O Homem que Perdeu a Alma escrita por Willow Oak Acanthus


Capítulo 15
Capítulo XIII - Nascidos para morrer.


Notas iniciais do capítulo

Por quê?
Quem? Eu?
Por quê?

Pés, não me falhem agora
Me levem até a linha de chegada
Oh, o meu coração se parte a cada passo que dou
Mas espero que nos portões
Eles me digam que você é meu - Lana Del Rey.

Lana Del Rey poderia ter escrito Romeu e Julieta, mas Shakespeare não poderia ter escrito Born To Die. Deu para entender o poder da mulher? Espero que sim.

ESPERO QUE SIM.

Escutem: Não surtem, tá bom? Ou surtem.

Só não me batam. CALMA.

CALMAAAAA.



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Ponto de vista de Hazel Laverne.

—Minha casa parece uma maldita pousada...- Bobby resmunga enquanto bebe um gole de café, apoiado na bancada da cozinha. O sereno da manhã fria assola o mundo lá fora, posso ver a ventania pela janela. Me sirvo de um pouco de chá que eu mesma fiz, e ele me olha, descabelado e claramente cansado – O Dean larga toalhas pela casa, você sabia? Garoto idiota...

Dou uma risadinha contida, com medo de ele perceber o quão o acho adorável, principalmente quando está irritado.

—Você não me incomoda, sabe? – Ele se apressa a dizer, a caneca verde e fumegante em suas mãos – Você é silenciosa e organizada. Eu amo o Dean como um filho, mas o imbecil dá trabalho...

—Quem é o imbecil que te dá trabalho? – Dean entra na cozinha bocejando, já vestido com uma calça jeans e uma jaqueta de couro marrom que me parece levemente familiar. Não consigo me lembrar de onde exatamente.

—Ah, quem será, não é? – Bobby debocha com a voz e rola os olhos – Garoto bagunceiro...- Singer sai da cozinha resmungando e pisando duro.

Dean dá um sorrisinho em minha direção, e se serve de café enquanto me encara.

 –Jesse já está de pé? – Sua voz é rouca ao questionar. Ele se apoia na bancada enquanto passa um pouco de manteiga em uma torrada.

—Está no ferro velho desde as cinco da manhã. – Me reclino com as costas na mesa enquanto mexo a xícara de chá nervosamente em minhas mãos. Gosto de ver os desenhos que as ervas fazem no fundo, como se fossem presságios. Dean franze o cenho, e logo me apresso a explicar – Está reorganizando algumas peças para o Bobby. Com...tipo, telecinese. – Dean arregala os olhos, e até para de mastigar por um momento.

—O cara está movendo peças enormes só com o poder da mente?! – Ele parece empolgado com a notícia. Posso jurar que até vejo um sorrisinho se formar em seus lábios.

—Aham, você devia ir ver. – Termino o meu chá e coloco a xícara na pia, o incentivando a ir se divertir um pouco.

—Tá brincando?! É lógico que eu devia ir ver isso! – Ele se retira rápido como um raio e segue para o ferro velho, animado como nunca vi. Sorrio de lado. É bom vê-lo sorrir, pelo menos um pouco, diante de tudo o que estamos passando.

XXX

Caminho com os braços cruzados em direção ao pórtico de madeira velha, me protegendo do vento frio que me recebe assim que coloco os pés para fora. Meus cabelos castanhos e compridos voam para lá e para cá, me incomodando profundamente. Encontrei um moletom preto e limpo pendurado no sofá da sala, e o vesti. Não tenho muitos casacos comigo, e a temperatura não para de despencar.

Dean e Jesse estão parados, lado a lado, conversando sobre algo. O céu nublado sobre nossas cabeças parece entristecido e o chão árido do Kansas dá a tudo um tom infértil, como uma pintura daquelas que todos nós já vimos em algum lugar, de uma casinha solitária toscamente pincelada meio ao absoluto nada.

—Seu irmão é irado! – Dean vem até mim com um sorriso animado no rosto. Jesse dá uma risada curta, enquanto traga um cigarro entre seus dedos compridos e pálidos. Os cabelos pretos voam em frente os seus olhos escuros, são levemente compridos e suas pontas formam cachos bagunçados.

—Eu estou me sentindo um animal de circo, Winchester. – Jesse usa um tom descontraído ao dizer isso, dando um tapinha no ombro dele – Mas admito que foi divertido.

—Eu imagino que se divertiram... – Tento tornar o tom da minha voz leve, fingindo que não estou aflita estando diante de Jesse. Não sou boa nisso. Coloco uma mecha do meu cabelo para trás da orelha, as mãos aquecidas pelas luvas. Dean me olha nos olhos, e então seu olhar desce para o moletom preto que estou vestindo. Franzo o cenho, confusa – É seu? Eu peguei ali no sofá...

—Sammy e eu costumávamos dividir esse moletom, na verdade. – Seu sorriso parece nostálgico – Mas era mais dele do que meu.

Assinto, me sentindo mais aquecida só por saber disso. Espero que o meu rosto não revele isso, no entanto. Embora esteja sentindo algo por mim, Dean sempre deixa claro seu desejo de que eu fique com o seu irmão novamente. E não quero dar a ninguém esperanças falsas.

Nem para mim mesma, especialmente.

—Por falar no meu irmão...- Ele pigarreia, percebendo o meu silêncio desconfortável – Acho que devia dar a você e ao seu irmão um minuto de privacidade. Não tiveram nenhum desde que se reencontraram...e essas coisas são importantes.

Isso me faz recuar um pouco, não sei como me sinto em relação a isso ainda. Jesse me olha com a mesma aparente apreensão. Dean sai dali rapidamente, não dando a nós dois muito tempo para protestar. O observo entrando na casa, e coloco as mãos nos bolsos, me retraindo. Jesse me dá um sorrisinho constrangido, e joga a guimba de cigarro no chão, pisando nela, afundando-a na areia.

—Quer caminhar um pouco? – Ele propõe, soprando a fumaça remanescente de seu pulmão no ar. Faço que sim com a cabeça, e caminhamos em silêncio pelo ferro velho por algum tempo. Meio a ferrugem dos carros, penso em nossa história.

Antiga, enferrujada e esquecida pelo tempo.

—Por que me chama de “Lavie”? – É a primeira coisa que consigo dizer, com um frio na barriga. Não tenho ninguém restante da minha família, a não ser a minha avó, que pretendo nunca mais encontrar. Saber que ele tem parte do meu DNA me assusta profundamente.

Jesse sorri de lado, revelando uma covinha do lado esquerdo da bochecha.

Quand il me prend dans ses bras... — Ele cantarola baixinho, a voz rouca e suave. O tom bonito e afinado de sua voz me lembra a voz do meu pai, e isso faz eu fechar os olhos por um instante. Dói, esse tipo de semelhança— Qu'il me parle tout bas... Je vois la vie en rose...

—Sua voz é linda. – Sinto um arrepio me percorrendo e o olho completamente confusa – Mas não entendo como isso responde a minha pergunta.

Ele ri um pouco, e coça a cabeça desconfortável.

—Ouvíamos essa música em uma vitrola velha, dentro do trailer da minha mãe. Você amava essa música porque o som das palavras era diferente do que estava acostumada. Gabrielle...- Ele diz o nome da mãe com um sotaque francês muito convincente, como se falasse o idioma – Era francesa, e tinha uma coleção de vinis. Essa era a sua preferida, e você achava que “La vie” era o nome de uma garota bonita na história da música. Vivia dizendo “La vie é um nome que eu gostaria de ter, Jesse” ...- Seu olhar se torna soturno de repente, e eu sinto um aperto no coração – E você parecia amar tanto essa palavra que eu não tive coragem de te dizer que não era um nome coisa nenhuma, e sim “A vida” em francês. Então... te apelidei de Lavie, e você adorou.

Meus olhos se enchem da água, mas eu me viro para o lado, limpando uma lágrima discreta que escorreu pela minha bochecha ao ouvir isso. Não sei por que isso doeu tanto. Talvez por ser uma lembrança doce, que eu consigo imaginar, mas não consigo me recordar ou acessar.

—Parece que está me contando a história de uma estranha, Jesse. Eu sou uma estranha para mim mesma, droga... – Me encosto em um carro velho e azul, com uma dor ardente no peito e um sentimento pesado nos ombros – Éramos assim tão próximos?

Ele assente, acendendo outro cigarro. Seus olhos castanhos se semicerram ao me encarar.

—Quer um? – Ele indica com a cabeça o cigarro em suas mãos, me oferecendo. Faço que não com a cabeça. Ele suspira, prendendo o cigarro entre os dedos, o sobretudo negro como a noite esvoaçando com o vento – Éramos melhores amigos, Lavie. E passamos por maus bocados juntos.

—Gostaria de poder me lembrar. – Percebo pelas suas sobrancelhas erguidas que devo ter soado ríspida, o censurando com o olhar. Ele aquiesce, com os olhos afiados.

—Você tem a mesma atitude impossível que eu tenho, sabia? – Ele ergue a sobrancelha, sorrindo irônico com o cigarro pendendo dos lábios.

—Isso aí vai te matar, sabia? – Aponto para o cigarro, fazendo uma careta. Ele ri e esfrega a têmpora direita com os dedos.

—Eu sou literalmente metade demônio, Lavie. Cigarros não podem me matar. Dentre muitas coisas...- O olho confusa e curiosa, e ele ergue ambas as sobrancelhas, se encostando no carro ao meu lado, um vinco se formando em sua testa – Não acho que tenha te contado essa parte, né? São tantas coisas... – Ele suspira, e traga o cigarro nervosamente – Não podemos morrer como humanos, Lavie. Só artefatos que matariam demônios podem fazer o trabalho.

Fico estática por um momento, absorta na informação.

—C-como sabe disso?! - Gaguejo, completamente incrédula com a informação - Como pode ter certeza disso?!

Jesse se desencosta do carro, chutando a areia do chão vez ou outra enquanto anda um pouco, não saindo muito de perto de mim. Parece nervoso.

—Não podemos morrer de maneiras convencionais, garanto isso a você. Apenas uma faca de matar demônios ou fogo do inferno seriam capazes de colocar a gente para dormir para sempre. Talvez aja algum outro modo, mas eu desconheço. Porém, garanto que o que quer que seja... – Ele suspira, coçando a cabeça – É sobrenatural, não... natural.

—Isso é impossível! - Contra-argumento, indo para perto dele com as sobrancelhas franzidas em incredulidade, os cabelos dançando em meu rosto irritantemente por culpa dos ventos - Como pode garantir que...

—Posso garantir, Lavie. Não podemos ser mortos como humanos...- Ele me interrompe, erguendo as mangas do sobretudo preto e me mostrando os pulsos - Eu mesmo já tentei. E não foi só uma vez, e não só de uma forma. Então acredite em mim quando digo, Lavie. Nunca disse nada a ninguém que não tivesse certeza, então...se acostume com o fato de que a sua mortalidade é bem diferente da de uma pessoa normal.

Meus olhos se arregalam ao ver enormes cicatrizes desenhadas na pele de seus pulsos. Minhas mãos ficam trêmulas, e eu dou um passo para trás.

— Me desculpe. - Consigo dizer, como se fosse culpa minha, ele ter se exposto desse jeito - Não tive a intenção de fazer você...

—Não se preocupe, não é como se eu não soubesse coisas horríveis sobre você, não é? - Ele me interrompe novamente, amargurado, ajeitando as mangas. Parece ressentido, parece não ter ideia de como se comunicar comigo - Como o fato de Azazel quase ter conseguido te matar.

—Aquilo era fogo do... inferno? - Questiono, assustada enquanto passo a mão sob o braço esquerdo, involuntariamente me lembrando da noite do incêndio, os dedos tocando onde moram minhas cicatrizes por dentro do casaco. Ele assente – Ele sabia sobre...mim?!

—Era sim. E, sim, sabia. E por falar nisso...sei que não devia me meter, mas não acho seguro. Você e... Sam Winchester. – Turner termina seu cigarro e o apaga, e coloca as mãos nos bolsos, se posicionando ao meu lado com uma expressão dura.

Fico na defensiva.

—Como é? – Questiono, tentando entender o motivo desse comentário. Ele dá de ombros.

—Nada contra ele especificamente, nem conheço o cara. E ele deve ter sofrido muito quando tudo aconteceu, mas foi tentando atingir Sam Winchester que Azazel tentou te matar, Lavie. Se ficar com ele de novo, você sempre será o alvo de algo maior. O cara é amaldiçoado desde o nascimento. Não que não sejamos, mas...

—Está enganado. - Minha voz sai mais ríspida que o calculado, o interrompendo – Se Azazel sabia sobre mim, então claramente queria atingir Astaroth.

Turner dá uma risada irônica, balançando a cabeça em negativa.

—Você é um pouco ingênua, maninha...de qualquer forma, como eu disse, não quero me meter. Só achei importante dizer isso porque, tendo em vista que está pronta para abrir mão de tudo só para encontrar a alma dele, senti a necessidade de alertá-la.

Seus olhos encaram os meus, e um conjunto de toda a confusão e raiva que estou sentindo se alojam na minha garganta, formando um emaranhado que eu não consigo conter:

—Dá próxima vez que sentir essa necessidade, enfie ela goela abaixo. – Minhas palavras saem afiadas e eu o olho com raiva – Você pode se lembrar de tudo e achar que pode bancar o meu irmão, mas eu não me lembro de você, Turner. E é loucura você pensar que eu vou levar em consideração o que você diz, já que nem acesso as minhas lembranças que você roubou de mim, você me permite ter. Para todos os efeitos, só te conheço desde ontem, somos dois estranhos. Então não diga mais nenhuma palavra sobre Sam.

Termino de falar e sinto o meu peito ardendo. Ele continua me encarando, de maneira fria. Jesse dá de ombros e ergue as mãos no ar em sinal de redenção.

—Me esqueci do quão arisca você fica quando tentam te impedir de fazer besteira, Lavie. – Ele me disfere um sorriso sarcástico e despreocupado, como se estivesse acostumado a ser machucado – É bom ter você de volta. Senti falta da sua insolência de caçula.

Abro a boca para respondê-lo, mas nada sai da minha garganta. Jesse vira as costas para mim e vai em direção a casa, me deixando sozinha.

XXX

Entro na casa aos passos duros, irritada com tudo o que acaba de acontecer. Me deparo com Dean, pálido e abalado em frente a porta que leva ao porão. Meu coração acelera imediatamente e eu vou até ele.

—O que aconteceu? – Minha voz vacila por um momento, coberta de suspeita. Dean é uma pessoa muito expressiva, e com certeza não estaria pálido assim se algo não tivesse ocorrido Seus olhos verdes me encaram com um ar de advertência, como se quisesse me proteger de algo.

—Ele...está tendo uma crise de abstinência, Hazel... – Ele usa cautela na voz, e eu tento me manter firme, mas sinto meu coração se acelerar. A palavra “abstinência” em si já é um gatilho, devido a minha mãe. Saber que o corpo de Sam tem um vício e que isso o está destruindo é doloroso demais para mim – A situação está feia. Não seria bom para você ir lá embaixo...na verdade, não seria bom você nem ficar na casa...

Dou um passo para trás, e deixo os ouvidos atentos, mas não ouço nenhum tipo de grito vindo de lá.

—Quão feia é a situação...? – Dou um passo à frente, preocupada. Já lidei com crises de abstinência da minha mãe antes, talvez eu possa ser útil. Dean me olha com dor no rosto e ergue a mão no ar, me impedindo de chegar mais perto da porta.

—Tivemos que amarrá-lo, Hazel. E não foi nada fácil, acredite em mim... e ele está gritando umas coisas que, bom... pode, por favor ficar, longe desse porão?! – Minhas sobrancelhas se arqueiam levemente para cima, em sinal de preocupação. Meu peito parece se contrair, e a razão fica batalhando contra a emoção.

Jesse desce pela escada, observando Dean e a mim. Não o encaro, na verdade, finjo que ele nem está ali.

Quando meus lábios se separam para que eu diga algo, consigo ouvir alguns dos gritos dele, quebrando o silêncio.

Quero rasgar a jugular dela! — Sua voz é tão alta e dolorida, assustadora como um animal morrendo em uma floresta fria. Meu coração congela por um momento. Está se referindo a mim— Eu preciso do sangue dela! Quando eu sair daqui...

Dou dois passos para trás, quase cambaleando por ouvir sua voz dizendo esse tipo de coisa. Dói tanto que me sufoca.

Não é ele, mas é a voz dele. É a voz dele gritando para quem quiser ouvir, que deseja me machucar.

Minha cabeça fica tomada por imagens dele, amarrado naquele bunker frio, gritando e se contorcendo, se machucando. Não é ele, não é ele, não é...

—Não é o Sammy, Hazel...- Dean dá um passo à frente e tenta me acalmar, usando a sua voz com a intenção de me confortar, mas de repente é como se todas as emoções que eu tentei conter dentro de mim durante os últimos dias me atingissem como um raio, incendiando todo o meu interior.

—Me deixe ir ajudá-lo, Dean! – Tento passar por Dean, que me segura delicadamente pelos ombros, me impedindo de passar por ele – Eu já ajudei a minha mãe em situações como essas! Ele está amarrado e sozinho, e...

—Ele não é a sua mãe, nem é uma pessoa, Laverne! – Os olhos de Dean transbordam dor ao dizer isso – Não é o Sammy, Hazel!

—Não importa que não seja, ok?! É o corpo dele, e ele deve estar se ferindo tentando se soltar! – Tento me mover novamente, mas Dean continua a segurar os meus ombros. Minha garganta queima, ouvindo mais gritos vindo lá de baixo. A voz dele está se tornando rouca e exausta, e isso me estilhaça – Dean...

—Ele vai tentar te matar se chegar perto dele, Hazel! Acorda! Você não entende?! – O peito de Dean se esvazia, desesperançoso e exausto – Quero proteger o corpo dele tanto quanto você, para que quando a alma dele seja colocada lá dentro de volta ele não tenha sofrido danos. Mas essa... coisa gritando no bunker, não é o Sammy! Não é o meu irmão! É a porra de uma arma! E essa arma está apontada para você, Laverne, então... por favor, apenas fique longe daqui... fique longe dele.

Absorvo suas palavras dolorosas e me sinto uma idiota. Uma burra, uma ingênua. Por que a droga da minha cabeça continua me traindo? Meu olhar fita o de Dean por um tempo, mas sinto tanta vergonha que começo a encarar o chão. O choro irrompe da minha garganta igual a uma barragem se rompendo violentamente. Esfrego o rosto com raiva, e encosto as costas na parede frente a escada, sentindo a fúria dançando com a dor em minhas entranhas. O olhar de Dean sobre mim é profundo e triste, como se entendesse cada grama do meu ser. Decido correr escada acima para ficar longe dos gritos que não cessam, e trombo em Jesse rispidamente quando faço isso, deixando-os para trás.

Preciso ficar sozinha. Preciso ficar sóbria de tanta dor.

XXX

Faço algo que não fazia a muito tempo, que é chorar até a exaustão. Acabo dormindo por mais tempo do que o planejado, e acordo com um estrondo vindo do lado de fora da casa. Me sobressalto com o coração acelerado, socando o meu peito. Levanto rapidamente da cama, e olho pela janela do segundo andar.

Tudo parece congelar por um momento. Os céus estão escuros, e a figura de dois homens se faz presente na paisagem. Um deles, está trajando um sobretudo creme e tem olhos tão azuis que podem ser vistos a quilômetros. Castiel.

Ao seu lado, há um homem franzino e idoso, tão idoso que os ossos do rosto são proeminentes, mas nada sobre esse homem parece frágil. Com seu sobretudo preto e um terno elegante da mesma cor, o homem se apoia em uma bengala, e pelos seus olhos negros e pela energia que o envolve, só consigo pensar em uma palavra para descrevê-lo. Imponência.

O homem segura uma mala, e raios brilhantes estralam no céu, entoando trovões estrondosos que reverberam por todo o horizonte.

Vejo Dean, Bobby e Turner indo de encontro com Castiel e o homem com a mala, e decido correr escada abaixo. O que está acontecendo?

Quando chego ao primeiro andar, ofegante pela possível iminência de perigo, meu coração e o meu corpo congelam.

O corpo de Sam Winchester está diante de mim com um sorriso frio e as mãos completamente feridas, como se tivesse dado mil socos em ferro puro.

Cambaleio para trás, caindo no primeiro degrau da escada atrás de mim. Sem tirar os olhos dele, abro a boca para gritar por ajuda, mas ele me puxa rápido demais, me segurando pelo colarinho do moletom e me prensando contra a parede. Com sua mão enorme e ferida, ele tampa a minha boca. Tento me desvencilhar dele, me debatendo desesperadamente com horror nos olhos, mas o seu sorriso macabro me indica uma coisa bem clara.

Não vou escapar das suas mãos.

Shhhh, shhhh... – Ele sussurra de maneira irônica, as sobrancelhas arqueadas para cima e os olhos tempestuosos refletindo os raios que brilham pela janela dos fundos olhando bem no fundo dos meus, enquanto continuo me debatendo – Você e eu vamos ter um momento só nosso, Laverne.

Ao dizer isso, ele me agarra em sua frente, ainda tampando a minha boca e me levando, sem dificuldade alguma, para o porão.

XXX

Quando sou jogada no bunker e ouço a porta de ferro se fechando bruscamente atrás dele, me arrasto para trás com o corpo inteiro dolorido. Me levanto com dificuldade enquanto ele me encara com fogo no olhar, sua ira ardente, quase física. Encosto as costas na parede de metal, e as sombras da ventilação cheia de símbolos dança no chão entre nós. Ele caminha devagar até mim, ficando com a distância de apenas um metro.

Como você escapou?! – Minha voz vacila, sinto o meu peito subindo e descendo enquanto respiro com dificuldade. Meu coração parece querer quebrar meu peito. Preciso escapar, mas como?!

—Enquanto estava agonizando naquele canto como um animal, os pulsos amarrados e a abstinência inflando e queimando as minhas veias...eu me lembrei de uma coisa muito, muito importante. – Sua voz é séria e fria. Algumas mechas do seu cabelo comprido caem na frente dos olhos, lhe dando um ar sombrio – Sam Winchester tinha sangue de demônio, não tanto quanto você, garota-demônio. Mas o suficiente. Primeiro mordi a minha boca até fazê-la sangrar... – Ele passa a língua pelo lábio inferior e respira fundo – Isso me fez ficar forte o suficiente para me soltar das amarras estúpidas. Não sei se Sam Winchester conseguiria acessar os próprios poderes com o próprio sangue, mas eu não sou ele, certo? Isso aqui é apenas um receptáculo para o que eu sou, então acredito que as regras do jogo mudem por isso!  – Ele chega um pouco mais perto de mim, ficando a centímetros de distância do meu corpo – Depois, só precisei usar os dentes para rasgar o braço dele... – Ele ergue o braço direito no ar, me mostrando a mordida ensanguentada.  Meus olhos se arregalam em pavor ao ver o ferimento profundo, e ele sorri devagar mostrando os dentes manchados de sangue – E isso foi o suficiente para me deixar poderoso de novo. Sabe, Laverne, eu e Crowley somos... conectados. E se ele desapareceu, eu devo desaparecer também. Mas não sem antes terminar o que ele me incumbiu de fazer. Esse é o motivo da minha existência...

O corpo de Sam tira do cós do jeans uma faca enorme, que ele provavelmente afanou da cozinha de Bobby quando conseguiu escapar.

—Não... – Sussurro, trêmula. Todo o meu corpo se torna frio, primeiro as entranhas, e então a carne, e por fim o sangue. Esse não pode ser o meu fim. Não assim. Não com suas mãos sendo responsáveis por isso.

—E então... – Ele segura o meu rosto com a mão forte, me fazendo olhar para ele, os olhos fitando os meus lábios – Você vai querer aquele beijo de que te falei? – Não consigo olhá-lo nos olhos. Assim que os fecho, deixo as lágrimas caírem. Ele começa a rir e solta o meu rosto, recuando um pouco – Como quiser, Laverne. – Ele ergue a faca perto do próprio rosto com o sorriso frio e sádico, e inclina a cabeça levemente para o lado – Últimas palavras?

—Crowley não queria que fosse assim, não é?! – Tento usar as palavras para ganhar tempo. Ele me olha com atenção, a faca ainda erguida no ar – Precisava de um ritual, não é? Vai trair o seu... mestre dessa forma?!

Ele sorri levemente.

—Você até que se passa por alguém esperta, Laverne. Tenho que admitir... – Ele dá de ombros, respirando fundo – Crowley desapareceu, Hazel. E ele nunca faz nada sem motivo. Tenho certeza de que só pode ser um teste. Eu sinto...dentro de mim! – Ele aponta para o próprio peito, fazendo uma careta de dor – Que é isso o que ele quer que eu faça. Então é isso o que eu vou fazer. Vou cumprir com o meu propósito, e depois... depois estarei nas mãos dele, e do que ele quiser fazer comigo.

Seja lá o tipo de ritual macabro ou feitiço que foi realizado por Crowley para tornar o corpo dele em uma máquina de obediência e lealdade, funcionou perfeitamente.

Isso é a coisa mais cruel que eu já vi. E já vi muitas crueldades ao longo da vida.

Tudo o que se segue é rápido demais. Dizem que quando morremos, todas as nossas lembranças passam diante dos nossos olhos como um trem em alta velocidade. Parando para analisar, anos atrás quando Sam Winchester me salvou do meu suicídio, firmei em mim a ideia de que nunca mais ia me entregar para a morte, e desde então estive em modo sobrevivência. Viver foi meu modo de resistir a tudo e a todos, como uma teimosia macabra. Como se olhasse para a morte e quisesse mostrar a ela que sou difícil de ser encontrada. Não que não a desejasse. Mas minha vontade de me provar sempre foi o que me manteve aqui, respirando.

Tudo porque ele arriscou a própria vida, em Lawrence, para me dar uma segunda chance. E eu agarrei essa chance.

Quando o meu silêncio reina no ambiente, não deixando espaço algum para últimas palavras, ele dá um passo à frente com a faca em punho:

—Você e eu, Laverne, somos a criação de forças maiores, somos peças opostas em um tabuleiro, e por isso mesmo nós nascemos para morrer em nossas missões. Por razões diferentes, mas ainda assim... somos nascidos para morrer. – Absorvo suas palavras frias disferidas pela voz de alguém que faz meu coração bater mais rápido, mas que não é esse alguém. Esse alguém está bem longe de mim agora. Respiro fundo, e tudo fica quieto.

O mundo se silencia, e um chiado invade a minha cabeça. O som do silêncio é violento.

Decido olhar para os seus olhos, mesmo que estejam vazios, mesmo que não sejam mais seus. Um dia não estiveram, um dia pertenceram a ele.

E isso é o que me importa agora.

A única coisa que importa. Me encolho no moletom, que um dia também foi seu, como se me protegesse.

E é olhando em seu oceano verde cinzento e arrebatador que sinto a faca entrando em mim, bem no centro do estômago, abaixo do coração e meio as costelas. Gemo de dor e abro a boca quando sinto um gosto metálico e quente me invadindo.

Sangue. O líquido viscoso escorre pelos meus lábios e lágrimas frias irrompem de mim, enquanto o encaro. O prazer em seu olhar é evidente, enquanto ele torce a faca e a enfia mais fundo em mim. Me sinto tão assustada.

Eu vou morrer. Acabou. Tudo o que eu vivi até aqui... vai morrer comigo.

Quando encaro seu rosto profundamente, a faca cravada e torcida em mim, um ódio me invade.

Tudo o que aconteceu entre Sam e eu arde na minha cabeça.

Tudo o que fizeram com seu corpo, enquanto ele permanece em sofrimento eterno naquela jaula, como um maldito messias que morreu por nós. Seu conto, sua canção do cisne, é bíblica, como todas as desgraças da terra. Sam... onde quer que esteja, espero te encontrar. Espero que saiba que você não tem culpa de nada. Pode ser o seu corpo que está segurando a faca, mas é Crowley quem realmente está me matando.

Quando a última lágrima cai do meu rosto como a última nota de um réquiem, penso no quanto ainda o amo, onde quer que esteja. E no quanto gostaria de vingar a nós dois.

Antes que tudo fique escuro, penso no garoto da casa da frente por quem me apaixonei em Lawrence. Em seu sorriso. Pensando nele, e olhando o que fizeram com ele, me revolta tão profundamente que sinto uma força descomunal tomando conta de mim, de dentro para fora como uma sombra que não pode ser contida. Em um vislumbre dessa força, o corpo de Sam é arremessado para o outro lado, se chocando com o metal.

Eu fiz isso?! Seria esse o maldito gatilho que eu precisava para acessar meus poderes? Agora é tarde demais.

A porta é escancarada por alguém que não consigo enxergar graças a visão embaçada, e minhas pernas ficam fracas enquanto eu escorrego pela parede lentamente, em direção ao chão. Não sentindo nem a queda, nem o frio, nem nada que seja.

Parece que Jesse Turner estava errado no fim das contas. Parece que posso sim morrer como humana.

Talvez ele seja mais poderoso do que eu. Nunca terei a resposta. Nem essa, nem nenhuma outra.

Vivi em busca da verdade, sempre muito perto..., mas nunca perto o bastante.

O escuro me beija, me consome e me cobre como um manto.


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Notas finais do capítulo

Antes de abandonar a fanfic lembre-se ISSO AQUI É SUPERNATURAL.
O QUE ACONTECE EM SUPERNATURAL EIN EIN EIN??? VÁRIAS VEZES? E DE NOVO DEPOIS???
ENTÃO CALMA.
Prometo que o próximo capítulo não vai demorar.

CONFIA EM MIM EIN.



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