanta força que se choca violentamente contra a parede, gemendo e soltando grunhidos de dor excruciante. Vejo Hazel fechando o punho no ar, uma veia saltando em sua testa e em seu pescoço, o sangue continua a escorrer pelo nariz, olhos e ouvidos. Ela caminha trêmula em direção ao Wendigo, que continua a grunhir e se contorcer enquanto ela fecha sua mão no ar, o olhar ardendo em descontrole.

Está o torturando, com a força da mente.

Está fora de si.

A ventania é tão forte que tenho dificuldade para ficar de pé, mas dou um jeito de andar até ela. Paro ao seu lado, meu peito se contorcendo por vê-la assim.

Repouso a mão em seu ombro, receoso. Ela parece possuída pelos próprios poderes, e com apenas um movimento, pode me machucar mesmo sem querer.

—El, chega, já chega... – Sussurro, preocupado. Ela respira com dificuldade, seu corpo claramente a beira de um colapso. Ela parece estar em um transe com o olhar preso no Wendigo que se contorce sem parar, seus gritos e grunhidos me deixando perturbado, mas assim que ouve minha voz, seu rosto se volta para mim. E assim que seus olhos me reconhecem, ela abaixa a mão que estava causando a dor no monstro, devagar. A ventania vai cessando, lentamente. Jesse Turner caminha em direção aos dois Wendigos, com um de seus vários isqueiros em mãos, um sorriso irônico no rosto, como se estivesse carregando a porra da tocha olímpica. Seguro Hazel assim que seus olhos se reviram e ela desmaia. Pego ela em meu colo e dou as costas para todo o fogo e toda morte que acomete os Wendigos, e vejo Dean correndo na direção de Jesse, entregando a ele Dalilah.

Meu irmão corre até o corpo desacordado de Jo Harvelle, e o vejo checando o pulso dela, os olhos tomados por pânico. Percebo ele soltando um suspiro de alívio, e a erguendo no seu colo.

—Precisamos dar o fora daqui! – Grito, apoiando a boca na testa de El, beijando-a ali, com ternura e alívio por saber que está viva.

 Jesse assente, sombrio, carregando Dalilah.

Jesse, Dean e eu conseguimos achar a saída o mais rápido possível.

Sinto o coração dela pulsar contra o meu peito, e isso me mantém são como um lembrete de que ela está a salvo. Nós tivemos uma vitória, finalmente. Estamos todos vivos, salvamos uma garota inocente, e matamos os monstros que assolavam Salina. E embora eu não goste das circunstâncias, Hazel engatilhou seus poderes com mais dominância dessa vez. Está mais forte, mais protegida contra Crowley e Astaroth.

A primeira caçada de Hazel Laverne foi um sucesso. Sorrio orgulhoso enquanto corremos meio a neve, mas sinto um arrepio me percorrendo ao ver uma silhueta ao longe, meio a madrugada fria e os flocos de neve violentos que dançam no horizonte.

Lúcifer, acenando para mim como um lembrete que de que a garota em meus braços corre perigo só por estar em meu peito, agora.

Respiro fundo e sigo adiante, sentindo a respiração da garota que amo em meu pescoço.

Desejando com todas as fibras do meu ser que ela pudesse ser minha.


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Notas finais do capítulo

Hunters, não é segredo para vocês minha dificuldade com ação, né?
Mas, incrível que pareça, quando tento atrelar a ação ao ambiente do macabro, a coisa parece fluir. Poderia ser melhor? Sempre dá. Se a gente reler nossas obras para toda eternidade, vamos mexer em cada palavra por toda a eternidade. Mas para o meu nível de escrita que consigo atingir hoje, sei que fiz o melhor que podia.

Daqui um tempo revisito isso aqui, faço careta, e altero palavras kkkk a sina de todo mundo que escreve e ama o que faz é essa!

Espero que tenham apreciado, obrigada por todo o apoio maravilhoso. Vocês são maravilhosos.

PS: Jo Harvelle chegou na área. Deanzinho que se prepare : )

XOXO



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